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MARINA
ОглавлениеI. APPARIÇÃO
Como esse olhar é dôce!
Dôce da mesma sorte
Como se nunca fosse
Toldado pela morte:
Como se alumiasse
O sol ainda em vida
As rosas d’essa face…
Agora carcomida.
Colhesse-as eu mais cedo
E logo que alvorece;
Já não tivesse medo
Que a terra m’as comesse.
Mas pura, como a neve
Que ás vezes cahe na serra,
É que a nossa alma deve
Tambem voar da terra.
Gelasse a morte fria
A mão profanadora
Que te ennublasse um dia
A luz que dás agora.
É n’essa côr tão linda,
Rosa da madrugada!
Que sinto a alma ainda
Andar-me enfeitiçada.
Se um dia nos meus braços
Te desbotasse as côres,
Passavam os abraços…
Passavam os amores!
Oh! não: mil vezes antes
No céo lá onde habitas,
E os rapidos instantes
Que vens e me visitas
N’este degredo nosso,
Que tanta gente estima,
E eu, só porque não posso,
Não largo e vou lá cima.
Vem tu cá baixo, abala,
Deixa em podendo o collo
Tão terno que te embala,
E vem-me dar consolo.
Como essa imagem pura
Ah! sobrevive ao nada
E escapa á sepultura,
Tão fresca e perfumada!
Nunca uma noite eu deixe
De estar a vêr que existes,
Em quanto me não feche
O somno os olhos tristes.
E n’esse largo espaço
Que te não vejo, espero
Lhe contes o que eu passo
N’este aspero desterro:
Que assim que te não veja
É noite fria e escura,
Noite que mette inveja
Á mesma sepultura!
II. SAUDADE
Em acordando agora,
O meu contentamento
É vêr em cada aurora
Um dia de tormento!
Podesse eu dar-te a prova
Dos dias que me esperam,
Lançando-me na cova
Onde elles te pozeram!
Lançassem-me algum dia
Ao pé, que de repente
O coração te havia
De ainda pular quente…
A face cobrar logo
A fórma e côr perdida,
E a bocca toda fogo
Ah! inspirar-me a vida!
Supplíca, ó anjo! implora
Ao Pai universal
Que me deixe ir embora
D’este horroroso val
De lagrimas amargas,
E turvas de tal modo,
Como umas nuvens largas
Que tapam o céo todo!
III. ETERNIDADE
Inferno e céo, conforme
A nossa fé, confesso
Que é um mysterio enorme,
É um mysterio immenso.
Mas um mysterio é tudo:
Folhinha d’herva, e estrella,
Não ha comprehendêl-a!
É contemplal-a mudo.
E a herva, como existe,
A mim quem m’o diria,
Se a luz que me alumia
Nem sabe em que consiste?
Mas uma coisa sabe
O que a cabeça ignora
– O coração… que mora
Em peito onde não cabe.
Ha uma luz mais clara
Que a luz do pensamento:
A d’essa imagem cara…
A d’este sentimento!
IV. … 21 DE SETEMBRO
Ha uma hora ou mais,
Marina! que contemplo
A casa de teus paes
Que é para mim um templo.
Está a porta aberta,
E vejo alumiada
A parte descoberta
Da casa da entrada.
Lá andam a passar
Do quarto onde acabaste
Á casa de jantar
Os vultos, que deixaste.
Os vultos, que os vestidos
Tão negros que pozeram,
De luto, tão compridos,
Não sei que ar lhes deram!
A tua bella irmã,
A tua piedade,
A rosa da manhã,
A flôr da mocidade,
Quem lhe diria a ella,
Tão cheia de alegria,
Que haviamos de vêl-a
Assim já hoje em dia!
É esta vida um mar,
E bem se póde a gente,
Marina! comparar
A rapida corrente,
Que vai de lado a lado
Por esses valles fóra
Sem nunca lhe ser dado
Ter a menor demora.
Pára, quando a engole
Aquelle mar sem fundo;
Nem pára; é como o sol
E como todo o mundo…
Ahi não pára nada,
Tudo viaja e anda,
Que a ordem lhe foi dada,
E dada por quem manda.
Chega a corrente lá,
Engole-a logo a onda:
Depois, que é d’ella já?
A nuvem que responda.
Que a nuvem que nos passa
Pela manhã nos ares,
Era hontem a fumaça
Que andava n’esses mares;
E a nevoa, que tu vês
Nas ondas fluctuantes,
Corria-nos aos pés
Talvez um dia antes.
A agua é que no giro
Em que anda eternamente
Não deu nunca um suspiro
Em prova de que sente.
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