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Quatro

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Apoiada precariamente sobre os calcanhares, na margem do rio onde os habitantes do condado lavavam as suas roupas, Gabriella ergueu a túnica molhada e pesada e começou a torcê-la. Era um processo árduo, dificultado pelo tamanho e peso da vestimenta, bem como pelo facto das suas mãos congeladas lhe doerem devido ao esforço. A água fria escorria-lhe pelos braços, humedecendo-lhe o corpete do vestido e encharcando-lhe a saia, fazendo com que a sua roupa se colasse desconfortavelmente ao corpo.

Um grupo de mulheres do condado lavava roupa a uma curta distância, lançando olhares disfarçados para Gabriella, com tanta compaixão que ela tinha vontade de gritar que não fizera nada de mal, que o barão não a atacara, que ela não precisava nem queria a piedade delas, apenas a amizade, ou alguma indicação de que não errara ao fazer o que fora necessário para permanecer no castelo.

Gabriella olhou mais adiante, ao longo do rio, na direcção do moinho. Um grupo de operários trabalhava ali, a substituir o rebolo, segundo lhe explicara Guido. O cozinheiro estava eufórico, pois queixara-se durante semanas ao pai de Gabriella, sobre a qualidade da farinha, responsabilizando o rebolo, velho e gasto. Aparentemente, o barão, no seu primeiro dia como senhor do castelo, tomara conhecimento do problema, entre outros, e dera ordem para substituírem imediatamente a pedra. Várias dependências do castelo também seriam reformadas; já fora comprado mais feno para os cavalos, e a despensa do castelo seria reabastecida, embora não com as extravagâncias do conde, e sim com mantimentos mais comuns, como ervilhas e lentilhas.

Também corriam rumores no castelo de que o barão queria saber detalhes sobre as invasões de propriedade. O barão possuía o direito de punir os invasores apanhados dentro dos limites da propriedade, e que os céus tivessem misericórdia do homem que fosse submetido ao seu julgamento!

Embora o mesmo direito tivesse sido concedido ao pai de Gabriella, ele fechara os olhos às invasões, alegando que os camponeses trabalhavam mais satisfeitos e rendiam mais quando bem alimentados. Gabriella concordava, mas no caso de um homem como Osric, que fora levado três vezes à presença do conde para ser julgado pela infracção, e que continuava a ser o cavaleiro do castelo, ela perguntava-se se o pai não fora condescendente demais.

O conde também fora negligente quando se tratara de cobrar a taxa inicial que um homem devia pagar para tomar posse de um feudo, e o pagamento ao senhor feudal pela melhor cabeça de gado de um arrendatário, por ocasião da morte do último.

O barão, de certeza que exigiria tudo a que tinha direito. Ele visitara pessoalmente as dependências e os estábulos dos arrendatários, para verificar se havia animais não registados nos livros do castelo.

Gabriella praguejou baixinho quando a barra da túnica se sujou de lama. Nunca imaginara que fosse tão difícil lavar uma peça de roupa, e por isso recusara a oferta de Alda para a ajudar. Dali em diante, daria mais valor ao trabalho das criadas. Não obstante, recebera aquela incumbência, e realizá-la-ia com a mesma perfeição com que o barão administrava a sua propriedade.

De facto, Gabriella aguardara com ansiedade o momento de lavar a vestimenta. Durante toda a noite, aquela túnica ficara ao pé da sua cama, um lembrete constante do seu confronto com o barão e do momento assustador em que ele a tirara. Quanto mais cedo ela a lavasse e a devolvesse, melhor.

Segurando a túnica com firmeza, Gabriella apertou os lábios enquanto torcia uma outra parte com toda a força. Durante um momento, imaginou como seria gratificante se tivesse entre as mãos o pescoço do barão, em vez da roupa dele.

– Milady!

Gabriella olhou para trás para se deparar com Chalfront. Ele esfregava o rosto nervosamente com uma mão, e olhava ao redor como se esperasse um desastre iminente. Tal expressão, no entanto, era comum no meirinho, e por isso Gabriella voltou a atenção para a sua tarefa.

– O que é que queres, Robert?

– Eu... queria dizer-lhe que... estou contente por ele não a ter maltratado.

– Está bem. Já disseste, portanto podes-te ir embora.

– Gabriella! – protestou Chalfront, agachando-se ao lado dela.

Como Gabriella gostaria de dizer ao meirinho que ele não tinha o direito de chamá-la pelo primeiro nome! O problema era que, agora, ela era uma serva, e ele encontrava-se em posição superior. A consciência desse facto era quase tão perturbadora quanto qualquer coisa que o barão dissera ou fizera.

– Preciso de falar contigo – disse Chalfront. – Estou à tua procura desde cedo. Quero ter a certeza de que o barão não... te tratará mal.

– E o que é que farias, se ele me tratasse mal?

– Eu defender-te-ia, é claro!

– Como fizeste ontem à noite, quando ele me mandou subir para o quarto? – investiu Gabriella, sarcástica. – Ele não me fez nada. Só me entregou isto para lavar. E é o que estou a fazer. Agora, vai-te embora, Robert, e deixa-me concluir o meu trabalho. O barão não precisa que lá vás limpar os lábios dele, ou puxares-lhe a cadeira para ele se sentar?

Robert Chalfront segurou o braço de Gabriella e pôs-se de pé, puxando-a consigo.

– Tu precisas, e vais ouvir-me! – gritou, irritado.

– Tira as tuas mãos de cima de mim – ordenou ela.

– Tu já não és a senhora do castelo, Gabriella, e vais ouvir o que tenho para te dizer – insistiu ele, apertando-lhe o braço com mais força. – Quero que me prestes atenção. A mim! Pelo menos, uma vez na vida, Gabriella!

Gabriella nunca vira Robert tão zangado e, por um momento, sentiu medo dele.

– Tu estás a magoar-me.

Chalfront mostrou-se imediatamente consternado.

– Por que é que não te casas comigo? – perguntou, com os olhos semicerrados. – Eu poderia pagar a tua dívida, e nunca mais terias de lavar nada.

– Eu não te amo, Robert. Jamais te poderia amar – declarou Gabriella, com firmeza. Custava-lhe acreditar que ele não entendesse. A persistência de Robert era enervante. Ela deixara claros os seus sentimentos, ou melhor, a ausência deles, na primeira vez em que ele lhe fizera aquela proposta, e na segunda, e na terceira, e em todas as outras.

– Mas porquê?

Gabriella segurou a túnica com as duas mãos contra o peito.

– Pela última vez, Robert, eu não me vou casar contigo. Eu preferiria casar-me com o barão DeGuerre! – investiu, citando o exemplo mais ultrajante que lhe veio à mente.

O estratagema surtiu efeito. O brilho de esperança desapareceu dos olhos de Chalfront e, embora Gabriella não ficasse feliz com a desilusão dele, não podia deixar de se sentir aliviada.

O meirinho suspirou.

– Tu não precisavas de me teres colocado em risco, com as tuas acusações falsas.

– Acusações falsas?

– O barão não confia em mim, e não há razão para isso.

– Tu levaste o meu pai à ruína e ao túmulo!

– Ainda acreditas nisso, Gabriella? – indagou Chalfront, inconformado. – Eu fiz tudo o que podia para o ajudar! Mas ele não me ouvia! Até usei o meu próprio dinheiro para tentar pagar as últimas dívidas dele!

Chalfront já lhe dissera aquilo, na primeira vez em que abordara o assunto do casamento. Na ocasião, ela pensara que ele só estava a querer persuadi-la a aceitar a proposta. No entanto, agora, quando ele parecia finalmente compreender que não tinha mais nada a ganhar, ainda mantinha o que, para ela, parecia impossível, embora houvesse nas palavras dele um cunho de verdade difícil de negar.

– Por que é que tu farias isso? – perguntou Gabriella, notando que as mulheres os observavam atentamente.

– Por ti – murmurou Robert, suavemente, olhando para ela com os olhos tristes e suplicantes como os de um cão. – Pela alegria de saber que, com isso, eu te estaria a ajudar, e para ouvir uma palavra gentil dos teus lábios.

– Tu... devias ter pedido ao meu pai que aumentasse as rendas.

– Eu amo-te, Gabriella. Eu faria qualquer coisa por ti, nem que fosse apenas para ouvir uma palavra gentil... Eu tinha esperança que tu te sentisses grata...

– Ora, ora, ora, que cena tão comovente é esta?

Gabriella e Robert olharam abruptamente para trás para ver Philippe de Varenne a aproximar-se. Com o cabelo negro lustroso, as vestes pretas e os olhos estreitos, ele fazia lembrar a Gabriella um falcão pronto para atacar a sua presa. Ela abraçou a túnica com mais força, contra o peito. Chalfront, pálido e ofegante, parecia seriamente decidido a sair a correr.

– Que história é esta de abordar as criadas, Chalfront? – exigiu Varenne, arrogante.

– Sir, eu... eu... – Chalfront começou a gaguejar.

– Não há nenhuma outra intenção, penso eu, além de tentares seduzi-la, não é?

Gabriella nunca sentira tanta vontade de esbofetear o rosto de um homem, em toda a sua vida. Nem o do barão, pois ele não olhara para ela com aquela lascívia e impertinência, mesmo quando a segurara nos braços.

– Mi... lorde! Sir! Não é nada disso...

– Ele não estava a tentar seduzir-me – interveio Gabriella.

– Não? Pois a mim pareceu-me bastante determinado. Sugiro que saias daqui, Chalfront. Acho que o barão anda à tua procura.

Chalfront olhou de Philippe de Varenne para Gabriella, e novamente para Philippe, antes de inclinar a cabeça e de se afastar, apressado.

– Se ele a importunar, avise-me – murmurou Philippe, com um ar condescendente.

Gabriella tinha vontade de dizer a Philippe que ele a importunava muito mais do que Chalfront.

– Se me dá licença, sir, preciso de trabalhar.

– Posso ver que sim – retorquiu Philippe, tirando-lhe a túnica das mãos e segurando-a com o braço esticado. – Tu agora és lavadeira?

Gabriella não respondeu, enquanto tremia de frio por causa do vestido molhado.

Philippe olhou para ela de cima a baixo, e, subitamente, Gabriella deu-se conta de que as suas roupas molhadas estavam coladas ao corpo, delineando-lhe curvas e detalhes que ela preferia esconder. Ela cruzou os braços sobre o peito, para se abrigar do frio e do olhar repulsivo de Philippe.

– Com licença, sir – balbuciou, trémula.

– Claro, linda Gabriella – Philippe estendeu-lhe a túnica, mas quando ela lhe quis pegar ele não a largou. Em vez disso, puxou a vestimenta com força, obrigando Gabriella a cambalear para a frente. Antes que ela tivesse tempo para dizer alguma coisa, Philippe recuou e riu, baixinho.

– Também vou querer que laves as minhas roupas.

– Philippe!

A voz do barão reverberou no ar. Gabriella estivera tão absorta, primeiro com Chalfront e depois com Philippe de Varenne, que não vira o barão chegar na ponte levadiça. Ele estava montado no seu cavalo negro e acompanhado por Sir George e uma pequena tropa armada. Como de costume, estava trajado de preto e não usava jóias. A capa mandada para detrás dos ombros revelava o peito musculoso e a espada embainhada junto à perna.

Sir George usava uma capa azul brilhante, debruada a vermelho, sobre uma túnica vermelha e dourada, e umas calças de malha azul. Ele lançou a Gabriella um sorriso simpático, que pouco contribuiu para lhe diminuir o constrangimento.

– Adieu, Gabriella – disse Philippe, estreitando os olhos e curvando os lábios para baixo, antes de se afastar na direcção do barão, que os observava com uma expressão impassível.

Gabriella, abraçada à túnica, olhou adiante de Philippe, para o homem que a colocara em posição de ser obrigada a aturar os modos rudes de Philippe de Varenne, e depois girou nos calcanhares, caminhando com firmeza e determinação de regresso ao castelo.

Dois dias depois, sentado no solário, Etienne esfregou as têmporas que começavam a latejar, enquanto contemplava a papelada espalhada sobre a mesa à sua frente. Ele tentava concentrar a atenção na última pilha de listas, escrituras, recibos e registos referentes à nova propriedade. Seria bem mais fácil se o seu procurador pudesse deixar a outra propriedade e ir para o castelo, para se encarregar da contabilidade.

A questão não era somente o facto de o falecido conde ter sido generoso em excesso, e também um administrador relapso, e de ter levado o meirinho a sentir necessidade de registar cada centavo gasto ou recebido; a leitura por si só esgotava a paciência de Etienne, uma vez que, para ele, ler era uma dificuldade. Etienne aprendera a ler quando já era um rapaz crescido, mais por necessidade do que por desejo, e preferia mil vezes passar os dias a enfrentar as lanças dos inimigos do que a tentar decifrar aquelas letras e números rebuscados.

Nos últimos dias, Etienne passara várias horas a examinar as listas de produtos e a contabilidade dos arrendatários, supervisionando a compra e a entrega de mantimentos e móveis, cavalgando pela propriedade à procura de animais não registados, e encontrando vários, todos eles, obviamente, as melhores cabeças dos seus donos. Ele também providenciara o arranjo do moinho e a reforma do celeiro, uma vez que, aparentemente, o falecido conde, tão meticuloso na construção e decoração do castelo, negligenciara as dependências externas da sua propriedade.

Etienne previa que as invasões seriam um problema, pois os seus homens tinham encontrado várias armadilhas nos bosques do castelo. Não havia pistas de quem as tinha preparado, ou se eram obra de um homem sozinho ou de um grupo. Quem quer que estivesse a infringir a lei, quando fosse apanhado, amaldiçoaria o dia em que tentara fazer aquilo na propriedade do barão DeGuerre.

Do lado de fora, a chuva caía a cântaros, o que significava que todos os homens se encontravam reunidos dentro do castelo, em vez de estarem a caçar no bosque, ou a treinar as suas habilidades marciais nas pradarias próximas, ou no pátio interno. Etienne podia distinguir-lhes as vozes, no salão; Philippe provocava Seldon, por causa de uma serva avantajada com quem este se engraçara. Se Philippe não tivesse cuidado, acabaria com o nariz partido. E seria bem feito, pensou Etienne; talvez isso, pelo menos, o curasse da sua vaidade exagerada.

Mais uma vez, Etienne lembrou-se de Gabriella e Philippe, na margem do rio, de como ela ficara zangada, e com razão, e de como parecera atraente, com o cabelo espesso e encaracolado a emoldurar-lhe o rosto corado, e os olhos castanhos brilhantes, a expressão de desafio, a segurar a sua túnica contra os seios perfeitos. Por um momento, Etienne invejara a túnica.

Ele tinha curiosidade de saber o que é que Philippe dissera a Gabriella, embora não fosse difícil adivinhar; tendo assistido à cena à distância, ele quase pudera deduzir cada palavra. Mas o barão não tinha dúvida de que podia controlar o jovem cavaleiro ainda durante algum tempo, esperando que a ambição de Varenne o levasse em breve a procurar outro amo.

Etienne lamentava que as circunstâncias tivessem relegado Gabriella Frechette a uma posição tão vulnerável, mas isso era algo que não podia ser evitado. Ele fizera o possível para a persuadir a partir, e ela recusara; agora, teria de arcar com as consequências.

Etienne suspirou, voltando a atenção para os documentos. Logo em seguida, contudo, a sua concentração foi novamente interrompida pela voz debochada de Philippe, o tom sério de Donald e a calma intervenção de George. Antes que ele conseguisse discernir o motivo da altercação, as vozes silenciaram-se. Como sempre, George conseguira aplacar os ânimos. Felizarda a mulher que viesse a casar-se com George; ele seria um excelente marido, embora Etienne duvidasse que algum dia aquele jovem indiferente fosse persuadido a tomar tal decisão.

Um riso feminino soou nalgum lugar próximo ao solário, e Etienne reconheceu a voz melodiosa de Josephine. Ela mantivera-se ocupada, desde o dia em que chegaram, a decorar o salão e o quarto. Etienne sabia que ela estava a tecer mais um tapete para o quarto que já se encontrava adequadamente mobilado e aconchegante.

Etienne olhou ao redor do solário, reparando, satisfeito, nos batentes trabalhados e na chuva que batia contra as vidraças. Aquelas medidas decorativas eram, sem dúvida, extravagantes, mas ele estava a começar a acreditar que valia a pena pagar o preço pelo conforto; dentro de limites razoáveis, claro.

Chalfront, com a expressão de um cão espancado, entrou no solário, carregando mais rolos de papel. Etienne já começava a compreender por que é que era difícil gostar de Robert Chalfront. O homem não tinha personalidade, e era tão subserviente que o barão às vezes se sentia tentado a sacudi-lo. O meirinho nunca expressava uma opinião, parecendo sempre disposto a obedecer a ordens. Era de admirar que conseguisse decidir sozinho o que vestir a cada manhã! Por outro lado, era responsável e meticuloso, dedicado ao trabalho e à propriedade, como se esta lhe pertencesse. Talvez, se Chalfront possuísse uma personalidade mais forte, o conde não tivesse sido tão explorado pelos arrendatários.

Com um suspiro, Etienne esticou o braço para pegar no cálice de vinho, antes de indicar ao meirinho que se sentasse na cadeira oposta à enorme mesa sustentada por um cavalete.

– Tu tens, sem dúvida, tudo minuciosamente documentado – observou, fazendo das suas palavras um elogio, em vez de revelar frustração. – Diz-me, quantos aldeões se encontram ad censum?

– Vinte e dois pagam as suas rendas em espécies, milorde – apressou-se Chalfront a responder. – David Marchant, o moleiro, é quem paga mais, cinquenta xelins por ano. John, o ferreiro, é quem paga menos, dois ceitis. Os outros estão aqui relacionados.

Ele desenrolou uma das listas que acabara de trazer.

– E estes? – Etienne apontou para um outro grupo de nomes, na mesma lista.

– Esses são os aldeões ad opus. Ao lado de cada nome, verá que anotei o rendimento esperado, por semana e por ano, milorde.

Etienne assentiu com a cabeça, antes de passar os olhos pelo papel.

– Parece que gostas realmente de fazer relatórios, Robert.

– Gosto de ter as coisas em ordem, milorde – respondeu Chalfront, respeitosamente. – Aliás, eu gostaria de chamar a sua atenção para as minhas anotações relativas às taxas e impostos do moinho e dos direitos de...

– Estou com uma dor de cabeça – interrompeu o barão, sem mentir.

Ele pegou num documento com um selo elaborado, e outro com um selo menor.

– Esta é a minha Carta de Escritura – explicou, indicando o primeiro. – Especifica as terras, serviços e rendas que devo receber. E esta é a Carta Consuetudinária, que descreve as obrigações e direitos dos arrendatários, e que encontrei entre os papéis do conde. Quero que as examines e me digas se está tudo em ordem.

O meirinho arqueou as sobrancelhas, abrindo mais os olhos muito azuis.

– Confia-me essa responsabilidade, milorde? – perguntou, incrédulo, e ao mesmo tempo, extasiado.

– Sim – só então Etienne se deu conta de que talvez não fosse sensato incumbir o meirinho daquela tarefa. – Por enquanto. O meu procurador, Jean Luc Ducette, deve chegar dentro de quinze dias. Ele examinará os registos, e é bom que confirme tudo o que tu me disseres.

O meirinho assentiu, entusiasmado.

– E o que são estas outras listas? – quis saber Etienne, gesticulando na direcção de uma outra pilha de papéis.

– Achei que talvez quisesse ter algumas informações antes de os arrendatários começarem a fazer os seus juramentos de lealdade. Aqui estão três homens que ainda não pagaram o gersum – Chalfront apontou para um grupo de nomes no primeiro documento da pilha. – Este aqui precisa de pagar o merchet antes de casar a filha, no próximo mês. Estes dois morreram depois do conde, e ninguém recolheu o heriot. E, finalmente, milorde, acho que deveria tomar uma decisão sobre as taxas pelo direito de alimentar os porcos.

– Quanto é que o conde pedia em troca do privilégio de deixar os porcos preambularem pela floresta?

Chalfront citou quantias que teriam sido apropriadas há um século atrás, e Etienne manifestou a sua opinião.

– Não é de admirar que o conde se tenha encontrado em sérias dificuldades financeiras – acrescentou, olhando atentamente para o meirinho. – Por que é que tu não o avisaste de que não estava a cobrar o suficiente?

– Eu avisei, milorde! O conde recusava-se a ouvir-me, mesmo quando o alertei para o facto de que estava a arruinar-se. Ele era um homem que fazia questão de ser estimado pelos arrendatários. E era, pois não resta dúvida de que a sua morte foi profundamente sentida.

Se Etienne precisava de uma confirmação adicional sobre o falecido conde ter sido um homem com prioridades mal colocadas, Robert Chalfront acabara de lha dar. Não era importante que os arrendatários estimassem o seu senhor; era importante que o respeitassem, obedecessem e fizessem dele um homem rico.

– Entendo – Etienne estudou, com um olhar pensativo, o homem sentado à sua frente. Um homem como aquele atrever-se-ia, de facto, a repreender o patrão? Teria a coragem de revelar abertamente as consequências da mal empregue generosidade do conde? Ou limitar-se-ia a gaguejar, a assentir e a esforçar-se para obedecer às instruções que recebia?

– Perdoe-me a intromissão, milorde.

Etienne reconheceu imediatamente a voz feminina que poucas vezes ouvira, e olhou para a porta. Gabriella trajava o mesmo vestido castanho-claro que sempre usava; parecia pálida e cansada, mas o brilho de desafio não abandonara os olhos castanhos. Etienne quase podia ler o pensamento de Gabriella, ao contemplá-la parada sob o umbral da porta, vendo-o a dissecar o que fora, outrora, a propriedade do seu pai. De certeza que ela gostaria de o ver no fundo do poço, ao pé do moinho, com o rebolo amarrado ao pescoço, com a mesma intensidade com que ele gostaria de a ter na sua cama.

– Diz, Gabriella – murmurou, decidindo não perder tempo com pensamentos inúteis.

– O capataz, o cavaleiro e o lenhador encontram-se no castelo, conforme a sua solicitação – anunciou ela, respeitosamente.

Pelo menos, a pequena demonstração da outra noite atingira parte do objectivo; Gabriella baixara o tom.

– Traz-me mais vinho, e cerveja para o capataz e os outros – ordenou Etienne.

Gabriella assentiu com uma mesura, antes de se afastar.

– Tira esta papelada daqui, Chalfront – pediu Etienne, esticando os braços para cima e para trás, ansioso por ficar sozinho. Infelizmente, precisava de receber aqueles três homens que iriam prestar-lhe juras de lealdade antes dos demais arrendatários. Há três dias que ele andava a adiar o evento, por um motivo que considerava justo, principalmente depois de ouvir rumores sobre a reacção negativa do povo ao tratamento que ele dispensara à filha do conde. Etienne decidira esperar para ver se eles fariam algo mais, além de protestar.

Não fizeram.

Ajeitando as vestimentas e tentando desamarrotar as pregas com a mão, Etienne recostou-se na cadeira e aguardou, assumindo a expressão mais arrogante que conseguiu, enquanto Chalfront juntava a papelada. Segurando da melhor maneira possível os volumosos rolos de documentos, o meirinho curvou-se para a frente numa reverência e saiu do solário, no momento em que os três homens entravam, afastando os capuzes ensopados para trás, sobre as capas que pingavam água.

O mais alto dos três, que, obviamente, era também o líder, pois caminhava à frente dos outros dois, era um homem loiro, com o rosto quadrado, ombros largos e braços musculados. Os dois homens que o seguiam tinham cabelos escuros e eram de estatura mais baixa. Possuíam um ar de convencimento que desapareceu quando se aproximaram do barão.

O homem alto ajoelhou-se numa perna.

– Sou William, o capataz, milorde – anunciou, com a voz grave e áspera, antes de afastar para trás uma mecha do cabelo liso.

– Eu sou Osric, o cavaleiro – disse o mais atarracado dos dois homens morenos, enquanto também se ajoelhava.

– E eu sou Brian, o lenhador, – declarou o último, fazendo o mesmo.

– Como vocês são os líderes do povoado, mandei chamá-los para que sejam os primeiros a fazer os vossos juramentos de lealdade. Presumo que estejam dispostos a fazê-los – acrescentou Etienne, reflectindo sobre como era fácil lisonjear aqueles homens rudes, ao reparar nos olhares de superioridade que trocaram entre si.

Antes que o capataz respondesse, Gabriella entrou no solário, carregando uma bandeja com uma jarra e três canecas. Caminhando com graça e naturalidade, como se tivesse feito aquele tipo de coisa a vida inteira, ela aproximou-se dos homens e descansou a bandeja sobre a mesa. Sem levantar os olhos, serviu vinho ao barão, em primeiro lugar, e em seguida, ofereceu cerveja ao capataz, que se pôs de pé antes de aceitar a caneca.

– Milorde – começou ele, com uma nítida falta de respeito que imediatamente deixou Etienne irritado. – Não faço qualquer objecção a jurar-lhe a minha lealdade. A meu ver, um normando não é muito diferente do outro. Mas isto não está certo.

William gesticulou na direcção de Gabriella, que balançou a cabeça com um olhar de advertência.

Etienne não acreditava na insolência do camponês. Com quem é que ele pensava que estava a falar, com Robert Chalfront?! E atrever-se a olhar para Gabriella... e esta, a tentar silenciá-lo! Aquela gente precisava de descobrir, de uma vez por todas, quem é que mandava no castelo!

E Gabriella precisava de aprender mais ainda: que tinha cometido um grave erro, ao decidir ficar. Aqueles homens, distintos líderes dos aldeões a quem ela aparentemente tanto estimava, tinham tido tempo suficiente para procurar o barão e sugerir-lhe um meio de ajudar Gabriella. Tudo o que teriam de fazer era oferecer-se para pagar a dívida da filha do conde, o que não seria difícil, tendo em conta a renda irrisória que pagavam. No entanto, nenhum deles se prontificara a tal gesto, e agora tinham a ousadia de insinuar que ele era um homem desprezível!

Gabriella começou a recuar, mas Etienne segurou-a pelo braço.

– Não te dei ordem para te retirares, Gabriella – ele moveu o olhar do braço para os seios de Gabriella, que o corpete do vestido tornava mais volumosos, antes de se virar para o capataz. – Estás a questionar alguma decisão que tomei, William?

O capataz, cujo rosto naturalmente corado se tornou ainda mais vermelho, engoliu em seco e apressou-se a desviar o olhar, que também estivera fixo nos seios de Gabriella.

– Bem, milorde, nós todos achamos que não é justo que... ela sofra – justificou-se, embaraçado.

– A que sofrimento te referes? Diz, por favor – insistiu Etienne, quando William olhou para ele, perplexo.

– Bem, milorde... ela é uma nobre... e... bem...

– E agora, está a fazer o mesmo tipo de trabalho que seria esperado da tua mãe, da tua esposa, ou da tua filha – sem desviar o olhar do rosto do capataz, Etienne ergueu a mão de Gabriella e virou-a para cima; passou os dedos da outra mão pela palma ainda macia. – Estás preocupado porque ela não nasceu para este tipo de trabalho? Que esta mão delicada se torne áspera e calejada? A opção foi dela. Foi ela que não quis ir-se embora. Se está a sofrer, é a única culpada por isso. Além do que, não vejo razão para apelidares um trabalho honesto de «sofrimento».

Etienne estudou os rostos dos três homens, que olhavam fixamente para Gabriella. A julgar pelas suas expressões, estavam a imaginar Gabriella como criada nas suas casas.

Afinal, eles eram homens, e Gabriella perdera a sua posição social e, consequentemente, a protecção que esta lhe garantia. Aqueles homens acusavam-no, no entanto, e ele não tinha a menor dúvida de que cada um deles visualizava Gabriella na sua cama. Ela também precisava de entender isso; precisava de compreender que não podia contar com a ajuda de ninguém, e que teria sido muito mais sensato ter-se ido embora quando tivera a oportunidade.

Ainda com a mão de Gabriella entre as suas, Etienne sorriu friamente.

– A virtude dela está segura, e isso eu garanto-lhes, pelo menos no que concerne a mim e aos homens sob o meu comando.

O contacto com a mão de Gabriella, a suavidade e o calor da sua pele, perturbavam Etienne mais do que ele gostaria de admitir. Subitamente, ele deu-se conta de que desejava aquela jovem como não desejara, durante um ano inteiro, mulheres muito mais belas.

Que fraqueza absurda era aquela? Ele não precisava de Gabriella, e ela, obviamente, não o queria. Para quê perder tempo com fantasias com aquela jovem pobre, sem casa e sem terra, e que nem mesmo era dotada de uma beleza excepcional?

Os três homens entreolharam-se, apreensivos. O lenhador fez menção de dizer alguma coisa, mas pareceu pensar melhor e desistir.

– Se alguém tem culpa da situação em que se encontra Gabriella Frechette... – continuou Etienne, dirigindo as suas palavras não só aos homens, mas também a ela –... não sou eu. É ela própria, e vocês, e os outros arrendatários, que exploraram a generosidade do vosso falecido amo.

O barão fez uma pausa, não porque relutasse em fazer a sua proposta seguinte, mas para causar efeito.

– Contudo, existe uma maneira de vocês ajudarem a filha do vosso conde. Por que é que um de vocês não se oferece para pagar a dívida e libertá-la?

Batalha de amor - Uma dama para o cavaleiro

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