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CASA SANTA MARTA
ОглавлениеEm circunstâncias normais, não havia guardas suíços a vigiar o exterior da Casa Santa Marta. No entanto, às oito e um quarto dessa mesma noite, havia dois. A hospedaria clerical estava agora ocupada por várias dezenas de príncipes da Igreja, a maioria vinda dos recantos mais longínquos do reino. Na véspera do conclave, os restantes cardeais eleitores juntar-se-iam a eles. Depois disso, ninguém, exceto as funcionárias da Casa Santa Marta (freiras das Filhas da Caridade de São Vicente de Paulo), seria autorizado a entrar. Por agora, só alguns eleitos, incluindo o bispo Hans Richter, superior-geral da Ordem de Santa Helena, tinham liberdade para entrar e sair conforme desejassem. Com o cardeal Domenico Albanese a controlar firmemente a maquinaria da cidade-estado, o longo exílio do bispo Richter finalmente terminara.
Um dos guardas suíços segurou a porta de vidro aberta e Richter, com a mão direita erguida em sinal de bênção, entrou. O resplandecente átrio branco ecoava com um estrépito multilingue. Os 225 membros do Colégio Cardinalício tinham passado a tarde a discutir o futuro da Igreja. Agora, estavam a partilhar um vinho branco com acepipes no átrio, antes de se sentarem para jantar na singela sala de refeições da Casa Santa Marta. A Constituição Apostólica ditava que apenas 116 cardeais com menos de oitenta anos poderiam participar no conclave. Os cardeais eméritos mais idosos davam a conhecer as suas preferências durante reuniões informais como aquela, que era onde as verdadeiras negociações pré-conclave tinham lugar.
Richter reconheceu discretamente as saudações de dois célebres tradicionalistas e suportou o olhar gélido do cardeal Kevin Brady, o leão liberal de Los Angeles, que via um papa cada vez que se olhava ao espelho. Brady estava a conspirar com o minúsculo Duarte de Manila, a grande esperança dos países em vias de desenvolvimento. O cardeal Navarro transbordava de confiança, como se o papado já fosse seu. Era evidente que Gaubert, conivente com Villiers de Lyon, não se daria por vencido sem lutar.
Só o bispo Hans Richter sabia que nenhum deles tinha a mínima hipótese. O próximo papa estava, naquele momento, de pé, junto ao balcão da receção. Era uma figura de segundo plano, numa sala repleta de egos elevados e ambição ilimitada. Recebera o seu chapéu vermelho das mãos de nada mais nada menos do que Pietro Lucchesi, que fora levado a acreditar, ilusoriamente, que era um moderado, algo que, definitivamente, não era. Cinquenta milhões de euros, depositados discretamente em contas bancárias em todo o mundo, incluindo doze no Banco do Vaticano, tinham praticamente garantido a sua eleição pelo conclave. A obtenção da vasta soma de dinheiro necessária para comprar o papado fora a parte mais fácil da operação. Ao contrário do resto da Igreja, à beira do colapso financeiro, a Ordem de Santa Helena estava a nadar em dinheiro.
O cardeal Domenico Albanese estava a sussurrar algo ao ouvido de Angelo Francona, o reitor do Colégio Cardinalício. Ao avistar Richter, acenou-lhe com uma mão volumosa e peluda.
— Fiz alguma coisa que ofendesse alguém? — perguntou Richter, num italiano curial impecável.
— A sua simples existência ofende, Vossa Excelência. — Albanese agarrou Richter pelo braço. — Talvez devêssemos conversar no meu quarto.
— Não me diga que se mudou realmente para aqui.
Albanese fez um trejeito. Como prefetto do Arquivo Secreto, tinha direito a um apartamento luxuoso por cima da Galeria Lapidária dos Museus do Vaticano.
— Estou apenas a usar o meu quarto aqui como escritório, até ao início do conclave.
— Com um pouco de sorte — disse Richter em voz baixa —, não terá de ficar aqui muito tempo.
— A comunicação social está a prever um combate titânico entre os reformadores e os reacionários.
— Não me diga?
— O consenso geral parece ser sete votos.
Uma freira, vestida com um hábito azul, ofereceu um copo de vinho a Richter. Recusando, Richter seguiu Albanese até aos elevadores. Quase conseguia sentir os olhos da sala a perfurarem-lhe as costas, enquanto esperavam pela chegada do elevador. Quando este finalmente apareceu, Albanese premiu o botão para o quarto andar. Felizmente, as portas encerraram-se antes que o loquaz Lopes do Rio de Janeiro conseguisse entrar.
Enquanto o elevador subia lentamente, o bispo Richter ajeitou várias vezes a batina debruada a roxo, embora desnecessariamente. Feita à mão em Zurique por um alfaiate exclusivo, assentava-lhe na perfeição. Aos setenta e quatro anos, continuava a ser um espécime fisicamente imponente, alto e com ombros quadrados, cabelo grisalho e uma fisionomia inflexível a condizer.
Olhou para o reflexo do cardeal Albanese nas portas do elevador.
— Qual é a ementa desta noite, Vossa Eminência?
— Seja o que for que nos sirvam, vai estar demasiado cozinhado. — Albanese sorriu desajeitadamente. Mesmo envergando a sua batina debruada a vermelho, parecia um simples empregado. — Considere-se afortunado por não ter de participar realmente no conclave.
Na nomenclatura da Igreja Católica Romana, a Ordem de Santa Helena era uma prelatura pessoal. Na verdade, tratava-se de uma diocese global sem fronteiras. Como superior-geral da Ordem, Richter detinha o título de bispo. Contudo, estava entre os homens mais poderosos da Igreja Católica Romana. Várias dezenas de cardeais, todos membros secretos da Ordem, eram obrigados a obedecer a todas as suas ordens, incluindo o cardeal Domenico Albanese.
As portas do elevador abriram-se. Albanese conduziu o bispo Richter ao longo de um corredor vazio. O quarto em que entraram estava às escuras. Albanese descobriu o interruptor.
Richter inspecionou a área circundante.
— Estou a ver que atribuiu a si próprio uma das suítes.
— Os quartos foram atribuídos por sorteio, Vossa Excelência.
— Sorte a sua.
O bispo Richter estendeu a sua mão direita, com o pulso ligeiramente inclinado. Albanese ajoelhou-se e encostou os lábios ao anel que Richter usava no terceiro dedo. Tinha um tamanho idêntico ao Anel do Pescador que Albanese retirara recentemente do apartamento papal.
— Juro-lhe, bispo Richter, a minha eterna obediência.
Richter retirou a mão, resistindo à vontade de usar o pequeno frasco de desinfetante que tinha no bolso. Richter tinha fobia a germes e Albanese parecia-lhe sempre ser um transmissor.
Dirigiu-se à janela e abriu a cortina translúcida. A suíte ficava na parte norte da hospedaria, com vista para a Piazza Santa Marta e para a fachada da basílica. A cúpula estava iluminada por holofotes. Os ferimentos resultantes do atentado terrorista islâmico tinham sarado bem. Oxalá se pudesse dizer o mesmo da Santa Madre Igreja. Era uma sombra de si própria, já mal respirava, moribunda.
O bispo Hans Richter nomeara-se a si próprio como o seu salvador. Tinha-se preparado para esperar pelo fim do desastroso papado de Lucchesi para colocar em funcionamento o seu plano, mas Sua Santidade não dera outra hipótese a Richter senão resolver o assunto com as suas próprias mãos. Fora Lucchesi que pecara, assegurava Richter a si próprio, não ele. Para além disso, Deus já estava a chamar Lucchesi há algum tempo. No entender de Richter, apenas concedera ao Papa Acidental um início precoce do seu inevitável processo de canonização.
Os pensamentos de Richter foram interrompidos por uma descarga ribombante na sanita. Quando Albanese saiu, estava a limpar as suas mãos enormes numa toalha (como um coveiro, pensou Richter). E pensar que se via a si próprio como possível papa, como o escolhido de Richter para ser o seu pontífice fantoche. Albanese não era um grande intelectual, mas jogara o jogo do infiltrado curial suficientemente bem para assegurar duas nomeações papais fundamentais. Como camerlengo, Albanese conduzira o corpo de Lucchesi do apartamento papal para o túmulo sob a Basílica de São Pedro sem qualquer indício de escândalo. Para além disso, colocara nas mãos de Richter cópias de vários dossiês pessoais do Arquivo Secreto do Vaticano repletos de pecados, que se tinham revelado inestimáveis durante os preparativos do conclave. Como recompensa, em breve, Albanese seria secretário de Estado, a segunda posição mais poderosa da Santa Sé.
Secou o rosto bexigoso e, depois, atirou a toalha para cima das costas de uma cadeira.
— Com todo o respeito, acha que foi sensato vir aqui esta noite, Vossa Excelência?
— Está a esquecer-se de que muitos dos cardeais que estão lá em baixo são, agora, homens abastados por minha causa?
— Mais um motivo para não dar nas vistas até o conclave terminar. Imagino aquilo que pessoas como o Francona ou o Kevin Brady estarão a dizer neste momento…
— O Francona e o Brady são o menor dos nossos problemas.
A modesta poltrona de madeira sobre a qual Albanese se deixou cair gemeu sob o seu peso.
— Há algum sinal do Janson?
Richter abanou a cabeça.
— Naquela noite, estava claramente transtornado. É possível que tenha acabado com a própria vida.
— Não sei se teremos tanta sorte.
— Certamente, não está a falar a sério, Vossa Excelência. Se o Janson se tivesse suicidado, a sua alma estaria em grave perigo.
— Já está.
— Tal como a minha — disse Albanese em voz baixa.
Richter pousou uma mão no ombro maciço do camerlengo.
— Concedi-lhe absolvição pelas suas ações, Domenico. A sua alma está em estado de graça.
— E a sua, Vossa Excelência?
Richter retirou a mão.
— Durmo bem à noite, sabendo que, daqui a alguns dias, a Igreja estará sob nosso controlo. Não permitirei que ninguém se intrometa no nosso caminho. E isso inclui um bonito moçoilo do cantão de Friburgo.
— Nesse caso, sugiro que o encontre, Vossa Excelência. Quanto mais cedo, melhor.
O bispo Richter sorriu friamente.
— É esse o tipo de pensamento analítico e incisivo que pretende trazer para a Secretaria de Estado?
Albanese sofreu a crítica do seu superior-geral em silêncio.
— Fique descansado — disse o bispo Richter —, a Ordem está a usar todos os seus consideráveis recursos para encontrar o Janson. Infelizmente, já não somos os únicos que andam à procura dele. Parece que o arcebispo Donati se juntou à busca.
— Se nós não conseguimos encontrar o Janson, que esperança é que o Donati tem?
— O Donati tem algo muito melhor do que esperança.
— O quê?
O bispo Richter fitou a cúpula da basílica.
— O Gabriel Allon.