Читать книгу Aterrador - Renato da Silva Moreira - Страница 16
Оглавление3. Persiga aquilo que ama ou acabará amando aquilo que encontra.
Observo o labirinto por uma janela da ala leste do casarão. Em silêncio e sozinho depois de tantos contratos, formalidades, apresentações e representações, um rosto e uma voz se destacam na confusão da minha mente cansada. Fecho os olhos por um segundo e sinto-me cair em um estado de semiconsciência. A face ousada de um fauno coroada por um par de cornos levanta as orelhas de bode com curiosidade para escutar a voz que diz “você pode enganar os outros e a si mesmo, Enzo, mas a morte... ninguém engana”.
Tive um sobressalto (um desses sustos que a gente leva quando está a ponto de adormecer) e despertei completamente. O fauno e a voz continuavam na minha cabeça. Não tive dificuldade em relacionar o rosto com a estátua à entrada do jardim. Não obstante, custou-me muito lembrar quem havia proferido a frase: havia sido Don Giovanni, o jardineiro. Claro, como pude esquecer!
Agora que a poeira baixou percebo como tudo aconteceu tão depressa. Estava um tanto desanimado aquele dia quando larguei a empresa na hora do almoço. Liguei para Genaro, apostando em sua infinita capacidade de se distrair e gozar a vida sem esforço. Ele não precisou conferir meu tom de voz enfadado: sabe que quando ligo é porque preciso relaxar.
– Ligou na hora certa, Zoppo!11 – Ele me chamava assim desde quando éramos meninos, ele um craque no futebol e eu um tremendo perna de pau. Para Genaro toda hora era a hora certa. – Acabo de falar com Jessica, uma coleguinha nova. Ela e sua amiga chegam esta noite à Pisa. Por que não damos um pulo na Casetta? – era como chamávamos uma das mais antigas propriedades da minha família, uma vila entre Luca e Pisa.
Genaro é o tipo de milionário decadente que, mesmo depois de perder quase tudo, consegue manter um estilo de vida relativamente luxuoso, conservando a ilusão de que ainda é abastado. Conhece a alta sociedade, tem cara de rico, fala como rico, conservou um Rolex ou dois e isso basta para convencer a maioria das pessoas, que acabam caindo em seus golpes. Os amigos mais chegados, como eu, emprestam-lhe dinheiro, vez ou outra, para salvar-lhe de algum apuro. Emprestar é modo de dizer, pois é claro que ele nunca irá pagar, pelo menos não em forma de dinheiro. Genaro é uma espécie de gigolô do entretenimento: pagamos para que ele nos divirta.
Da sede em Milão até Pisa são aproximadamente 3 horas e meia de carro. Mas com La Rossa esperava levar menos tempo e de fato cheguei a Pisa ainda no meio da tarde. Fazia tempo que não pegava a estrada sozinho. Ia sem música, para escutar melhor a respiração de La Rossa: seus 520 cavalos relinchavam como bestas celestiais. A Ferrari F50 era o carro do meu sonho quando era criança e pilotá-lo para mim é sempre uma viagem ao passado, a uma época sem preocupações.
Talvez pegar a estrada com La Rossa foi o que desencadeou tudo de inesperado que se seguiu. Ou teria sido o baú que encontrei no sótão?
Estava em clima de fazer as coisas de um jeito diferente. Resolvi ir buscar as meninas no aeroporto ao invés de mandar o chofer. Primeiro, passei na Casetta para trocar de carro. La Rossa impressionaria muito mais as garotas do que o velho Defender, mas isso é o que se passa com as Ferraris: só possuem 2 assentos. Os criados ficaram surpresos em ver-me ali. Mais que isso, vi pânico no rosto de alguns deles. Não sei por qual motivo, afinal tudo parecia em ordem. Empregados são assim mesmo: morrem de medo quando são pegos de surpresa, mesmo sem estar fazendo nada demais. Seguindo a sintonia de agir de um modo alternativo, resolvi dispensar todos eles e fiquei apenas com dois seguranças guardando o perímetro externo da casa.
Encontrei Genaro, Jessica e Susi no estacionamento do aeroporto. Por mais que estivesse disposto a fazer algumas loucuras, ser acossado por turistas no hall não era uma delas. Engraçado como até mesmo quem não sabe quem sou eu vem encher minha paciência porque viu-me na revista ou na TV. “Você não é aquele ator que fez aquele filme, qual era o filme mesmo, é...” Mais de uma vez pediram-me autógrafo para lembrar do meu nome. Escrevo então Antonio, ou Marco, e o sujeito se despede meio sem jeito “boa sorte no seu próximo filme, Marco”. Detalhe é que nunca fui sequer figurante. Os autógrafos são o de menos, ninguém mais pede autógrafos hoje em dia. O negócio é foto. Quando ando em público sinto-me como uma atração turística: todos querem marcar o ponto, mostrar para seus amigos “olha quem encontrei”. Pergunto-me que diferença faz na vida de alguém encontrar um ricaço que está se lixando para você. O que interessa aos seus amigos saber que você esbarrou na rua com tal tipo? Essa gente que pede fotos e autógrafos é de classe média ou baixa. Seria muito mais lógico que eles, ao invés de bajulação, tacassem pedras em sujeitos como eu, que são podres de rico graças à exploração dos recursos naturais e da mão de obra dessa mesma classe média, baixa e tiete. Misantropia à parte, lá estava eu apoiado no capô do velho Defender, fumando um cigarro no estacionamento do aeroporto quando aparece Genaro e suas amigas. Não precisei de mais do que um aceno para reconhecer o tipo de garotas com quem estávamos tratando: modelos emergentes, possíveis atrizes, acompanhantes de luxo: lindas, agradáveis e sem muito conteúdo.
Genaro sentou-se ao meu lado e discorreu todo o caminho sobre nossas peripécias juvenis. As meninas fingiam interessar-se enquanto usavam seus celulares disfarçadamente. Nota mental: reforçar a segurança. Provavelmente teremos paparazzi esta noite. Garotas desse tipo nunca perdem uma oportunidade de serem vistas em companhia de celebridades e quanto mais íntima a companhia, melhor. Tudo bem, posso dar-me o luxo de dormir com uma modelo emergente vez ou outra. É isso que eles esperam de mim, afinal, pelo menos por um tempo, até eles decidirem que já está na hora de relacionar-me sério com alguma famosa de verdade.
– Não é mesmo, Zoppo? – eu havia perdido completamente o fio da meada seguindo a trilha dos meus pensamentos. Tive que desculpar-me e pedir para que Genaro repetisse.
– Estou falando de La Rossa. Você veio com a máquina, não foi? Meninas, vocês têm que ver essa nave! Foram fabricados apenas 349 modelos. Lembro quando você ganhou o autorama com miniaturas da F50. A gente passava horas com aquilo. E mesmo depois, mais velhos, nas férias do colégio, a gente subia no sótão pra fumar um baseado e viajar naquele brinquedo. Será que o autorama ainda está lá?
Chegamos na Casetta às 21h21. Lembro exatamente da hora porque achei curiosa. Tenho essa mania de olhar para o relógio em horas em ponto ou em palíndromos como 20h02. Aquela noite entramos em casa exatamente 21h21 e foi a última vez que dei conta das horas pelos próximos dias. Os instantes escorriam entre garrafas, ervas, seringas, papéis e cristais. De vez em quando entrava na paranóia dos paparazzi e fechava todas as janelas e persianas e então já não sabíamos se era cedo ou tarde, dia ou noite ou mesmo há quantos dias estávamos ali. Vivíamos nus a maior parte do tempo. Sempre confundia Jessica com Susi e afinal as chamava de “Linda”. Linda, traga mais uma garrafa, por favor. Claro que por mais tontas que elas fossem sabiam distinguir minimamente um cavalheiro de um imbecil. O desprezo que sentíamos por elas era recíproco, todos éramos náufragos à sós em um oceano de distrações e entorpecimento, agarrando-se uns aos outros com medo de nos afogar. Que importa se sou um babaca? O champagne é de primeira e uma boa matéria na imprensa pode render-lhes um bom trabalho. Assim, elas desculpavam minha soberba, eu desculpava a frugalidade delas e todos desculpávamos o mau caráter de Genaro.
Até aí nada de novo, mais uma das nossas farras. Se as meninas da redação da revista vissem-me em um momento como este formariam uma opinião diferente de mim. Queria ver-me como um desses astros do rock, exuberantes em suas loucuras. Mas sabia que essas minhas bagunças não passavam de ocasiões pontuais, como um escoteiro que vai para uma rave uma vez por ano. Não passava de uma brincadeira estúpida que acabava em uma ressaca terrível e com a promessa de não beber nunca mais. Porém, desta vez, a coisa teve consequências sérias.
O autorama continuava no sótão. Genaro e eu subíamos lá sempre que as meninas dormiam e ficávamos pilotando aqueles carrinhos por horas a fio, conversando sobre qualquer coisa sem importância até baixar um pouco o efeito das drogas e podermos dormir. Foi numa dessas madrugadas, ou manhãs, ou mesmo tardes, em que eu era a única pessoa desperta quando, vadiando pelo sótão buscando sei lá o que, acabei tropeçando em um antigo baú. No começo, a visão daquele baú não se revelou como uma memória consciente. Foi mais como uma náusea, uma pontada na boca do estômago. Logo virou uma sensação de ter perdido alguma coisa. Só então me veio à mente um turbilhão de lembranças enquanto escutava minha própria voz dizendo “meu baú do Pinocchio”.
Como podia ter esquecido tão completamente daquele baú e da minha fixação pelo boneco de lenha? Durante 1 ou 2 anos (e isso é muito tempo na vida de uma criança) fui completamente obcecado pelo Pinocchio. Guardava no baú todas as relíquias do meu personagem preferido: coleção de miniaturas, figurinhas, postais... e lá estava minha edição ilustrada da obra de Collodi. Folheei o livro e, fascinado, reconheci uma digital de chocolate deixada por mim em uma das páginas há muitos anos atrás. Tive um flash daquele dia. Era um dia chuvoso e estava lendo debaixo da mesa de meu pai enquanto devorava sozinho uma caixa de bombom. Devia ter seis anos. Lembro que no dia seguinte passei mal de tanto chocolate que comi e tiveram que levar-me ao hospital. Para que melhorasse logo, meus pais prometeram que assim que ficasse bom eles levariam-me ao parque. Ficar doente era legal, porque recebia a atenção de todos. No final do livro, encontrei uma foto que usava como marca página: eu, mamãe e papai no parque do Pinocchio. Mamãe estava radiante este dia. Tinha sido o dia mais feliz da minha vida até então.
Continuei folheando o livro e acabei lendo ele inteiro de um só fôlego. Quando Genaro e as meninas acordaram, recomecei com a leitura, agora em voz alta para eles. Ao terminar, segui falando sobre tudo que lembrava daquela época e especificamente sobre aquele dia no parque. Enchi tanto a paciência deles que finalmente uma das garotas nos disse “ei, por que a gente não visita o lugar? Olha só, continua funcionando”. Tomo o celular da sua mão e navego pelo site do parque.
– Tenho uma ideia melhor – diz Genaro mostrando um anúncio no computador. – Por que você não compra a casa do Pinocchio? Olha só, está à venda.
E realmente estava. O que Genaro chamou de “a casa do Pinocchio” era na realidade uma mansão histórica do século XVII onde viveu Carlo Collodi, autor do clássico. Por módicos 19 milhões de euros, poderia ser dono da propriedade que inclui uma mansão principal, um palacete de verão, um dos mais significativos exemplos de jardins cenográficos do período barroco tardio, além de um restaurante e até uma casa de borboletas! O parque fica há poucos metros e ao que parece todo o povoado depende do turismo do lugar. Vivem do Pinocchio. Comprar a Villa Garzoni era uma piada, mais uma das muitas anedotas de Genaro. Mas, sem querer, ele tocou uma corda muito profunda que já estava ressoando por cerca de 24 horas de delírio saudosista, depois de sabe-se lá quantos dias de loucura, depois de anos de tédio e toda uma vida sem sentido. Era isso. Era disso que precisava!, algo espontâneo e inocente, algo puro e cheio de vida. Precisava redescobrir o Pinocchio dentro de mim, precisava mudar, precisava de um marco que ajudasse-me a divisar essa mudança. A Villa Garzoni seria o palco de um recomeço. Liguei para o senhor Lupo e lhe disse que queria comprar a propriedade. Custou-me um pouco convencê-lo de que não estava bêbado, porque na verdade estava. Tive que ligar de volta mais tarde e ele só levou a sério minha ordem quando ameacei demitir-lhe e finalmente prometi uma bela recompensa caso pudesse mudar-me para a casa no dia seguinte. Ele riu do meu absurdo e seu riso atiçou meu orgulho fazendo-me levar a coisa a sério:
– Senhor Lupo, dizem que com dinheiro e um bom advogado a gente consegue o que quiser. Como dinheiro neste caso não é o problema, espero que o advogado também não seja. Você nunca falhou comigo e nunca deixei de pagar. Temos um acordo, ou será que o velho lobo, sem perder o vício, já está perdendo o pelo?
“Dinheiro não é o problema” – essa é a senha que põe em marcha não apenas o senhor Lupo, mas praticamente toda gente, o sinal verde que faz correr o fluxo. Senhor Lupo gagueja um pouco. Já andou sondando a coisa entre uma ligação e outra e diz que comprar a propriedade não seria nenhum problema uma vez que o principal responsável pelo lugar foi amigo de meu pai. O difícil da situação era querer mudar-me no dia seguinte.
– Tente entender, Enzo. Comprar uma mansão histórica no valor de 19 milhões administrada por uma fundação nacional não é o mesmo que comprar um trailer.
Senhor Lupo estava no viva voz. Genaro e as garotas acompanhavam com muito interesse toda a história. Estava sem dormir direito há alguns dias, embriagado por todo o tipo de drogas e principalmente pelas mais fortes entre elas: uma poderosa nostalgia infantil, um orgulho incurável e um senso de humor absurdo.
– Você tem razão, senhor Lupo. Se fosse um trailer, sairia da loja com ele logo depois de pagar. Mas como é uma mansão cheia de burocracia, vou dar um dia a mais para resolver tudo que for necessário. Depois de amanhã, espero estar assinando papéis na minha nova residência.
– Mas Enzo...
– Mas nada, Lupo. Você conhece as regras. Eu pago, você se vira. Até logo.
Desliguei o telefone. Genaro sorria com o canto da boca. As meninas olhavam-me como se eu fosse maluco. Ficamos na expectativa por algumas horas até o telefone tocar novamente. Era o senhor Lupo dizendo que o sinal estava verde. Não pude evitar uma comemoração infantil, como se tivesse feito um gol. As meninas caíram na risada. Por uma noite, fui feliz como uma criança, a ponto de contagiar a todos. Por uma noite, não éramos mais náufragos. Vivíamos em um mundo onde tudo era possível, um conto de fadas. Por uma noite, sentíamos como se fôssemos amigos de verdade.
Foi assim que adquiri a Villa Garzoni.
Dois dias depois, estava assinando papéis na habitação onde se hospedou Napoleão Bonaparte.
Foi difícil conciliar o sono na primeira noite que passei no casarão. Sentia a sobriedade como um delírio. O fígado, mal acostumado, cobrava pelos mesmos caprichos dos últimos dias. As têmporas, qual tambores, marcavam o compasso daquele meu corpo embarcação marejando suores frios. Esperava que um passeio noturno pelo jardim pudesse desanuviar minha mente da ressaca. Desci pela Rua dos Pobres, passando pelas estátuas da velha e do casal de camponeses. Cruzei o bosque de carvalho até a escadaria da fonte e passei direto pela gruta de Netuno. A lua estava em quarto minguante, o que permitia-me ver, para minha surpresa, uma silhueta solitária encurvada sobre o jardim. Minha reação normal seria evitar o contato com um empregado, ainda mais considerando minha indisposição naquela hora. Inobstante, sem saber bem o porquê, ouvi minha própria voz dando boa noite àquela sombra.
– Que tal amigo, não acha que é um pouco tarde para cuidar das flores?
– Nunca é tarde para cultivar um jardim.
Foram as primeiras palavras que ouvi da boca de Don Giovanni e as escutei como um eco, custou-me compreender o significado. Um pequeno foco de luz utilizado pelo jardineiro iluminava metade do seu rosto, exatamente como o sol (do outro lado da Terra) iluminava metade da lua. Fiquei preso no brilho intenso do seu olhar. Perdi completamente a fala, esqueci meu mal-estar. Pasmo, tive a estranha sensação de ser uma das estátuas do jardim.
– Que foi, o gato comeu sua língua, Enzo? – ele disse com um sorriso aberto, quase infantil. – Entendo porque você dá nome às suas coisas: ao seu jato, ao seu carro. Você acha mais fácil lidar com elas do que com as pessoas, não é mesmo? – Sua risada despertou-me um pouco do meu transe.
– Como o senhor..?
– Pode me chamar de Giovanni. Sabe, esta é uma boa hora para plantar pois as plantas estão adormecidas. É como transportar uma criança no colo do sofá até a cama. Além do mais, é a época certa e a lua perfeita para plantar bulbos como a tulipa, o jacinto e o narciso. Este último me lembra você.
Tinha um milhão de perguntas para fazer àquela figura misteriosa que apesar do traje de jardineiro tinha o porte de um rei. Porém ele mantinha-me sob um estranho encantamento e eu só podia seguir com seu jogo:
– É mesmo, por que? – balbuciei sem jeito.
– Não é óbvio? A flor toma este nome emprestado da famosa figura mitológica. “Narciso” vem da palavra grega narkào que quer dizer narcótico, referindo-se a grande beleza e fragrância embriagante. Sua beleza, Enzo, é como a flor do narciso; e seu poder é seu aroma entorpecente.
Não sabia o que dizer nem o que pensar. Não lembro de ter ficado alguma vez assim sem palavras, ainda mais diante de um empregado. Poderia esperar qualquer coisa de um reles jardineiro, menos uma análise etimológica do grego. Ele continuou:
– As plantas nos ensinam muito. Tome as bulbosas como exemplo. Seus bulbos são reservatórios de energia que lhe permitem sobreviver às adversidades. Nós também somos capazes de armazenar energia e atingir a equanimidade. Quando a terra é generosa, nos alimentamos dela; e quando o medo, o frio e a fome nos assolam, podemos usar nossos recursos armazenados.
Senti uma pressão em um ponto bem abaixo do meu umbigo, acompanhada de uma peculiar sensação de vertigem, como se caísse para dentro de mim mesmo.
– Cada um destes bulbos necessita de uma certa profundidade para expandir suas raízes. O jacinto se contenta com 13 centímetros. Já a tulipa, necessita 17. O narciso é o que demanda mais profundidade: 23 centímetros. Do mesmo modo, a cada pessoa corresponde um nível diferente de aprofundamento na investigação da vida. Enquanto uns rastejam à superfície do cotidiano e espalham suas raízes pelo mundo das aparências, outros não suportam o raso e precisam ir mais fundo para crescer mais alto.
Um nó havia se desatado no meu estômago. Não sentia dor, não sentia alívio, não sentia nada. Apenas uma sensação de claridade e de vazio. O tempo parecia suspenso. Quando tento descrever aquele instante, vejo uma gota de orvalho qual joia incrustada numa pétala ou [ ].
Uma lufada de vento cresceu entres os arbustos, virou um rodamoinho que brincou no canteiro e ergueu folhas rodopiantes. Don Giovanni deu de ombros como quem diz “pois é” e debruçou-se outra vez sobre o jardim. Murmurava em uma língua desconhecida o que parecia uma estranha canção de ninar para as plantas. O encantamento havia passado: sem o farol do seu olhar, meu pensamento voltava à deriva, ao seu vai e vem habitual.
– Parece que o outono começou de verdade, hoje está bem mais frio que ontem. Tenho que ir, tenho um compromisso amanhã logo cedo. Foi um prazer conversar com você, senhor... Giovanni, certo?
Enquanto depositava um bulbo em uma cavidade ele me respondeu sorrindo e cantarolando sem desviar os olhos do que estava fazendo:
– Você pode enganar os outros e a si mesmo, Enzo, mas a morte... ninguém engana.
11 Perneta em italiano.