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1 Línguas pluricêntricas do ponto de vista teórico-metodológico – O caso do Português

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O conceito de línguas pluricêntricas remonta à obra de Michael Clyne (1992a), na qual estas eram definidas como línguas com ‘diversos centros interativos, providenciando cada um uma variedade nacional com, pelo menos, algumas normas próprias (codificadas)’ (cf. Clyne 1992b, 4). A definição proposta por Clyne mantém-se bastante vaga e geral, podendo abranger constelações pluricêntricas bastante distintas. Contudo, a complexidade da realidade linguística das línguas em causa apresenta alguns desafios para a categorização derivados da definição proposta.

Deste modo, temos por um lado constelações nas quais a respetiva norma abrange territórios coincidentes com fronteiras de estados nacionais, nomeadamente no caso do Português do Brasil (PB) e do Português Europeu (PE) ou do Inglês Norte-Americano e do Inglês Britânico e casos nos quais, devido à vizinhança geográfica dos respetivos estados nacionais, é quase impossível encontrar peculiaridades linguísticas que tornem evidentes a existência de normas nacionais, sugerindo a existência de normas geográficas, como, por exemplo, no território do delta do La-Plata na América Latina, com Buenos Aires como centro normativo, no caso do Espanhol (cf. Oesterreicher 2001, 310). Se atendermos ainda ao Francês com as suas particularidades no Québec e a, todavia, fraca normatização das caraterísticas desta variedade, motivada pela política linguística e cultura linguística monocêntrica praticada por Paris que motiva a orientação do Francês na Suíça, na Bélgica e no Luxemburgo, por exemplo, segundo a norma do français hexagonal de Paris, não resta qualquer dúvida, que atendendo à pluralidade de constelações sociolinguísticas e contextos variacionais, o conceito continua a oferecer o potencial e a necessidade para mais estudos. A heterogeneidade de línguas definidas como pluricêntricas motiva diferentes interpretações e acepções do conceito em si. Ainda assim, o conceito é bastante pertinente do ponto de vista metodológico, pois falar do PB como variedade sintópica ou dialeto em relação ao PE seria inequivocamente erróneo. Não se trata de um dialeto, mas de um sistema próprio. É de salientar uma quase total ausência de interferências do PE no PB (cf. Pöll 2012, 35) nos tempos que correm e a emancipação da norma do PB, que revela diferenças linguísticas profundas, que constituem um conjunto de variantes, que formam uma variedade própria, com um sistema diafásico, diastrático e diatópico independente e alheio à norma do PE. Isto é, nas variedades do PB marcas diassistemáticas, tomam como ponto de referência uma norma-padrão, que não é a do PE. O conceito de pluricentrismo define deste modo um processo de consolidação de dois sistemas distintos dentro de uma mesma língua histórica, revelando este processo diversas etapas, correspondentes a diferentes níveis de consolidação das respetivas línguas (cf. Meisnitzer 2013).

Assim, enquanto bicha no PB é uma palavra com uma marcação diassistemática pertencendo a um estilo linguístico baixo, com o significado ‘homem homossexual’, no PE é a palavra neutra e não-marcada diassistematicamente para ‘fila’. Ao mesmo tempo, o lexema crocodilo apenas serve para designar o animal no PE, enquanto que no Brasil é um termo utilizado frequentemente no discurso de proximidade (cf. Koch / Oesterreicher 2007) para designar um ‘homem homossexual’. O mesmo podemos observar para o lexema rapariga, que em Portugal designa ‘jovem do sexo feminino’, sendo o termo neutro, sem qualquer marcação diassistemática para ‘moça’, enquanto que no Brasil é um termo diafasicamente marcado como baixo, para designar ‘amante’ ou ‘prostituta’, tendo um sentido pejorativo. Trata-se portanto de lexemas que existem em ambas as variedades, com valores diassistemáticos distintos. As diferenças não se cingem ao domínio do léxico, também a nível fonético-fonológico, morfossintático, semântico-lexical e pragmático são evidentes1, não podendo ser ignoradas na aprendizagem do Português como língua estrangeira, sob pena de causar situações de grande embaraço ao falante não-nativo e de dificultar a sua interação comunicativa. Deste modo, as diferenças entre o PE e o PB são de caráter estrutural tão profundo que temos de falar de dois sistemas para o PE e o PB, respetivamente, segundo Coseriu (1970)2, ainda que obviamente se trate da mesma língua histórica, daí o termo de variedades e não de variantes, restrito ao uso para marcações dentro do diassistema de uma variedade.

Sintetizando os argumentos teóricos que legitimam a classificação de uma língua como pluricêntrica, podemos, com Bierbach (2000, 144-147), destacar que uma língua pluricêntrica se carateriza pelos seguintes parâmetros:

1 Existência de um centro urbano com função de modelo linguístico e ativo em matéria de política linguística, determinando a formação, desenvolvimento e expansão da norma;

2 Associação da norma a um estado nacional ou seja a uma identidade nacional coletiva, no qual a língua nacional serve de marco de orientação para domínio discursivos, distância comunicativa, para os meios de comunicação social e para o sistema escolar (cf. Mateus/Cardeira 2007, 30);

3 Codificação desta variedade, que serve de ponto de referência às variantes marcadas dentro do respetivo diassistema, em dicionários e gramáticas e eventualmente sob forma de regras ortográficas próprias.

Sobretudo o ponto (3), segundo Bierbach (2000) é fulcral, pois é indício da consciência colectiva da comunidade linguística da existência de um centro normativo endógeno e da distância em relação a outras variedades (nacionais).3 Oesterreicher (2001) relativiza o ponto (2), defendendo que as variedades, não têm necessariamente de coincidir com marcos de territórios nacionais, o que todavia tem vindo a ser alvo de crítica, pois apesar de uma proximidade linguística, nomeadamente, das regiões no delta do rio La-Plata, tal não invalida o potencial de identificador nacional de um indivíduo originário do Uruguai, que facilmente seria identificado por um argentino, segundo informantes questionados. Assim, Pöll (2012, 40) sugere a existência de diversos níveis em que uma norma pode vigorar, considerando o pluricentrismo uma noção polifacetada, pois considera que temos casos de pluricentrismo a nível nacional, regional, podendo as zonas correspondentes abranger vários territórios nacionais e internacionais, podendo haver uma co-ocorrência de normas a diversos níveis.4 Do estudo apresentado por Oesterreicher (2001) importa acrescentar um quarto ponto crucial do ponto de vista linguístico para definição e identificação de uma norma que sirva de base a um diassistema próprio:

1 Um conjunto de elementos linguísticos neutral do ponto de vista da marcação diassistemática, que diverge de outras normas (nacionais) e que deve ser obtido mediante uma perspetiva descritiva (cf. Oesterreicher 2001, 308).

Um último ponto imprescindível na definição de línguas pluricêntricas, que até à data não mereceu a devida consideração é o papel dos meios de comunicação de massas para a emergência de uma norma (trans-)nacional (cf. Arden / Meisnitzer 2013):

1 Ainda que um processo de mudança linguística raramente seja desencadeado pelos media, estes contribuem de forma decisiva para a sua difusão e aceitação por parte da comunidade linguística em larga escala. Deste modo, os media desempenham um papel central na consolidação de normas, porque através destes as mudanças linguísticas são difundidas com grande rapidez, chegando a todo o lado, e devido ao acesso aos mesmos por parte de largas partes da população.

O papel dos media e, no caso de Portugal e do Brasil, sobretudo da televisão, no desenvolvimento da língua e das suas variedades pode ser definido do modo seguinte (Mateus / Cardeira 2007, 39):

A escola deixa de ser o único, ou o principal instrumento de educação. As novas gerações aprendem na televisão, na internet. A ortografia, a gramática, o vocabulário, fixaram uma norma que é, nos nossos dias, democraticamente difundida por um sistema escolar que chega a todos os recantos do país. Mas, mais que à escola, a responsabilidade pela difusão da norma cabe, agora, à televisão.

Para finalizar, importa ainda enfatizar que no caso de línguas pluricêntricas temos dois sistemas com pelo menos uma relativa autonomia relativamente um ao outro e que se desenvolveram dentro da mesma língua histórica, revelando ainda um grau significativo de semelhança (ao contrário, por exemplo, do Português e do Espanhol, que a dada altura emergiram do Latim). Definidos os critérios que nos permitem classificar uma língua como sendo pluricêntrica e face a alguns traços identificados, não resta qualquer dúvida de que o Português é uma língua pluricêntrica com pelo menos duas variedades: o PB e o PE (cf. Baxter 1992; Oesterreicher 2001; Pöll 2001; 2012). Deste modo, o PB apresenta um sistema diafásico, diastrático e diatópico independente e alheio à norma e às respetivas marcações diassistemáticas no PE, não existindo nos dias que correm praticamente qualquer tipo de influência do PE no PB. O processo inverso ocorre por influência das telenovelas da Globo, que retratam a alta classe média do Rio de Janeiro, permitindo ao mundo lusófono uma familiarização com a sua variedade falada. Os centros urbanos de proliferação da norma linguística são no caso de Portugal o eixo Lisboa – Coimbra, no caso do Brasil o eixo S. Paulo – Rio de Janeiro. O seu caráter modelo pode ser explicado pelo poder político-administrativo e pelo papel económico cultural das respetivas cidades.

O caso dos PALOPes afigura-se bastante mais complicado, dado os contextos de aquisição da linguagem, a independência de Portugal mais de um século mais tarde do que no Brasil, a falta de interesse político em fomentar uma política linguística própria e as dificuldades político-sociais vividas após a independência, nomeadamente os 30 anos de guerra civil em Angola. Ao mesmo tempo os fluxos migratórios na sequência deste mesmo conflito levaram a que um quarto da população angolana se concentrasse na grande área de Luanda, levando ao encontro de populações de diversas etnias e falantes de diversas línguas bantas, que utilizaram o Português (L2) como língua franca (Endruschat 2008, 87). Desde essa altura tem-se verificado um incremento da utilização do Português (cf. Castro 22006, 32). Existem fortes indícios para o desenvolvimento de uma norma endógena em Angola e em Moçambique respetivamente (cf. Arden / Meisnitzer 2013; Meisnitzer 2013). Deste modo, o Português utilizado nos respetivos países revela traços distintivos das demais variedades, caraterísticas do discurso de distância. Nos restantes países africanos dominam crioulos de base portuguesa (cf. Pereira 2006, 67). E também na Ásia o Português é uma língua circunscrita aos domínios comunicativos da proximidade (cf. Meisnitzer 2016), existindo paralelamente alguns crioulos de base portuguesa (cf. Pereira 2006, 67). O único caso em aberto é o de Timor-Leste, onde o Português é uma das línguas oficiais. Todavia seria prematuro falar de uma variedade própria, pois a independência é ainda demasiado recente, os materiais didáticos são facultados por Portugal e pelo Brasil, bem como os professores de Língua Portuguesa. Além disso, de acordo com o censo feito em 2010 apenas 595 habitantes falam Português como L1, enquanto que 449.085 falam um dialeto do Tétum como L1.5 O processo de génese de uma variedade nativizada do Português está portanto ainda longe de emergir e de se consolidar com caraterísticas que nos permitam indubitavelmente falar de um Português de Timor (cf. Cardeira 2006, 88; Costa 2005, 614sq.). O futuro do Português em Timor é desta forma, neste momento, uma incerteza.

No que concerne à didática o Português para Estrangeiros (L2 ou L3), a realidade pluricêntrica do Português continua a merecer apenas uma atenção marginal. Para tal basta contemplar um livro de Português para Estrangeiros, o que nos permite constatar rapidamente que as variedades são, na melhor das hipóteses, referidas de forma marginal e pouco sistemática, observação que pode ser generalizada aos manuais para aprendizagem das ditas línguas pluricêntricas como L2 (cf. Königs 2000, 86). Deste modo, os manuais brasileiros ignoram a realidade portuguesa e vice-versa. Antes de passarmos à necessidade de integrar o Português como língua pluricêntrica nas aulas de Português para Estrangeiros e algumas reflexões metodológicas, importa todavia salientar algumas das caraterísticas mais importantes das respetivas normas.

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