Читать книгу Desertos - Rui José Carvalho - Страница 10
ОглавлениеAqui havia cortinas e as cortinas abriam-nos a noite. Aqui havia lugares e nos lugares nos sentávamos ainda prenhes de clareza. Todos os lugares eram alagados pelos rios jorrando em catadupa, pelo iluminado riso das jovens mulheres ainda em flor. A noite surgia florindo os resquícios do que éramos até que fossemos a certeza de sermos um sonho vivido.
Aqui havia cortinas e as cortinas abriam-nos a noite.
Fingindo-nos mortos para a rotina, abríamo-nos com as cortinas. A rotina era a secura dos solos. Nós ainda vicejávamos. Entoávamos canções numa linguagem distante e nas canções entoadas distávamos do amor por milímetros.
Tudo falhou.
Tudo falhou como tudo sempre falha. Tudo o que quisemos foi desejado em demasia e a demasia entornou-nos borda fora.
Extravasados de nós somos agora esta angústia, todas as casas desertas minando-nos até aos ossos.
Desabitados no desamor, somos a desertificação das casas.
O escuro não chega. Agora o escuro não nos chega. Tornámo-nos brancos. Brancos e ressequidos como a branca cal das paredes que nos cercam. Nas paredes nos edificámos até à brancura da pele. Imiscuímo-nos na feitura das casas para que nos pregássemos na nossa fundação. Contudo, fundimo-nos com as paisagens. Somos aqueles que com as paisagens se fundem. Como todas as coisas tocadas pelos homens, as paisagens definham. Assim nos tornámos secos. Só teias de aranha nos habitam.
É isto.
É nisto que nos tornámos: corações empedernidos junto às teias.