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Há nas fotos de António Caeiro um desespero e um abandono que tangem a nossa sensibilidade, que fazem de nós um instrumento, uma harpa de cordas tensas a ser tocada pelo tempo. Pela intempérie do tempo e de como ele deixa as coisas e os lugares depois da sua passagem. O tempo sobrevoa os limites do que somos, sobrevoa a nossa pele, a nossa sensibilidade através das imagens, povoadas por objetos que foram, por lugares que deixaram de ser. E há também pequenas árvores e arbustos que surgem como pessoas que estão onde não deviam estar, coisas fora do lugar. A grande beleza, aterradora, das fotos de Caeiro emerge de imediato, intuitivamente, e estabelece uma relação entre árvores, arbustos, sofás, portas, antigas fábricas e cada um de nós mesmos. Basta umas ruínas à nossa volta para que o crescimento das nossas folhas seja visto como um fracasso, que é toda a existência humana, como na foto à página 39, que o texto de Rui José Carvalho sublinha e alarga, estendendo esse fracasso à própria condição da procura, à própria condição do sublime. Se as fotos de Caeiro nos transformam em melodias tristes, cavas, regidas pela aura da escala menor, onde os tons coxeiam com regularidade, os textos de Rui José Carvalho alargam essa melodia à compreensão de que o que nos falta não somos nós, nem sequer o que fomos, o que nos falta é o que já sentimos. “A adolescência, esse amor para sempre!” (p. 63).

Um dia quando fomos não estávamos lá. E existiu mesmo esse dia? Existimos mesmo ou é tão somente a memória inventando um rosto, uma linha, um horizonte? Não nos resta sequer uma fotografia que o prove ou um poema que justifique essa ausência de nós mesmos e dos outros. Porque o livro trata do tempo e de vidas humanas à beira dos livros e dos quadros e da música e da luz cravada no papel, que são estes textos e estas fotografias. “Haveríamos de ser estranhos e na estranheza virar todas as páginas em sobressaltos.” (p. 35) Um livro onde a existência é um desencontro. E Deus um deserto.

— Paulo José Miranda

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