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5.2 Exemplo de uma análise a partir de um excerto de um texto literário

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Outra possibilidade é a de recorrer a textos literários com um grau de dificuldade moderado, como, por exemplo, O menino no espelho de Fernando Sabino (ex. 3), como sugerido por Pinto (21993, 19).1 Neste tipo de exercícios é de evitar a mera substituição de lexemas, pois as estruturas continuam, neste exemplo, a ser tipicamente brasileiras e o texto perderia a sua autenticidade, aumentando o risco de os alunos misturarem as respetivas normas e de serem introduzidos erros no significado do texto na altura da sua adaptação por parte dos professores na preparação dos respetivos exercícios ou dos autores dos manuais no caso de se tratar de equipas exclusivamente compostas por falantes nativos de uma das variedades (cf. Pöll 2000, 58sq., a propósito das variedades extra-europeias do Francês). Além disso, no caso de um suporte auditivo deve ser tido em conta que os leitores do texto sejam falantes nativos da respetiva variedade, evitando que, por exemplo, um leitor nativo do PE leia o excerto de um texto na variedade do PB, sob pena de perder a sua autenticidade (cf. Pöll 2000, 59).

Exemplo 3

 Vagabunda? Está me chamando (5) de vagabunda? Nabacinho é você, seu bicho ordinário! Não sei onde estou que não te corto o pescoço, asso no espeto e como, ouviu? E ainda chupo os ossinhos um por um!

 Ela correu de novo os olhos em torno:

 Por falar em comer: quéde a galinha? Já está na hora de fazer o almoço. Onde é que ela se meteu?

 Não sei.

 Você não estava brincando com ela ontem, menino?

 Isso foi ontem. Hoje eu não vi ela ainda.

 Será que ela fugiu? Ou alguém roubou?

 E ela olhou para o papagaio, cismada agora com o silêncio dele:

 Vai ver que é por isso que esse nabacinho (1) de uma figa estava gritando pega ladrão (4). Algum ladrão de galinha.

 Agarrei a ideia no ar, era a salvação:

 Isso mesmo! Quando eu estava ali no quintal vi um homem passar correndo Levava uma coisa escondida embaixo (3) do paletó (2). Só podia ser a galinha.

Fernando Sabino (1996 [1982]): O menino no espelho, 18sq.

Para começar a abordagem do texto e após contextualizá-lo na obra e esta na respetiva história literária e no respetivo contexto sociocultural brasileiro, seria interessante começar por ouvir uma cassete ou um CD áudio no qual o texto é falado por falantes nativos da respetiva variedade. De seguida poder-se-iam discutir particularidades da pronúncia do PB. Nomeadamente a palatalização de <d> ou <t> antes de <i> ou <e>, em ordinário, tio, pede; a semivocalização de <l> na coda da sílaba, por exemplo em beldade e quintal; a velarização do <r> na coda da última sílaba da palavra (ex. – fazer; seguir) e o fechamento de <e> e <o> abertos no PE (ex. – oxigénio e tónica) (cf. Pinto 21993, 19). Embora nesta passagem não haja exemplos, seria ainda importante advertir para a utilização do [i] epentético no BP, para desfazer clusters consonânticos e obter sílabas harmoniosas prototípicas (consoante + vogal), por exemplo, e ab[i]surdo e p[i]siquiatra (Pinto 21993, 19).

Após a leitura do texto, poder-se-ia começar por uma abordagem das especificidades lexicais, nomeadamente de lexemas, que o PE desconhece, tais como: nabacinho (1) (‘tonto’, ‘palerma’), caraterístico da proximidade comunicativa, marcado diafasicamente como baixo, ou paletó (2) (‘casaco (curto)’, ‘jaqueta’), preposições distintas embaixo (3) (‘debaixo de’) e até mesmo expressões idiomáticas fixas, tais como pega ladrão (4) (PE – ‘agarrem o ladrão’) ou não sei onde estou (PE ‘não sei quem sou para ’ ou ‘não sei por que é que ’). Um exercício para aplicação e gestão de conhecimentos, relativamente às diferenças lexicais pode ser feito logo após a leitura do texto, por exemplo, com exercícios de escolha múltipla.

De grande interesse para além da variação do valor semântico são, no entanto, aspetos gramaticais, que podem ser abordados mediante exercícios de escolha múltipla, preenchimento de lacunas ou redação, adaptando as frases às normas do PE. Numa primeira aproximação poderá também ser recomendável facultar um texto com uma explicação das respetivas especificidades.

Deste modo, no exemplo em análise (ex. 3) seria de salientar o uso distinto de formas pronominais, mais propriamente o domínio da próclise no caso de pronomes átonos (está me chamando (5) – PE está a chamar-me) e a preferência pelo objeto nulo (alguém Ø roubou – PE alguém a roubou; pega Ø ladrão – PE pega o ladrão) ou pela forma plena do pronome pessoal ou seja o pronome pessoal reto ou pleno para expressar o complemento direto (eu não vi ela – PE eu não a vi). Além disso, conforme se pode verificar em (5) seria de destacar o uso do gerúndio para expressar o caráter contínuo e progressivo de uma ação verbal no PB, adotando uma perspetiva interior sobre a ação verbal, contemplada no seio do seu decurso, sem focalizar o início e o fim da mesma (ex. – não estava brincando – PE não estava a brincar; estava gritando – PE estava a gritar), que no PE é expresso pela construção estar a + infinitivo do verbo principal. Esta preferência pelo gerúndio está também patente em construções em que o verbo desempenha uma função modalizadora (passar correndo – PE passar a correr) para expressar o modo como a ação foi desempenhada. No domínio da pragmática é de destacar a supressão da segunda pessoa do singular substituída pela forma você + verbo conjugado na terceira pessoa do singular (EstáØ me chamando de vagabunda? – PE Estás-me a chamar de vagabunda?). Esta supressão no paradigma verbal resulta na indiferenciação entre a forma de proximidade e de distância comunicativa nas formas de tratamento, caraterística do PB à semelhança do inglês. No PE a utilização de você para uma pessoa hierarquicamente superior, quer seja a nível profissional, quer seja social é completamente inaceitável e alvo de repreensão e correção (cf. Merlan 2011, 198sqq.).2 Nos exemplos até aqui discutidos, trata-se de utilizações caraterísticas da norma culta falada do PB.

Importa distinguir estas formas, daquelas que caraterizam a norma popular e que surgem, por norma, exclusivamente nas passagens dialogadas no discurso direto, para dar tonalidades de autenticidade à oralidade fingida (cf. Goetsch 1985) e ao mesmo tempo caraterizar personagens pertencentes às classes populares, como a cozinheira neste excerto. De destacar: a supressão de nexos mediante preposições (– Está me chamando Ø vagabunda? – PE Estás-me a chamar de vagabunda?) e o facto de BP nas normas populares faladas no caso de substantivos compostos, nos quais o segundo elemento serve para determinar o primeiro, apenas marcar o plural no primeiro substantivo (ladrão de galinhaØ – PE ladrão de galinhas). Uma repercussão desta regra é o facto de substantivos genéricos à diferença do que acontece no PE, serem, em regra geral, utilizados no singular.

Mediante os exemplos apresentados, esperamos ter deixado claro que uma boa abordagem de uma língua pluricêntrica passa sempre por uma aproximação às suas variedades partindo de textos autênticos, inscritos na respetiva ideologia, mentalidade e cultura, abordando diferenças de forma abrangente e evitando cingir-se a apenas um aspeto, sob pena de aumentar as interferências nos estudantes de língua não-materna, dado não estarem integrados numa comunidade linguística da respetiva, língua com os seus mecanismos reguladores automáticos de correção por parte de outros falantes, se a respetiva forma violar as normas do respetivo sistema, no sentido de Coseriu (1970). No caso da integração de excertos literários, importa escolher obras com umas passagens dialogadas e alguma diversidade de registos, dada a proximidade da norma-padrão do discurso escrito do PB à do PE, ainda nos dias que correm.

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