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Um

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Warwickshire, 1223

Os servos do Castelo Frechette e os arrendatários das terras do condado deveriam estar ocupados com as suas funções naquele dia ensolarado de Setembro, ou a prepararem-se para a colheita, plantando as sementes de Inverno, armazenando madeira, ou a realizar qualquer outra tarefa associada à festa de São Miguel. No entanto, a multidão reunida no pátio interno do castelo permanecia tão silenciosa e submissa como se aguardasse uma execução pública. Considerando-se o verdadeiro motivo para a presença daquelas pessoas ali, a comparação não era tão absurda.

Tinham-se passado apenas quatro semanas desde a morte do Conde de Westborough, e o jovem rei já conseguira despojar a família Frechette das suas terras para as entregar a um nobre arrogante e de família desconhecida, o infame barão DeGuerre. A chegada do nobre era esperada para o início da tarde.

De pé, imóvel no pátio interno do castelo da sua família, lady Gabriella Frechette procurava aparentar serenidade, o que não era fácil pois ouvira vários comentários a respeito do barão DeGuerre, poucos deles agradáveis.

Os homens chamavam-no de «filho do demónio» e outras expressões não exactamente lisonjeiras. Ninguém sabia de onde é que o barão surgira. Ele destacava-se pelo facto de vencer todos os torneios nos quais participava; recebera o título ao aliar-se a William Marshal, e fizera fortuna ao casar-se, por duas vezes, com mulheres nobres e ricas, bem mais velhas do que ele.

A sua ambição desmedida era conhecida por todos, bem como o rigor do regime que impunha aos seus numerosos arrendatários.

Na opinião das mulheres, a combinação da força física do barão DeGuerre com a sua arrogância e o ar distante eram irresistíveis. Viúvo pela segunda vez, ele escolhera como concubina a mais bela mulher de toda a Inglaterra, e vivia com ela em pecado mortal, sem se preocupar em fazer segredo.

Gabriella cerrou os punhos com força, dentro das mangas largas do vestido simples, tecido em casa, numa tentativa de controlar o tremor das mãos, quando um grito soou no alto das muralhas do castelo. O séquito do barão fora avistado no alto da colina.

O que é que aconteceria ao seu povo, sob o domínio de um homem como o barão DeGuerre?, pensou Gabriella, observando a multidão em expectativa. Ela apertou levemente os lábios, contrafeita, ao avistar Robert Chalfront, o meirinho que administrava o castelo, a andar de um lado para outro, apressado, certificando-se de que estava tudo em ordem para receber o barão, as suas tropas e servos. Era óbvio que alguns não sentiriam efeitos desfavoráveis. Chalfront faria o que fosse necessário para manter a sua posição privilegiada, e Gabriella perguntava-se como reagiria o barão à atitude servil do meirinho; se conseguiria ver o embusteiro mentiroso e desonesto que espreitava atrás da máscara de subserviência e adulação.

Desviando o olhar do insuportável meirinho, ela prestou atenção a William, o capataz do condado, que se encontrava ao lado de Osric, o cavaleiro, e Brian, o lenhador. Os três conversavam baixinho e lançavam olhares disfarçados e apreensivos na sua direcção.

O pai de Gabriella passara-lhe a noção da necessidade de se preocupar com os arrendatários, e os camponeses sempre apreciaram a generosidade do soberano e da sua família. A morte da mãe de Gabriella, anos antes, também fora sentida por todos, desde os cavaleiros do castelo até ao mais pobre camponês que preambulava pelas redondezas, a pedir esmolas.

Os cavaleiros, obviamente, já tinham partido. Começaram a deixar o castelo, um a um, a princípio, depois em grupos, após a morte do conde. Eles precisavam de encontrar outro senhor que lhes oferecesse abrigo e comida, em troca de lealdade.

A ponte levadiça foi descida e os enormes portões abriram-se para dentro. A multidão ansiosa olhou para a entrada no momento em que um turbulento cortejo entrou no pátio do castelo Frechette.

Apesar de Gabriella ter decidido ser forte, os seus joelhos começaram a tremer e a sua boca ficou seca; a sua atenção foi imediatamente atraída para o homem montado num saltitante cavalo negro, à frente do séquito. Ela já ouvira comentários sobre a aparência do barão, os cabelos longos, o rosto bonito; aquele homem alto, com um ar autoritário, não podia ser outro.

Os cachos castanhos tocavam-lhe nos ombros largos e o rosto estava barbeado. Ele tinha a postura de um guerreiro nato, e parecia um dos bárbaros celtas que ainda preambulavam pelas fronteiras do país. Trajava uma capa preta sobre uma túnica da mesma cor; as botas eram de couro, bem como o cinturão que sustentava a bainha da espada. O único ornamento que ele usava era um broche, a prender a capa ao redor do pescoço, e Gabriella notou que o cabo da espada também era de ouro trabalhado.

De modo geral, o barão DeGuerre possuía uma aura de invencibilidade e completo controlo de qualquer situação. Atrás dele, vinham os cavaleiros, montados em cavalos enfeitados com vestes coloridas. O metal das armas e armaduras brilhava ao sol. Inúmeros estandartes, empunhados por escudeiros a cavalo, agitavam-se na brisa suave de Outono. A seguir, vinham os soldados infantes e os cães de caça. E atrás, várias carroças com bagagens que encheram o pátio interno, parecendo transformá-lo numa verdadeira praça de mercado, tamanha a quantidade de gente e o tumulto.

O barão desmontou do seu formoso cavalo e caminhou até ao centro do pátio. Surpreendentemente, ele não parecia altivo, ou orgulhoso, apenas indiferente à comoção que sentia à sua volta. Gabriella teve a impressão de que ele era um homem solitário, no meio da multidão. Tanto quanto ela se sentira, no dia da morte do pai.

O barão girou lentamente sobre os calcanhares, estudando o castelo como se fosse um negociante disposto a oferecer o preço mínimo, e Gabriella lembrou-se do motivo que o levara até ali.

Ao contemplar a construção que circundava o pátio, o coração de Gabriella encheu-se de orgulho daquele monumento dos seus pais, um orgulho que quase superava a dor de saber que um homem como o barão DeGuerre se apossaria da propriedade. Para ele, aquele lugar não passava de uma simples fortaleza.

Mas o castelo possuía outros pontos fortes, além de ser uma construção sólida. Era uma obra arquitectónica de beleza singular. O pai de Gabriella não se contentara com as utilidades normandas, quando se tratava do conforto da sua família; ele decorara e embelezara o castelo, fazendo questão de utilizar os mais finos materiais. As molduras de pedra de todas as portas e as passagens eram lindamente esculpidas, e até mesmo a lareira de pedra da cozinha fora decorada com formas de frutas e filões de pão trançados. A capela situada na torre norte exibia um magnífico vitral, e o solário do seu pai, na torre sul, recebia a iluminação do dia através de três janelas de vidro. Os aposentos do andar superior ao salão principal eram espaçosos, revestidos de madeira. As paredes do salão tinham sido estucadas e pintadas, de forma que, mesmo sem as tapeçarias, eram lindas de se ver. Todos os muros de pedra externos do castelo tinham sido caiados e, naquele princípio de tarde de Setembro, brilhavam à luz do sol, como se fossem feitos do mesmo mármore alvo que revestia o piso do dormitório dos pais de Gabriella.

Antes que Gabriella desviasse o olhar, os olhos do barão detiveram-se nela. Ela prendeu a respiração, e o seu corpo inteiro retesou-se. Com os membros entorpecidos, ela notou que o rosto do barão não denotava prazer ou desaprovação, orgulho ou desprezo. Na verdade, Gabriella nunca observara uma expressão tão indecifrável. Ele limitava-se a olhar ao redor, os cabelos longos e a túnica comprida agitados suavemente pela brisa.

Por um momento, os olhares de ambos encontraram-se, e Gabriella sentiu que enrubescia. O barão, no entanto, sem demonstrar qualquer emoção, continuou a examinar o castelo.

Gabriella acalentara a esperança de que os rumores sobre o barão DeGuerre fossem exagerados e de que tivesse oportunidade para lhe pedir que a deixasse continuar a morar no único lar que conhecera. No seu desespero, chegara mesmo a imaginar que o barão aceitaria a sua ajuda e conselhos, uma vez que ela conhecia a fundo o castelo, as terras e os arrendatários.

Naquele instante, contudo, Gabriella compreendeu, com profundo desalento, que a sua esperança fora vã.

Com uma voz grave e desprovida de emoção, o barão começou a emitir ordens aos servos, escudeiros e cavaleiros, para que atrelassem os cavalos e descarregassem as bagagens. Tinha vários cavaleiros, alguns deles obviamente mais importantes que outros, e a atenção de Gabriella deteve-se nos quatro que tinham entrado a cavalgar ao lado do barão, dois de cada lado. Um deles era um homem de pele lisa e lustrosa, cabelos escuros e compridos como os do barão, com a diferença de que os usava puxados para trás; tinha um rosto bonito, apesar de pálido, e olhos estreitos e astutos, com sobrancelhas escuras e espessas; o sorriso era desdenhoso, arrogante, e as vestes e acessórios da melhor qualidade. Gabriella perguntou-se se a posição favorecida daquele cavaleiro no séquito significava que ele exercia alguma influência sobre o barão. Que os céus tivessem misericórdia dos seus arrendatários, se a sua suposição fosse correcta!

Ao lado dele, cavalgava um homem loiro, vestido numa túnica vermelha. À primeira vista, Gabriella teve a impressão de que não passava de um rapazinho, apesar da inegável força física. No entanto, quando o cavaleiro desmontou, ela notou que ele possuía linhas suaves ao redor da boca e dos olhos, e concluiu que devia ter aproximadamente a mesma idade do barão.

Gabriella achava a presença daquele homem reconfortante. Se o barão era tão cruel quanto diziam, teria ao seu serviço um homem com uma expressão tão agradável? Ou seria o poder e a reputação do barão DeGuerre que atraíam seguidores de todos os tipos, bons e maus?

A segunda dupla de cavaleiros era composta por um homem não exactamente franzino, porém menos corpulento que os demais, com um ar sonhador, e de outro mais alto e forte. Os dois comunicavam entre si através de poucas palavras e gestos, como se fossem velhos amigos que se conhecessem a fundo.

Foi então que Gabriella avistou a mulher que só podia ser lady Josephine de Chaney. Era lindíssima e tinha uma pele maravilhosa, aveludada e levemente corada; os olhos verdes e grandes eram emoldurados por cílios longos e espessos; os lábios eram cheios, rosados. Ela usava um manto azul-turquesa e uma tiara que cintilava à luz do sol, sobre os cabelos loiros sedosos. Não era de admirar que tivessem sido compostas canções a exaltar-lhe a beleza clássica e a graciosidade, e que alguns homens tivessem morrido a competir pelo seu amor.

Gabriella alisou a saia do seu vestido simples e, durante um momento, desejou não ter vendido todas as suas roupas finas. Logo, porém, afastou o arrependimento que não condizia com a sua personalidade.

Os pensamentos de Gabriella foram interrompidos pela voz pacífica, porém autoritária, do barão, que ecoou pelos quatro cantos do pátio mergulhado em silêncio.

– Onde estão os filhos do falecido conde? – exigiu ele.

«Chegou a hora», pensou Gabriella. Se ao menos Bryce estivesse ali, ao seu lado, em vez de em algum lugar na Europa, ainda ignorante do facto de que o pai morrera! Gabriella tinha a certeza de que o irmão teria evitado aquela situação terrível. Se não evitado, pelo menos adiado, indo conversar pessoalmente com o rei quando a verdadeira situação da fortuna do conde se tornara conhecida, quando ele se encontrava no seu leito de morte. Sozinha com o pai, Gabriella não tivera tempo de ir, ou dinheiro para enviar outra pessoa que intercedesse no seu nome.

Gabriella pestanejou para reprimir as lágrimas e ergueu o queixo, olhando para as paredes altas e para as muralhas da sua casa. Era a única representante da família naquele momento, e a única intermediária entre o seu povo e o barão DeGuerre; não podia esmorecer diante de um recém-chegado imoral e ambicioso.

– Sou lady Gabriella Frechette – anunciou, dando um passo em direcção ao barão e flexionando os joelhos numa graciosa mesura. – Seja bem-vindo.

Etienne DeGuerre possuía anos de prática a mascarar as suas emoções, e portanto não foi difícil disfarçar a surpresa. Ele percebera a presença daquela jovem, de pé entre os servos, e ficara impressionado com o olhar firme, que transmitia força e coragem, contrastando com a delicadeza das feições que a tornavam bonita, com o rosto emoldurado por um halo de cabelos escuros e ondulados, e com o vestido simples que parecia realçar-lhe a beleza natural com mais eficácia do que o mais fino dos trajes. Ele pensara que ela fosse uma aia, possivelmente mais um exemplo das regalias a que se permitira o devasso conde de Westborough; não detectara, à primeira vista, o ar altivo e gracioso de uma jovem que crescera no meio da riqueza, uma postura que não se deixara abater pelos recentes e desventurados acontecimentos.

A voz dela também era curiosamente intrigante, de um timbre baixo e levemente rouco, sem afectação, com uma franqueza que era rara numa mulher.

Etienne DeGuerre encontrara poucas mulheres que o tivessem impressionado até então, e aquelas que tinham conseguido essa façanha eram de uma beleza física gritante, como Josephine. De todas as que conhecera, somente outras duas possuíam tamanha serenidade, determinação e autoconfiança como aquela jovem. Uma fora a sua mãe; a outra era a nova esposa do seu vassalo de confiança, sir Roger de Montmorency.

Apesar de tudo, a expressão facial de Etienne não se alterou quando ele caminhou na direcção da jovem.

– Onde está o seu irmão?

– Isso gostaria eu de saber, pois ele não teria permitido que isto acontecesse – respondeu ela, bruscamente.

Etienne arqueou as sobrancelhas. Durante anos e anos, ninguém se atrevera a falar com ele daquela maneira, ou a usar aquele tom de voz.

Foi quando Gabriella cometeu outro erro, interpretando o silêncio do barão como uma oportunidade para continuar.

– Não acha que se esqueceu de algo? Como, por exemplo, a simples cortesia de uma palavra de condolência pelo falecimento do meu pai? – perguntou, com bons modos, mas num tom de voz irónico. – Ou talvez um agradecimento pelo facto da sua morte prematura o ter enriquecido?

Durante um breve instante, a indignação tomou conta de Etienne, fazendo-lhe o sangue fervilhar dentro das veias. A sua reacção emocional, no entanto, foi rapidamente controlada, e a sua expressão permaneceu impassível. Ele estudou Gabriella Frechette com a indiferença e a frieza que tinham levado alguns dos mais bravos cavaleiros a acobardar-se diante dele, um olhar que provinha da consciência de quem vira, fizera, vivera e sobrevivera mais do que a maioria dos homens, no passado e no futuro.

Gabriella Frechette recusou-se a desviar o olhar. Nem mesmo pestanejou. Permaneceu imóvel, enfrentando o olhar intimidador do barão.

Etienne não era um homem que se desconcertava com facilidade, e a sensação não lhe agradava. Ou Gabriella Frechette era uma mulher tola, ignorante do verdadeiro significado da perda do seu status, ou tinha a capacidade de manter a dignidade, apesar de todos os contratempos.

Pelo canto do olho, Etienne percebeu o esgar gozador de Philippe de Varenne. Sir George de Gramercie, distinto como sempre no seu habitual traje vermelho, limitava-se a contemplar a jovem, com compreensível fascínio. Donald Bouchard, a quem Etienne intimamente apelidava de «monge», aguardava pacientemente o desenrolar dos acontecimentos; e o amigo deste, o estouvado Seldon Vachon, não disfarçava o espanto. Os habitantes do castelo assistiam à cena, impassíveis.

Subitamente, Etienne compreendeu que aquela mulher, por si só, representava uma ameaça à sua autoridade. Mas o pai dela perdera o património gastando o que não devia em frivolidades, e criando um filho rebelde e irascível, que discutira com o pai e saíra de casa. Ele não estava errado ao aceitar a recompensa; ela estava errada ao acusá-lo. Gabriella Frechette teria de entender que deixara de ser a senhora feudal, assim como ele teria de deixar claro que aos servos não admitiria desobediência ou rebelião de qualquer tipo.

O barão estudou a sua oponente, consciente de que não havia necessidade de empunhar uma arma convencional. Para uma mulher orgulhosa como ela, o melhor ataque seria, sem dúvida alguma, a humilhação. Estranhamente, ele sentiu uma ponta de pesar por ter de ser daquela forma. Mas teria de ser; ele batalhara e sacrificara-se durante tempo demais para permitir que alguém, qualquer pessoa, lhe viesse corromper o poder.

– O que é que está aqui a fazer? – perguntou, com a calma controlada que os seus inimigos tinham aprendido a temer.

Os servos e arrendatários trocaram olhares e murmúrios ansiosos. Etienne notou que Josephine, que aguardava pacientemente a uma curta distância, observava a jovem com simpatia. O sorriso de Philippe de Varenne desaparecera, e sir George, pela primeira vez na vida, exibia uma expressão sombria. Apenas Donald e Seldon continuavam a aparentar indiferença.

– Esta é a minha casa – respondeu Gabriella Frechette.

– Não, já não é – retorquiu Etienne, serenamente.

Etienne detectou um brilho de contrariedade nos olhos de Gabriella e viu-a enrubescer. Não sentiu, contudo, qualquer sensação de triunfo; nunca achara gratificante vencer uma mulher numa batalha de palavras.

– Milorde, se me permite – interveio sir George, com uma leve expressão de censura. – Ajudarei lady Josephine com a bagagem.

– Como queiras – respondeu Etienne, dizendo a si mesmo que a desaprovação de George não tinha sentido. Com uma graciosa mesura, Josephine segurou o braço de George e ambos se dirigiram para a parte central da construção, onde ficava a entrada do salão. Os demais membros do séquito seguiram o exemplo e dispersaram-se, à excepção de Philippe de Varenne.

– Onde está o meirinho? – quis saber Etienne, desviando momentaneamente a atenção de Gabriella.

Um homem baixo e atarracado, de rosto redondo, saiu do meio da multidão que restara como uma flecha lançada por um arco, colocando-se diante do barão numa atitude que combinava humildade, auto-importância e medo.

– Sou Robert Chalfront, milorde – anunciou, num tom de voz estridente. – Sou o meirinho deste castelo há dez anos.

Etienne olhou para Gabriella Frechette e percebeu imediatamente que ela não gostava daquele homem, embora se esforçasse para não o demonstrar. Com a sua experiência, Etienne tinha a certeza de que ela detestava o meirinho. No entanto, Robert Chalfront estivera ao serviço do pai dela durante dez anos. Era um facto interessante e, talvez, uma vantagem adicional para Etienne.

– Podes continuar no cargo, Chalfront – declarou ele, tomando a decisão naquele exacto instante. – A continuidade da tua presença aqui, facilitará a transição do meu regime.

Um murmúrio abafado espalhou-se pelo pátio; se era de aprovação ou não, não interessava a Etienne.

Chalfront não reprimiu o suspiro de alívio que lhe escapou dos lábios enquanto se curvava diante do barão.

– Eu servi-lo-ei com todo o prazer, milorde. Dou-lhe a minha palavra. O capataz encontra-se aqui, e o lenhador, e...

– Espero nada menos do que tenho direito, de ti e de todos – interrompeu Etienne. – Quanto ao capataz e aos demais, vejo-os noutro dia. Agora, fala-me sobre o filho do conde.

Gabriella deu um passo em frente, com um brilho de desafio no olhar.

– Barão, não acha que este não é o lugar adequado para conversar sobre esse tipo de assunto?

Etienne olhou para ela durante um segundo, com a expressão séria.

– Não me recordo de me ter dirigido a si.

Um forte rubor coloriu o rosto de Gabriella e, depois de uma breve hesitação, ela baixou o olhar. Etienne virou-se novamente para o meirinho.

– Responde à minha pergunta, Chalfront – ordenou, imperturbável.

– Milorde, o actual conde de Westborough está...

– Já não existe nenhum conde de Westborough – observou Etienne.

– Sim... bem, milorde... Bryce Frechette encontra-se em algum lugar na Europa, no momento, e...

– Em que lugar da Europa?

– Ninguém sabe, milorde. Naturalmente, tentámos localizá-lo quando o conde adoeceu, mas foi impossível encontrá-lo.

Etienne ouviu pacientemente os detalhes que já conhecia. Só queria saber como é que os habitantes locais interpretavam a atitude infantil do filho do seu falecido amo. Era óbvio que Gabriella não condenava o irmão.

– Ele não disse para onde ia? – insistiu Etienne.

Chalfront pigarreou e olhou de soslaio para Gabriella, cujo rosto estava em chamas.

– Ele... hum... saiu de casa um tanto... de repente, milorde – confessou Chalfront. – Depois de uma discussão com o pai. O conde disse que não queria saber para onde é que ele fora. Quando ficou claro que o estado de saúde do conde era grave, lady Gabriella enviou alguns homens atrás do irmão. Infelizmente, quando eles voltaram sem notícias, o conde já estava morto.

– Esse Bryce Frechette... o que é que achas que ele faria ao saber da morte do pai? – indagou Etienne.

Chalfront olhou rapidamente para Gabriella.

– Eu não saberia dizer, milorde. Ele é um jovem rebelde. Impetuoso, mimado. A opinião geral é que foi melhor assim... quero dizer, ele ter-se ido embora. Apesar de que é muito triste ver um filho discutir daquela maneira com o pai.

– Tu achaste melhor ele ter-se ido embora – protestou Gabriella, indignada. – Ficaste bem contente porque não tinhas mais ninguém aqui para te vigiar, além do meu pai acamado! Ninguém que pudesse descobrir a tua desonestidade!

– Desonestidade?! – gritou Chalfront, enrubescendo violentamente.

– O meu procurador examinou os relatórios da contabilidade do castelo Frechette e não encontrou qualquer irregularidade – declarou Etienne, convicto de que a acusação de Gabriella provinha do ódio e do despeito. Tinha a certeza absoluta de que Jean Luc, o seu procurador de há muitos anos, teria percebido se houvesse alguma irregularidade nos registos financeiros do castelo. – E não quero ter de lembrar, mais uma vez, que você só deve falar quando eu lhe dirigir a palavra – acrescentou o barão, com calma, mas com firmeza.

Ao contrário do que ele esperara, Gabriella recuperou rapidamente o autocontrolo. Os olhos dela ainda flamejavam, mas era evidente que era uma jovem capaz de controlar as emoções, quando necessário. Uma qualidade rara numa mulher, e, certamente, inesperada.

– Por que é que não se casou? – perguntou Etienne repentinamente, tentando desconcertá-la. Quando Gabriella não respondeu, ele insistiu. – E então?

– Desculpe, milorde, não percebi que estava a falar comigo.

Estava a fazer um jogo perigoso, aquela jovem de beleza extravagante com um ar desafiador, de pé diante dele, com o seu orgulho ferido e inabalável majestade. Mas ela perderia; Etienne venceria aquele primeiro teste de autoridade, pois vencia sempre.

– Por que é que não se casou? – repetiu, num tom de voz que exigia uma resposta.

– Porque não quis – declarou Gabriella, sentindo o medo a substituir, pouco a pouco, o espírito de provocação.

– Milorde, lady Gabriella era uma filha dedicada – balbuciou Chalfront, claramente aterrorizado. – Dizia que não aceitaria pretendentes enquanto não acabasse de cumprir o seu dever para com os pais.

– Eu não te perguntei a tua opinião, meirinho – observou o barão, indiferente ao facto de que Chalfront estava prestes a ter uma síncope. Virou-se, em seguida, para Gabriella. – Aparentemente, o seu pai era mais inconsequente do que me disseram, uma vez que a falta de preocupação dele com o futuro da filha deixou-a nas minhas mãos. Existe algum lugar para onde você possa ir? A casa de algum parente, por exemplo?

– Não.

– Trate-me por milorde – repreendeu Etienne. – Ou por barão.

– Não, milorde – repetiu Gabriella, num tom claramente sarcástico.

Que tipo de criatura era Gabriella Frechette?, pensou o barão, intrigado. Os cavaleiros mais ousados de toda a Inglaterra eram mais facilmente dominados do que aquela pirralha.

– Quem é que ajudou os teus pais a criarem-te?

– Ninguém, milorde. Os meus pais preferiram criar-nos eles próprios.

– Se és tão devotada a Deus como eras a eles, devias ir para um convento.

– C... Com licença, milorde – interveio Chalfront, mais uma vez, com a sua voz esganiçada.

O barão olhou para o meirinho com indiferença.

– O que é, Chalfront?

Chalfront pigarreou.

– Lady Gabriella não tem um centavo, milorde. Custar-lhe-ia dinheiro para ser aceite num convento, e não sobrou nada.

– E ainda há dívidas para pagar – concluiu o barão.

Subitamente, Gabriella compreendeu que Etienne DeGuerre sabia mais sobre a história da sua família do que indicara a princípio. Era evidente que as perguntas embaraçosas, formuladas diante dos servos e arrendatários, tinham um único propósito: revelar a sua precária situação financeira a todos e envergonhá-la em público. Etienne era um homem cruel e desalmado, pior do que os rumores a tinham levado a crer.

Ela devia estar cega para não ter visto imediatamente a criatura insensível que era o barão. Como pudera deixar-se impressionar tanto pela força física de Etienne DeGuerre e pela sua presença autoritária, quando ele não amenizava estas qualidades com um sentimento de misericórdia? Como pudera pensar que existia uma ponta de vulnerabilidade naquele ar indiferente? Como pudera achá-lo atraente, a menos que o que tivesse sentido fosse o mesmo fascínio que Eva experimentara pela serpente, no Jardim do Éden?

Estavam engajados numa batalha, Gabriella Frechette e Etienne DeGuerre, e ela não admitiria uma derrota, e menos ainda depois que o barão deu um passo em frente e retorceu os lábios num estranho sorriso.

– Contudo, posso ser generoso contigo.

A expressão dos olhos dele deixava claro que a sua noção de generosidade não era a mesma de Gabriella.

Batalha de amor - Uma dama para o cavaleiro

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