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As enfibraturas do Ipiranga

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(Oratório profano)


“O, woe is me

To have seen what I have seen, see what I see!"

Shakespeare


Distribuição das vozes:


OS ORIENTALISMOS CONVENCIONAIS — (escritores e demais artífices elogiáveis) — Largo, imponente coro

afinadíssimo de sopranos, contraltos, barítonos, baixos.


AS SENECTUDES TREMULINAS — (milionários e burgueses) — Coro de sopranistas.


OS SANDAPILÁRIOS INDIFERENTES — (operariado, gente pobre) — Barítonos e baixos.


AS JUVENILIDADES AURIVERDES — (nós) — Tenores, sempre tenores! Que o diga Walter von Stolzing!


MINHA LOUCURA — Soprano ligeiro. Solista.

Acompanhamento de orquestra e banda.


Local de execução: A esplanada do Teatro Municipal. Banda e orquestra colocadas no terrapleno que tomba sobre os jardins. São perto de cinos mui instrumentistas dirigidos por maestros... vindos do estrangeiro. Quando a solista canta há silêncio orquestral — salvo nos casos propositadamente mencionados. E, mesmo assim, os instrumentos que então ressoam, fazem-no a contragosto dos maestros. Nos coros dos ORIENTALISMOS CONVENCIONAIS a banda junta-se à orquestra. É um tutti formidando.

Quando cantam as JUVENILIDADES AURIVERDES (há naturalmente falta de ensaios) muitos instrumentos silenciam. Alguns desafinam. Outros partem as cordas. Só agüentam o rubato lancinante violinos, flautas, clarins, a bateria e mais borés e maracás.


OS ORIENTALISMOS CONVENCIONAIS estão nas janelas e terraços do Teatro Municipal. As SENECTUDES TREMULINAS

disseminaram-se pelas sacadas do Automóvel Clube, da Prefeitura, da Rôtisserie, da Tipografia Weisflog, do Hotel

Carlton e mesmo da Livraria Alves, ao longe. Os SANDAPILÁRIOS INDIFERENTES berram do Viaduto do Chá. Mas as JUVENILIDADES AURIVERDES estão em baixo, nos parques do Anhangabaú, com os pés enterrados no solo. MINHA LOUCURA no meio delas.


Na Aurora do Novo Dia

Prelúdio


As caixas anunciam a arraiada. Todos os 550.000 cantores concertam apressadamente as gargantas e tomam fôlego com exagero, enquanto os borés, as trompas, o órgão, cada timbre por sua vez, entre largos silêncios reflexivos, enunciam, sem desenvolvimento, nem harmonização o tema: "Utilius est saepe et securius quos non habeat multas consolationes in hac vita."


E começa o oratório profano, que teve por nome

AS ENFIBRATURAS DO IPIRANGA.



AS JUVENILIDADES AURIVERDES


(pianíssimo)


Nós somos as Juvenilidades Auriverdes!

As franjadas flâmulas das bananeiras,

As esmeraldas das araras,

Os rubis dos colibris,

Os lirismos dos sabiás e das jandaias,

Os abacaxis, as mangas, os cajus

Almejam localizar-se triunfantemente,

Na fremente celebração do Universal!...

Nós somos as Juvenilidades Auriverdes!

As forças vivas do torrão natal,

As ignorâncias iluminadas,

Os novos sóis luscofuscolares

Entre os sublimes das dedicações!...

Todos para a fraterna música do Universal!

Nós somos as Juvenilidades Auriverdes!



OS SANDAPILÁRIOS INDIFERENTES


(num estampido preto)


Vá de rumor! Vá de rumor!

Esta gente não nos deixa mais dormir!

Antes “E lucevan le stelle” de Puccini!

Oh! pé de anjo, pé de anjo!

Fora! Fora o que é de despertar!


(A orquestra num crescendo cromático de contrabaixos anuncia...)



OS ORIENTALISMOS CONVENCIONAIS


Somos os Orientalismos Convencionais!

Os alicerces não devem cair mais!

Nada de subidas ou de verticais!

Amamos as chatezas horizontais!

Abatemos perobas de ramos desiguais!

Odiamos as matinadas arlequinais!

Viva a Limpeza Pública e os hábitos morais!

Somos os Orientalismos Convencionais!


Deve haver Von Iherings para todos os tatus!

Deve haver Vitais Brasis para os urutus!

Mesmo peso de feijão em todos os tutus!

Só é nobre o passo dos jaburus!

Há estilos consagrados para Pacaembus!

Que os nossos antepassados foram homens de truz!

Não lhe bastam velas? Para que mais luz!


Temos nossos coros só no tom de dó!

Para os desafinados, doutrina de cipó!

Usamos capas de seda, é só escovar o pó!

Diariamente à mesa temos mocotó! .

Per omnia saecula saeculorum moinhos terão mó!

Anualmente de sobrecasaca, não de paletó,

Vamos visitar o esqueleto de nossa grande avó!

Glória aos iguais! Um é todos! Todos são um só!

Somos os Orientalismos Convencionais!



AS JUVENILIDADES AURIVERDES


(perturbadas com o fabordão,

recomeçam mais alto, incertas)


Magia das alvoradas entre magnólias e rosas...

Apelos do estelário visível aos alguéns...

— Pão de ícaros sobre a toalha extática do azul!

Os tuins esperanças das nossas ilusões!

Suaviloquências entre as deliquescências

Dos sáfaros, aos raios do maior solar!...

Sobracemos as muralhas! Investe com os cardos!

Rasga-te nos acúleos! Tomba sobre o chão!


Hão-de vir valquírias para os olhos-fechados!

Anda! Não pares nunca! Aliena o duvidar

E as vacilações perpetuamente!



AS SENECTUDES TREMULINAS


(tempo de minuete)


Quem são estes homens?

Maiores menores

Como é bom ser rico!

Maiores menores.

Das nossas poltronas

Maiores menores

Olhamos as estátuas

Maiores menores

Do signor Ximenes

— O grande escultor


Só admiramos os célebres

E os recomendados também!

Quem tem galeria

Terá um Bouguereau!

Assinar o Lírico?

Elegância de preceito!

Mas que paulificância

Maiores menores

O Tristão e Isolda

Maiores menores


Preferimos os coros

Dos Orientalis —

mos Convencionais!

Depois os sanchismos

(Ai! gentes, que bom!)

Da alta madrugada

No largo do Paiçandu!


Alargar as ruas...

E as instituições?

Não pode! Não pode!


Maiores menores

Mas não há quem diga

Maiores menores

Quem são esses homens

Que cantam do chão?


(a orquestra súbito emudece, depois

duma grande gargalhada de Timbales)



MINHA LOUCURA


(recitativo e balada)


Dramas da luz do luar no segredo das frestas

Perquirindo as escuridões...

A traição das mordaças!

E a paixão oriental dissolvida no mel!...


Estas marés da espuma branca

E a onipotência intransponível dos rochedos!

Intransponivelmente! Oh!...

A minha voz tem dedos muito claros

Que vão roçar nos lábios do Senhor;

Mas as minhas tranças muito negras

Emaranharam-se nas raízes do jacarandá...


Os cérebros das cascatas marulhantes

E o benefício das manhãs serenas do Brasil!


(grandes glissandos de harpa)


Estas nuvens da tempestade branca

E os telhados que não deixam à chuva batizar!

Propositadamente! Oh!...

Os meus olhos têm beijos muito verdes

Que vão cair às plantas do Senhor;

Mas as minhas mãos muito frágeis

Apoiaram-se nas faldas do Cubatão. .

Os cérebros das cascatas marulhantes

E o beneficio das manhãs solenes do Brasil


(notas longas de trompas)


Estas espigas da colheita branca

E os escalrachos roubando a uberdade!

Enredadamente! Oh!...

Os meus joelhos têm quedas muito crentes

Que vão bater no peito do Senhor;

Mas os meus suspiros muito louros

Entreteceram-se com a rama dos cafezais...


Os cérebros das cascatas marulhantes

E o benefício das manhãs gloriosas do Brasil!


(harpas, trompas, órgão)



AS SENECTUDES TREMULINAS


(iniciando uma gavota)


Quem é essa mulher!

É louca, mas louca

Pois anda no chão!



AS JUVENILIDADES AURIVERDES


(num crescendo fantástico)


Ódios, invejas, infelicidades!...

Crenças sem Deus! Patriotismos diplomáticos!

Cegar!

Desvalorização das lágrimas lustrais!

Nós não queremos mascaradas! E ainda menos

Cordões “Flor-do-abacate” das superfluidades!

Os tumultos da luz!... As lições dos maiores!...

E a integralização da vida no Universal!

As estradas correndo todas para o mesmo final!...

E a pátria simples, una, intangivelmente

Partindo para a celebração do Universal!

Ventem nossos desvarios fervorosos!

Fulgurem nossos pensamentos dadivosos!

Clangorem nossas palavras proféticas

Na grande profecia virginal! .

Somos as Juvenilidades Auriverdes!


A passiflora! o espanto! a loucura! o desejo!

Cravos! mais cravos para nossa cruz!



OS ORIENTALISMOS CONVENCIONAIS


(Tutti. O crescendo é resolvido

numa solene marcha fúnebre)


Para que escravos? Para que cruzes?

Submetei-vos à metrificação!

A verdadeira luz está nas corporações!

Aos maiores: serrote; aos menores: o salto...

E a glorificação das nossas ovações!



AS JUVENILIDADES AURIVERDES


(num clamor)


Somos as Juvenilidades Auriverdes!

A passiflora! o espanto! a loucura! o desejo!

Cravos! mais cravos para nossa cruz!



OS ORIENTALISMOS CONVENCIONAIS


(a tempo)


Para que cravos? Para que cruzes?

Submetei-vos à poda!

Para que as artes vivam e revivam

Use-se o regime do quartel!

É a riqueza! O nosso anel de matrimônio!

E as fecundidades regulares, refletidas...

E os perenementes da ligação mensal...



AS SENECTUDES TREMULINAS


(aos miados de flautim impotente)


Bravíssimo! Bem dito! Sai azar!

Os perenementes da ligação anual!



AS JUVENILIDADES AURIVERDES


(berrando)


Somos as Juvenilidades Auriverdes!

A passiflora! o espanto! a loucura! o desejo!

Cravos! mais cravos para nossa cruz!



OS ORIENTALISMOS CONVENCIONAIS


(da capo)


Para que cravos? Para que cruzes?

Universalizai-vos no senso comum!

Senti sentimentos de vossos pais e avós!

Para as almas sempres torresmos cerebrais!

E a sesta na rede pelos meios-dias!

Acordar às seis; deitar às vinte e meia;

E o banho semanal com sabão de cinza,

Limpando da terra, calmando das erupções...

E a dignificação bocejal do mundo sem estações!...

Primavera, inverno, verão, outono...

Para que estações?



AS JUVENILIDADES AURIVERDES


(já vociferantes)


Cães! Piores que cães!

Somos as Juvenilidades Auriverdes!

Vós, burros! malditos! cães! piores que cães!



OS ORIENTALISMOS CONVENCIONAIS


(sempre marcha fúnebre, cada vez mais forte porém)


Para que burros? Para que cães?

Produtividades regulares. Vivam as maleitas!

Intermitências de polegadas certas!


Nas arquiteturas renascença gálica;

Na música Verdi; na escultura Fídias;

Corot na pintura; nos versos Leconte;

Na prosa Macedo, D’Annunzio e Bourget!

E na vida enfim, eternamente eterna,

Concertos de meia à luz do lampeão,

Valsas de Godard no piano alemão,

Marido, mulher, as filhas, o noivo...



AS JUVENILIDADES AURIVERDES


(numa grita descompassada)


Malditos! Boçais! Cães! Piores que cães!

Somos as Juvenilidades Auriverdes!

A passiflora!... Vós, malditos! boçais!



OS ORIENTALISMOS CONVENCIONAIS


(fff)


... O corso aos domingos, o chá no Trianon...

E as ......... cidades, as ......... cidades,

as ......... cidades, as ......... cidades,

e mil ......... cidades...



AS JUVENILIDADES AURIVERDES


(ffff)


Seus borras! Seus bêbedos! Infames! Malditos!

A passiflora! o espanto! a loucura! o d.....



OS ORIENTALISMOS CONVENCIONAIS


(fffff)


... e as perpetuidades

Das celebridades das nossas vaidades;

Das antiguidades às atualidades,

Ao fim das idades sem desigualdades

Quem há-de...



AS JUVENILIDADES AURIVERDES


(loucos, sublimes, tombando exaustos)


Seus..............................!!!

(A maior palavra feia que o leitor conhecer)

Nós somos as Juvenilidades Auriverdes!

A passiflora! o espanto!... a loucura! o desejo!...

Cravos!... Mais cravos... para... a nossa...


Silêncio. Os ORIENTALISMOS CONVENCIONAIS, bem como as SENECTUDES TREMULINAS e os SANDAPILÁRIOS

INDIFERENTES fugiram e se esconderam, tapando os ouvidos à grande, à máxima Verdade. A orquestra evaporou-se, espavorida. Os maestri sucumbiram. Caiu a noite, aliás; e na solidão da noite das mil estrelas as JUVENILIDADES AURIVERDES, tombadas no solo, chorando, chorando o arrependimento do tresvario final.



MINHA LOUCURA


(suavemente entoa a cantiga de

adormentar)


Chorai! Chorai! Depois dormi!

Venham os descansos veludosos

Vestir os vossos membros... Descansai!

Ponde os lábios na terra! Ponde os olhos na terra!

Vossos beijos finais, vossas lágrimas primeiras

Para a branca fecundação!

Espalhai vossas almas sobre o verde!

Guardai nos mantos de sombra dos manacás

Os vossos vagalumes interiores!

Inda serão um Sol nos ouros do amanhã!

Chorai! Depois dormi! '


A mansa noite com seus dedos estelares

Fechará nossas pálpebras...

As vésperas do azul...

As milhores vozes para vosso adormentar!

Mas o Cruzeiro do Sul e a saudade dos martírios...

Ondular do vai-vem! Embalar do vai-vem!

Para a restauração o vinho dos noturnos!...

Mas em vinte anos se abrirão as searas!

Virão os setembros das floradas virginais!

Virão os dezembros do Sol pojando os grânulos!

Virão os fevereiros do café-cereja!

Virão os marços das maturações!


Virão os abris dos preparativos festivais!

E nos vinte anos se abrirão as searas!

E virão os maios! E virão os maios!

Rezas de Maria... Bimbalhadas... Os votivos...

As preces subidas... As graças vertidas...

Tereis a cultura da recordação!

Que o Cruzeiro do Sul e a saudade dos martírios

Plantem-se na tumba da noite em que sonhais...

Importa?!... Digo-vos eu nos mansos

Oh! Juvenilidades Auriverdes, meus irmãos:

Chorai! Chorai! Depois dormi!

Venham os descansos veludosos

Vestir os vossos membros!... Descansai!


Diuturnamente cantareis e tombareis.

As rosas... As borboletas... Os orvalhos...

O todo-dia dos imolados sem razão...

Fechai vossos peitos!

Que a noite venha depor seus cabelos aléns

Nas feridas de ardor dos cutilados!

E enfim no luto em luz, (Chorai!)

Das praias sem borrascas, (Chorai!)

Das florestas sem traições de guaranis

(Depois dormi!)

Que vos sepulte a Paz Invulnerável!

Venham os descansos veludosos

Vestir os vossos membros... Descansai!

(quase a sorrir, dormindo)

Eu... os desertos... os Caíns... a maldição...


(As JUVENILIDADES AURIVERDES e MINHA LOUCURA adormecem eternamente surdas, enquanto das janelas de

palácios, teatros, tipografias, hotéis — escancaradas, mas cegas — cresce uma enorme vaia de assovios, zurros,

patadas.)


LAUS DEO

Mestres da Poesia - Mário de Andrade

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