Читать книгу Aterrador - Renato da Silva Moreira - Страница 13
Оглавление2. Os ingleses conquistaram o mundo porque não aguentavam mais a própria cozinha.
Acabo de chegar de viagem e encontro o Mondrian que havia encomendado meticulosamente posicionado por trás da minha mesa como havia instruído. Talvez ficaria melhor uns vinte centímetros mais abaixo. O original é bastante impressionante em sua perfeição de traços e em seu equilíbrio de cores. Mas não sei. Na foto parecia diferente, mais vivo.
Abro minha caixa de entrada e deleto mais da metade dos e-mails sem nem mesmo ler. Isso porque Zeleide já fez uma pré-seleção. Com tanta porcaria, imagino quanto tempo a pobre deve dedicar na limpeza da caixa. Vou direto ao e-mail que ela prepara com os deveres principais. No final da lista, está o seu toque feminino de humor, onde ela aponta amenidades curiosas. Dessa vez, uma matéria sobre os solteiros mais cobiçados da praça. Segue a burla:
Enzo di Fabbri
No auge dos seus 27 anos, [ ] de altura, [ ] kg, com seus lindos cabelos [ ] e olhos [ ], Enzo é muito mais do que um rostinho bonito. Por trás dos óculos que lhe emprestam um charme todo especial, se esconde um rapaz sereno, educado e até um pouco tímido, com fama de ser muito generoso e gentil. Exímio jogador de xadrez, já participou com mérito de competições nacionais e internacionais. Além de ser grande conneisseur de vinhos, Enzo também se interessa por gastronomia e quem já experimentou aprova seu talento na cozinha. Como sua ex, Lorena Vivace, capa do nosso último volume. “Enzo é o tipo de homem que faz a gente se sentir segura. Além de preparar fiori di zucchini como um verdadeiro chef”. Quando não está exercendo a liderança da gigante industrial Fabbri, Enzo tem mania de consertar coisas. Aficionado por tecnologia, quando criança costumava desmontar os eletrodomésticos da casa para ver como funcionavam por dentro. Uau! Com tantas qualidades e hobbies curiosos devem aparecer muitas pretendentes necessitando de um “conserto”. Pelo menos as meninas aqui da redação adorariam ser desmontadas e vistas por dentro por esse intelectual certinho.
Intelectual? Para essas meninas, jogar xadrez e desmontar coisas é ser intelectual. Zeleide realmente sabe como me fazer rir. Vou dispensá-la mais cedo hoje.
E esse é bem o tipo de comentário que Lorena faria. Sempre preocupada com seu bem-estar e com sua barriga. “Faz a gente se sentir segura”. “Certinho”. “Sereno e educado”. Claro que a fortuna por trás dos meus atributos faz tudo virar lisonja. Sem os meus recursos, certamente leríamos “nerd panaca sem sal e sem graça”. Estou cansado dessa figura de bom moço. Todos me tratam como se nada de extraordinário pudesse vir de mim. Sinto-me o legítimo representante do status quo. Sou tão metódico que até meu lazer é planejado sistematicamente. Como espero surpreender aos outros, se sou incapaz de surpreender a mim mesmo?
E pensando bem, para que abismar estas formigas? Já chega a responsabilidade de manter tudo isso em ordem. Acho que uma semana não basta, preciso de mais tempo, preciso de um retiro. Buscar alguma coisa que me mantenha vivo. Posso muito bem deixar tio Gildo tocando o barco. Não é isso o que ele sempre quis? Ter a empresa para ele e favorecer a Luigi? Claro que teria que tomar providências para manter o controle mesmo a distância e proteger a cadeira de presidente contra um possível golpe.
Queria deixar-me levar pelo simples entusiasmo de estar vivo. Algo mais ingênuo, e quem sabe mesmo infantil. Ter a sensibilidade dos verdadeiros artistas, que parecem sentir a vida em cada detalhe. Sinto por dentro um vazio como se [ ]. Sofrer. Acho que mesmo sofrer de verdade seria melhor do que essa apatia. Não há mel sem fel.
Intelectual... ser intelectual requer engajamento, seja político, estético ou espiritual. Saber harmonizar um cabernet com tal carpaccio ou como dar um xeque-mate em dez movimentos não trará nada de significativo para a humanidade. Mas o que estou dizendo? Cinco minutos atrás só queria livrar-me das minhas responsabilidades e agora já quero mudar o mundo.
Cabeça vazia, oficina do diabo. Preciso pensar em uma estratégia para tirar-me desta indiferença. Nota mental: fazer uma lista com... Aqui estou eu mais uma vez planejando tudo. Para o diabo com as listas!