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ROMA
ОглавлениеO telefonema chegou às 23h42. Luigi Donati hesitou antes de atender. O número exibido no ecrã do seu telefonino pertencia a Albanese. Só havia uma razão para ele estar a ligar a uma hora daquelas.
— Onde é que Vossa Excelência está?
— Fora do recinto.
— Ah, pois. É quinta-feira, não é?
— Há algum problema?
— É melhor não dizer demasiado ao telefone. Nunca se sabe quem poderá estar a ouvir.
Donati embrenhou-se na noite fria e húmida. Envergava um fato clerical preto com colarinho romano branco, em vez da batina e peregrineta debruadas a fúchsia que usava no escritório (era assim que os homens com o seu título eclesiástico se referiam ao Palácio Apostólico). Donati era arcebispo e secretário pessoal de Sua Santidade, o papa Paulo VII. Alto e esguio, com abundante cabelo escuro e feições de estrela de cinema, celebrara recentemente o seu sexagésimo terceiro aniversário. A idade em nada diminuíra a sua beleza. A revista Vanity Fair batizara-o recentemente como «Luigi, o Deslumbrante». O artigo causara-lhe um enorme embaraço no mundo de maledicência da Cúria, mas, dada a merecida reputação de Donati como implacável, ninguém se atrevera a mencionar-lho na cara. Ninguém, exceto o Santo Padre, que troçara impiedosamente dele.
É melhor não dizer demasiado ao telefone…
Há um ano ou mais que Donati se andava a preparar para esse momento, desde o primeiro ataque cardíaco leve, que ocultara do resto do mundo e até de grande parte da Cúria. Mas, de entre tantas noites, tinha logo de ser aquela?
A rua estava estranhamente silenciosa. Funestamente silenciosa, pensou Donati de súbito. Era uma avenida ladeada de palazzos, mesmo ao lado da Via Veneto, o tipo de local onde um sacerdote raramente punha os pés, especialmente um padre educado e treinado pela Companhia de Jesus, a ordem intelectualmente rigorosa e por vezes insubordinada a que Donati pertencia. O seu carro oficial, com a matrícula SCV característica do Vaticano, aguardava junto à berma. O motorista pertencia ao Corpo della Gendarmeria, a força policial do Vaticano, constituída por 130 membros. O automóvel dirigiu-se sem pressa para oeste, atravessando Roma.
Ele não sabe…
No telemóvel, Donati deu uma vista de olhos aos sites dos principais jornais italianos. Não sabiam de nada. Tal como os seus colegas de Londres e Nova Iorque.
— Liga o rádio, Gianni.
— Música, Vossa Excelência?
— Notícias, por favor.
Mais um ror de disparates de Saviano, outro discurso inflamado sobre como os imigrantes árabes e africanos estavam a destruir o país, como se os italianos não fossem bem capazes de pôr tudo de pantanas por si próprios. Há meses que Saviano importunava o Vaticano para conseguir uma audiência privada com o Santo Padre. Com um regozijo velado, Donati rejeitara conceder-lha.
— Já chega, Gianni.
O rádio caiu num silêncio abençoado. Donati espreitou pela janela do luxuoso sedan alemão. Era uma forma imprópria de um Soldado de Cristo se deslocar. Calculava que essa fosse a última vez que atravessava Roma numa limusina com motorista. Durante quase duas décadas, desempenhara funções equiparáveis às de um chefe de gabinete da Igreja Católica Romana. Fora uma época conturbada (um ataque terrorista na Praça de São Pedro, um escândalo que envolvera antiguidades e os Museus do Vaticano, o flagelo dos abusos sexuais dos sacerdotes), mas, mesmo assim, Donati apreciara cada minuto. Agora, num abrir e fechar de olhos, tudo terminara. Era novamente um mero sacerdote. Nunca se tinha sentido tão só.
O carro atravessou o Tibre e virou para a Via della Conciliazione, a larga avenida que Mussolini talhara entre os bairros degradados de Roma. A cúpula da Basílica, iluminada por holofotes e restaurada à sua glória original, espreitava ao longe. Seguiram a curva da Colunata de Bernini até à Porta de Santa Ana, onde um guarda suíço gesticulou para que continuassem para o território da cidade-estado. Envergava o uniforme noturno: uma farda azul com gola branca de estilo colegial, meias até ao joelho, uma boina preta, uma capa contra o frio da noite. Os seus olhos estavam secos, o rosto impassível.
Ele não sabe…
O carro subiu lentamente a Via Sant’Anna, passando pela caserna da Guarda Suíça, pela Igreja de Santa Ana, pela Tipografia Vaticana e pelo Banco do Vaticano, antes de se deter junto de uma arcada que conduzia ao Pátio de São Dâmaso. Donati atravessou a calçada a pé, entrou no mais importante elevador de toda a cristandade e subiu até ao terceiro andar do Palácio Apostólico. Apressou-se a percorrer a lógia, ladeada por uma parede de vidro, num lado, e por um fresco, no outro. Um desvio à esquerda levou-o até ao apartamento papal.
De pé, à porta, havia outro guarda suíço, absolutamente hirto, desta feita trajado com o uniforme formal completo. Donati passou por ele sem uma palavra e entrou. Quinta-feira, pensou ele. Porque é que tinha de ser numa quinta-feira?
* * *
Dezoito anos, pensou Donati enquanto inspecionava o escritório privado do Santo Padre, e nada mudara. Apenas o telefone. Donati conseguira, finalmente, convencer o Santo Padre a substituir o antiquado aparelho de disco por um telefone moderno com várias linhas. À exceção disso, a divisão estava exatamente como o polaco a deixara. A mesma secretária de madeira austera. A mesma cadeira bege. O mesmo tapete oriental puído. O mesmo relógio e o mesmo crucifixo dourados. Até o conjunto de caneta e mata-borrão que pertencera a Wojtyla, o Grande. Embora, inicialmente, o seu papado tivesse sido muito promissor, criando a expectativa de uma Igreja mais bondosa e menos repressiva, Pietro Lucchesi nunca conseguira escapar completamente à vasta sombra do seu predecessor.
Instintivamente, Donati reparou nas horas marcadas no seu relógio de pulso. Eram 00h07. Nessa noite, o Santo Padre retirara-se para o escritório às oito e meia, para noventa minutos de leitura e escrita. Habitualmente, Donati permanecia junto do seu mestre ou ao fundo do corredor, no seu escritório. Mas, como era quinta-feira, a única noite da semana que tinha para si, tinha ficado apenas até às nove horas.
Faça-me um favor antes de ir, Luigi…
Lucchesi pedira a Donati que abrisse as pesadas cortinas que tapavam a janela do escritório. Era a mesma janela a partir da qual, todos os domingos ao meio-dia, o Santo Padre rezava o Ângelus. Donati cumprira os desejos do seu mestre. Abrira, inclusive, as persianas, para que Sua Santidade pudesse contemplar a Praça de São Pedro, enquanto se dedicava arduamente às formalidades administrativas curiais. Agora, as cortinas estavam completamente corridas. Donati afastou-as para o lado. As persianas também estavam fechadas.
A secretária estava arrumada, não a habitual desarrumação de Lucchesi. Havia uma chávena de chá semivazia e uma colher pousada no pires que não estavam ali quando Donati saíra. Vários documentos, guardados em pastas de arquivo, empilhavam-se ordenadamente sob o velho candeeiro extensível. Um relatório da Arquidiocese de Filadélfia sobre as consequências financeiras do escândalo dos abusos sexuais. Observações para a audiência geral da quarta-feira seguinte. O primeiro rascunho de uma homilia para uma futura visita papal ao Brasil. Notas para uma encíclica sobre o tema da imigração que, decerto, irritariam Saviano e os seus simpatizantes da extrema-direita italiana.
No entanto, um artigo desaparecera.
Vai assegurar-se de que ele recebe isto, não vai, Luigi?
Donati inspecionou o cesto dos papéis. Estava vazio. Nem um único pedacinho de papel.
— Vossa Excelência está à procura de alguma coisa?
Donati ergueu o olhar e viu o cardeal Domenico Albanese a observá-lo da porta. Albanese era calabrês de nascimento e, de ofício, uma criatura da Cúria. Ocupava vários cargos superiores na Santa Sé, incluindo o de presidente do Conselho Pontifício para o Diálogo Inter-religioso e o de arquivista e bibliotecário da Santa Igreja Romana. No entanto, nada disso explicava a sua presença no apartamento papal sete minutos depois da meia-noite. Aliás, Domenico Albanese também era o camerlengo. Era da sua exclusiva responsabilidade fazer a declaração formal de que o trono de São Pedro se encontrava vago.
— Onde é que ele está? — perguntou Donati.
— No reino dos céus — entoou o cardeal.
— E o corpo?
Se Albanese não tivesse ouvido o chamamento sagrado, poderia ter ganhado a vida a carregar placas de mármore ou a arremessar carcaças num matadouro calabrês. Donati seguiu-o, através de um pequeno corredor, até ao quarto. Outros três cardeais aguardavam na penumbra: Marcel Gaubert, José Maria Navarro e Angelo Francona. Gaubert era o secretário de Estado, na prática, o primeiro-ministro e chefe da diplomacia do mais pequeno país do mundo. Navarro era o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, guardião da ortodoxia católica e defensor contra a heresia. Francona, o mais velho dos três, era o reitor do Colégio Cardinalício. Como tal, presidiria ao próximo conclave.
Foi Navarro, um espanhol de linhagem nobre, quem se dirigiu a Donati primeiro. Embora vivesse e trabalhasse em Roma há quase um quarto de século, continuava a falar italiano com um forte sotaque castelhano.
— Luigi, sei como isto deve ser doloroso para si. Nós éramos os seus fiéis servidores, mas era o Luigi que ele mais amava.
Ao ouvir o chavão curial do espanhol, o cardeal Gaubert, um parisiense magro com um rosto felino, assentiu gravemente com a cabeça, tal como os três leigos que se encontravam na sombra, de pé, na extremidade da divisão: o doutor Octavio Gallo, médico pessoal do Santo Padre, Lorenzo Vitale, diretor do Corpo della Gendarmeria, e o coronel Alois Metzler, comandante da Guarda Suíça Pontifícia. Parecia que Donati fora o último a chegar. Devia ter sido ele, o secretário pessoal, a convocar os príncipes superiores da Igreja para a cabeceira do falecido papa, não o camerlengo. Subitamente, sentiu-se atormentado pela culpa.
Porém, quando baixou o olhar para observar a figura estendida na cama, a culpa deu lugar a um pesar avassalador. Lucchesi ainda envergava a batina branca, embora lhe tivessem retirado os múleos e o solidéu tivesse desaparecido. Alguém lhe colocara as mãos sobre o peito, a agarrar o rosário. Os olhos estavam fechados, o maxilar flácido, mas não havia qualquer sinal de dor no seu rosto, nada que sugerisse que sofrera. Na verdade, Donati não teria ficado surpreendido se Sua Santidade tivesse acordado de repente e perguntado como correra a sua noite.
Ainda envergava a batina branca…
Donati fora o responsável pela agenda do Santo Padre desde o primeiro dia do seu pontificado. A rotina noturna raramente variava. O jantar era das sete às oito e meia. As formalidades administrativas no escritório, das oito e meia às dez, seguidas de quinze minutos de oração e reflexão na sua capela privada. Em regra, estava na cama às dez e meia, geralmente em companhia de um romance policial inglês, o seu prazer secreto. Crimes e Desejos, de P.D. James, repousava na mesa de cabeceira, debaixo dos seus óculos de leitura. Donati abriu-o na página marcada.
Quarenta e cinco minutos depois, Rickards estava de volta ao local do crime…
Donati fechou o livro. Calculava que o Sumo Pontífice estivesse morto há quase duas horas, talvez mais. Calmamente, perguntou:
— Quem é que o encontrou? Espero que não tenha sido nenhuma das freiras do serviço doméstico.
— Fui eu — respondeu o cardeal Albanese.
— Onde é que ele estava?
— Sua Santidade despediu-se desta vida na capela. Encontrei-o alguns minutos depois das dez. Quanto à hora exata do falecimento… — O calabrês encolheu os ombros pesados. — Não lhe sei dizer, Vossa Excelência.
— Porque é que não fui contactado imediatamente?
— Procurei-o por todo o lado.
— Devia ter ligado para o meu telemóvel.
— E liguei. Várias vezes, na verdade. Ninguém atendeu.
O camerlengo não estava a dizer a verdade, pensou Donati.
— E o que é que Vossa Eminência estava a fazer na capela?
— Isto começa a parecer um interrogatório. — Os olhos de Albanese moveram-se brevemente para o cardeal Navarro, antes de pousarem novamente em Donati. — Sua Santidade pediu-me que rezasse com ele. Eu aceitei o convite.
— Telefonou diretamente para si?
— Para o meu apartamento — disse o camerlengo, com um movimento afirmativo de cabeça.
— A que horas?
Albanese ergueu o olhar para o teto, como se estivesse a tentar lembrar-se de um detalhe esquecido.
— Às nove e um quarto. Talvez às nove e vinte. Pediu-me que viesse alguns minutos depois das dez. Quando cheguei…
Donati baixou o olhar para o corpo sem vida que jazia sobre a cama.
— E como é que chegou até aqui?
— Eu trouxe-o.
— Sozinho?
— Sua Santidade carregava o peso da Igreja aos ombros — disse Albanese —, mas, na morte, tornou-se leve como uma pena. Como não consegui contactá-lo, convoquei o secretário de Estado que, por sua vez, ligou aos cardeais Navarro e Francona. Depois, contactei o dottore Gallo, que declarou o óbito. Morte devido a ataque cardíaco fulminante. Foi o segundo, não foi? Ou foi o terceiro?
Donati olhou para o médico papal.
— A que horas fez a declaração, dottore Gallo?
— Onze e dez, Vossa Excelência.
O cardeal Albanese pigarreou suavemente.
— Na minha declaração oficial, fiz um pequeno ajuste à cronologia dos factos. Se desejar, posso dizer que foi o Luigi que o encontrou.
— Não é necessário.
Donati deixou-se cair de joelhos junto à cama. Em vida, o Santo Padre fora franzino. A morte tinha-o minguado mais ainda. Donati lembrava-se do dia em que, inesperadamente, o conclave elegera Lucchesi, o Patriarca de Veneza, para ser o ducentésimo sexagésimo quinto pontífice da Igreja Católica Romana. Na Sala das Lágrimas, escolhera a mais pequena das três batinas prontas a usar. Ainda assim, aparentava ser um rapazinho vestido com a camisa do pai. Quando se assomou à varanda da Basílica de São Pedro, a sua cabeça mal se via sobre a balaustrada. Os vaticanisti batizaram-no como Pedro, o Improvável. A linha dura da Igreja designou-o, pejorativamente, como o Papa Acidental.
Passado um momento, Donati sentiu uma mão no ombro. Era como chumbo, portanto, tinha de ser de Albanese.
— O anel, Vossa Excelência.
Em tempos, fora responsabilidade do camerlengo destruir, na presença do Colégio Cardinalício, o Anel do Pescador do papa falecido. Porém, tal como os três toques na testa papal com um martelo de prata, a prática fora extinta. O anel de Lucchesi, que ele raramente usava, seria, simplesmente, gravado com dois cortes profundos em forma de cruz. Contudo, outras tradições mantinham-se, tal como o encerramento e selagem imediata do apartamento papal. Assim que o corpo fosse retirado, nem mesmo Donati, o único secretário pessoal de Lucchesi, seria autorizado a entrar.
Ainda de joelhos, Donati abriu a gaveta da mesa de cabeceira e agarrou no pesado anel dourado. Entregou-o ao cardeal Albanese, que o colocou numa bolsa de veludo. Solenemente, declarou:
— Sede vacante.
O trono de São Pedro estava, agora, vago. A Constituição Apostólica ditava que o cardeal Albanese assumisse a direção temporária da Igreja Católica Romana durante o interregno, que terminava com a eleição do novo papa. Donati, com o mero título de arcebispo, não teria qualquer voto na matéria. Na verdade, agora que o seu mestre falecera, não tinha cargo nem poder, respondendo apenas perante o camerlengo.
— Quando é que pretende divulgar a declaração? — perguntou Donati.
— Estava à espera de que chegasse.
— Posso revê-la?
— O tempo urge. Se adiarmos mais…
— Claro, Vossa Eminência. — Donati pousou a mão sobre a de Lucchesi. Já estava fria. — Gostaria de ter um momento a sós com ele.
— Mas é mesmo só um momento… — disse o camerlengo.
O quarto esvaziou-se lentamente. O cardeal Albanese foi o último a sair.
— Diga-me uma coisa, Domenico.
O camerlengo parou no limiar da porta.
— Vossa Excelência?
— Quem correu as cortinas do escritório?
— As cortinas?
— Estavam abertas quando eu saí, às nove. As persianas também.
— Fui eu que as corri, Vossa Excelência. Não queria que ninguém na praça visse as luzes acesas no apartamento tão tarde.
— Sim, claro. Foi sensato da sua parte, Domenico.
O camerlengo saiu, deixando a porta aberta. Sozinho com o seu mestre, Donati conteve as lágrimas. Haveria tempo para fazer o luto mais tarde. Inclinando-se, aproximou-se do ouvido de Lucchesi e apertou a sua mão fria.
— Fale comigo, velho amigo — sussurrou. — Diga-me o que aconteceu realmente aqui esta noite.