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JERUSALÉM–VENEZA

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Foi Chiara quem informou secretamente o primeiro-ministro de que o seu marido precisava desesperadamente de umas férias. Desde que se instalara com relutância no gabinete executivo da Avenida Rei Saul, praticamente não concedera a si próprio uma única tarde livre, apenas alguns dias de convalescença após o atentado à bomba em Paris, no qual fraturara duas vértebras na região lombar. Ainda assim, não era algo que pudesse ser encarado de ânimo leve. Gabriel precisava de comunicações seguras e, mais importante do que isso, de segurança apertada. Tal como Chiara e os gémeos. Em breve, Irene e Raphael celebrariam o seu quarto aniversário. A ameaça que pairava sobre a família Allon era tão forte que as crianças nunca tinham posto um pé fora do Estado de Israel.

Mas para onde iriam? Uma viagem exótica para um destino longínquo não era uma opção. Teriam de permanecer razoavelmente próximos de Israel, para que, na eventualidade bastante provável de uma emergência nacional, Gabriel pudesse regressar à Avenida Rei Saul numa questão de horas. No seu futuro, não se vislumbrava um safari na África do Sul nem uma viagem à Austrália ou às Galápagos. Provavelmente, era melhor assim: Gabriel tinha uma relação conflituosa com animais selvagens. Para além disso, a última coisa que Chiara queria fazer era cansá-lo com mais um voo de longa distância. Agora que era diretor-geral do Departamento, voava constantemente para Washington para se reunir com os seus parceiros americanos em Langley. Aquilo de que ele mais precisava era de descanso.

Por outro lado, usufruir de momentos de lazer não era algo natural para ele. Era um homem de enorme talento, mas com poucos hobbies. Não fazia esqui nem mergulho e jamais empunhara um taco de golfe ou uma raquete de ténis, exceto como arma. As praias aborreciam-no, a não ser que fossem frias e ventosas. Gostava de velejar, principalmente nas águas agitadas do oeste de Inglaterra, ou de pôr uma mochila às costas e atravessar uma charneca árida. Nem mesmo Chiara, que era agente de campo reformada do Depar­tamento, conseguia aguentar o seu ritmo alucinante durante mais de dois ou três quilómetros. As crianças iriam, decididamente, desfalecer.

O truque seria encontrar algo para Gabriel fazer enquanto estivessem de férias, um pequeno projeto que pudesse ocupá-lo durante algumas horas, todas as manhãs, até que as crianças acordassem e estivessem vestidas e prontas para começar o dia. E se esse projeto pudesse ser realizado numa cidade onde ele já se sentisse à vontade? A cidade onde estudara o ofício de restaurador de arte e fizera a sua formação prática? A cidade onde ele e Chiara se tinham conhecido e apaixonado? Ela era natural dessa cidade e o pai era o grande rabino da sua cada vez mais reduzida comunidade judaica. Para além disso, a sua mãe andava a insistir para que que levasse as crianças a visitá-los. Seria perfeito, pensou. Como diz o provérbio, mataria dois coelhos de uma cajadada só.

Mas quando? Agosto estava fora de questão. Era demasiado quente e húmido e a cidade estaria submersa num mar de turistas, hordas de amantes de selfies que, durante uma hora ou duas, seguiam guias mal-humorados pela cidade, antes de engolirem apressadamente um cappuccino no Caffè Florian, por um preço exorbitante, e regressarem aos seus cruzeiros. Mas, se esperassem até, digamos, novembro, o tempo estaria fresco e sem nuvens e teriam o sestiere basicamente só para eles. Isso dar-lhes-ia a oportunidade de refletirem sobre o futuro sem a distração do Departamento ou da vida quotidiana em Israel. Gabriel informara o primeiro-ministro de que cumpriria apenas um mandato. Não era demasiado cedo para começarem a pensar como iriam passar o resto das suas vidas e onde iriam criar os seus filhos. Nenhum deles estava a ir para novo, principalmente Gabriel.

Chiara não o informou dos seus planos, já que isso só conduziria a um extenso discurso por parte do seu marido sobre todos os motivos pelos quais o Estado de Israel colapsaria se ele tirasse, sequer, um dia de folga. Pelo contrário, conspirou com Uzi Navot, o subdiretor, para escolher as datas. A divisão de Logística, responsável pela aquisição e gestão de propriedades seguras, tratou do alojamento. A polícia e os serviços secretos locais, com quem Gabriel mantinha uma relação de grande proximidade, aceitaram encarregar-se da segurança.

Faltava apenas o projeto para manter Gabriel ocupado. No final de outubro, Chiara telefonou a Francesco Tiepolo, proprietário de uma das mais proeminentes empresas de restauro da região.

— Tenho mesmo aquilo de que precisa. Vou enviar-lhe uma fotografia.

Três semanas depois, após uma reunião particularmente conflituosa do turbulento Conselho de Israel, Gabriel regressou a casa para encontrar a família Allon de malas feitas.

— Vais deixar-me?

— Não — disse Chiara. — Vamos de férias. Nós todos.

— Eu não posso, de forma nenhuma…

— Está tudo tratado, querido.

— O Uzi sabe?

Chiara assentiu com a cabeça.

— E o primeiro-ministro também.

— Para onde é que vamos? E durante quanto tempo?

Ela respondeu.

— O que é que eu vou fazer durante duas semanas?

Chiara entregou-lhe a fotografia.

— É impossível conseguir terminar isto.

— Fazes o máximo que conseguires.

— E vou deixar outra pessoa tocar no meu trabalho?

— Não é o fim do mundo.

— Nunca se sabe, Chiara. Talvez seja.

O apartamento ocupava o piano nobile de um velho palazzo degradado em Cannaregio, o mais setentrional dos seis sestieri tradicionais de Veneza. Contava com um salão de visitas, uma grande cozinha repleta de eletrodomésticos modernos e um terraço com vista para o Rio della Misericordia. Num dos quatro quartos, a divisão de Logística estabelecera uma ligação segura com a Avenida Rei Saul, completando-a com uma estrutura semelhante a uma tenda (na gíria do Departamento, era conhecida como chupá[1]) que permitia a Gabriel falar ao telefone sem receio de escutas eletrónicas. No exterior, na Fondamenta dei Ormesini, montavam guarda os agentes à paisana dos carabinieri. Com o consentimento deles, Gabriel estava armado com uma pistola Beretta de 9 mm. Chiara, que era muito melhor atiradora do que ele, também.

Caminhando alguns passos ao longo do cais, havia uma ponte de ferro (a única em Veneza) e, no lado oposto do canal, uma ampla praça chamada Campo di Ghetto Nuovo, onde se situavam um museu, uma livraria e os escritórios da comunidade judaica. A Casa Israelitica di Riposo, um lar para idosos, ocupava o flanco norte. Junto da mesma, havia um austero memorial em baixo-relevo, em homenagem aos judeus de Veneza que, em dezembro de 1943, tinham sido reunidos, detidos em campos de concentração e, mais tarde, assassinados em Auschwitz. Dois carabinieri fortemente armados vigiavam o memorial a partir de um posto fortificado. Das duzentas e cinquenta mil pessoas que ainda habitavam nas ilhas de uma Veneza que se afundava, só os judeus precisavam de proteção policial vinte quatro horas por dia.

Os prédios que flanqueavam o campo[2] eram os mais altos de Veneza pois, na Idade Média, a Igreja proibira os seus residentes de morarem em qualquer outro lugar da cidade. Nos últimos andares de vários edifícios, existiam pequenas sinagogas (agora meticulosamente restauradas) que, em tempos, tinham servido as comunidades de judeus asquenazes e sefarditas que viviam por baixo. As duas sinagogas do gueto ainda em funcionamento ficavam a sul do campo. Ambas eram clandestinas, e não havia nada na sua aparência externa que sugerisse que eram casas de culto judaicas. A Sinagoga Espanhola fora fundada, em 1580, pelos antepassados de Chiara. Desprovida de aquecimento, estava aberta desde a Páscoa Judaica até às grandes festas de Rosh Hashanah e Yom Kippur. A Sinagoga Levantina, situada numa pequena praça, servia a comunidade durante o inverno.

O rabino Jacob Zolli e a sua esposa, Alessia, viviam ao virar da esquina da Sinagoga Levantina, numa casinha estreita com vista para um corte[3] isolado. Foi lá que a família Allon jantou, na segunda-feira à noite, poucas horas depois de terem chegado a Veneza. Gabriel conseguiu consultar o telemóvel apenas quatro vezes.

— Espero que não haja nenhum problema — disse o rabino Zolli.

— O habitual — murmurou Gabriel.

— Fico aliviado.

— Não fique.

O rabino riu-se baixinho e passeou o olhar pela mesa, satisfeito, pousando-o brevemente nos dois netos, na esposa e, finalmente, na filha. A luz da vela refletia-se nos olhos de Chiara, que eram cor de caramelo salpicados de dourado.

— A Chiara nunca esteve tão radiante. Obviamente, faze-la muito feliz.

— A sério?

— É certo que tem havido alguns percalços no caminho. — O tom do rabino foi admoestatório. — Mas garanto-te que ela se considera a pessoa mais sortuda do mundo.

— Receio que essa honra me pertença.

— Ouvi dizer que ela te enganou com os planos de viagem.

Gabriel franziu o sobrolho.

— De certeza que há algum excerto na Torá que proíba esse tipo de coisas.

— Não me lembro de nenhum.

— Provavelmente, foi melhor assim — admitiu Gabriel. — De outra forma, duvido que tivesse concordado.

— Fico satisfeito por finalmente terem conseguido trazer as crianças a Veneza. Mas temo que tenham vindo numa altura complicada. — O rabino Zolli baixou a voz. — O Saviano e os seus amigos da extrema-direita despertaram forças obscuras na Europa.

Giuseppe Saviano era o novo primeiro-ministro italiano. Era xenófobo, intolerante, sem qualquer respeito pela imprensa livre e com pouca paciência para detalhes como o parlamentarismo ou o Estado de Direito. Tal como o seu amigo íntimo, Jörg Kaufmann, o neofascista novato que ocupava a chancelaria da Áustria. Em França, assumia-se à boca cheia que Cécile Leclerc, líder da Frente Popular, seria a nova residente do Palácio do Eliseu. Na Alemanha, esperava-se que os Nacionais-Democratas, liderados por um antigo skinhead neonazi chamado Axel Brünner, ficassem em segundo lugar nas eleições gerais de janeiro. Aparentemente, a extrema-direita estava em franca ascensão generalizada.

O seu aumento de popularidade na Europa Ocidental fora alimentado pela globalização, pela incerteza económica e pela composição demográfica do continente, que mudava a olhos vistos. Atualmente, os muçulmanos constituíam já cinco por cento da população europeia, pelo que um número crescente de europeus nativos via o Islão como uma ameaça existencial à sua identidade cultural e religiosa. A raiva e o ressentimento, em tempos contidos ou escondidos do espaço público, percorriam, agora, as veias da Internet como um vírus. Os ataques a muçulmanos tinham aumentado drasticamente, tal como as agressões físicas e os atos de vandalismo contra judeus. Efetivamente, o antissemitismo na Europa atingira níveis que não eram vistos desde a Segunda Guerra Mundial.

— O nosso cemitério no Lido foi novamente vandalizado na semana passada — disse o rabino Zolli. — Lápides tombadas, suásticas… o costume. Os meus fiéis estão assustados. Tento confortá-los, mas também estou assustado. Os políticos anti-imigração, como o Saviano, agitaram a garrafa e tiraram-lhe a rolha. Os seus apoiantes queixam-se dos refugiados do Médio Oriente e de África, mas não há ninguém que eles abominem mais do que nós. É o ódio mais antigo. Aqui em Itália, já não é mal visto ser antissemita. Nos dias de hoje, o desprezo por nós pode expressar-se de forma bastante aberta. E os resultados têm sido inteiramente previsíveis.

— A tempestade há de passar — disse Gabriel, com pouca convicção.

— Os teus avós provavelmente disseram o mesmo. Tal como os judeus de Veneza. A tua mãe conseguiu sair de Auschwitz viva. Os judeus de Veneza não tiveram tanta sorte. — O rabino Zolli abanou a cabeça. — Já vi este filme antes, Gabriel. Sei como é que termina. Nunca te esqueças de que o inimaginável pode acontecer. Mas não vamos estragar a noite com conversas desagradáveis. Quero gozar a companhia dos meus netos.

Na manhã seguinte, Gabriel acordou cedo e passou algumas horas a falar com os seus principais colaboradores na Avenida Rei Saul, sob a proteção da chupá. Depois, alugou um barco a motor e levou Chiara e as crianças num passeio pela cidade e pelas ilhas da lagoa. Estava demasiado frio para nadar no Lido, mas as crianças tiraram os sapatos e perseguiram gaivotas e andorinhas-do-mar pela praia. Na viagem de regresso a Cannaregio, pararam na Igreja de San Sebastiano, em Dorsoduro, para ver a pintura de Veronese, A Virgem e o Menino em Glória com Santos, que Gabriel restaurara durante a gravidez de Chiara. Mais tarde, enquanto a luz de outono se desvanecia no Campo di Ghetto Nuovo, as crianças participaram num ruidoso jogo de apanhada, enquanto Gabriel e Chiara assistiam, sentados num banco de madeira no exterior da Casa Israelitica di Riposo.

— É possível que este seja o meu banco preferido no mundo inteiro — disse Chiara. — Era aqui que estavas sentado no dia em que ganhaste juízo e me imploraste que te aceitasse de volta. Lembras-te, Gabriel? Foi depois do atentado no Vaticano.

— Não sei bem o que é que foi pior, se as granadas-foguete e os bombistas suicidas ou a forma como tu me trataste.

— Tu mereceste, seu pateta. Nunca devia ter aceitado voltar a namorar contigo.

— E agora os nossos filhos estão a brincar no campo — disse Gabriel.

Chiara olhou de relance para o posto dos carabinieri.

— Vigiados por homens armados.

No dia seguinte, quarta-feira, Gabriel esgueirou-se do apartamento depois dos seus telefonemas matinais e, com uma caixa de madeira envernizada debaixo do braço, caminhou até à Igreja da Madonna dell’Orto. A nave central estava na penumbra e os andaimes ocultavam os arcos ogivais das naves laterais. A igreja não tinha transepto, mas, ao fundo, existia uma abside com cinco lados que albergava o túmulo de Jacopo Robusti, mais conhecido como Tintoretto. Foi aí que Gabriel encontrou Francesco Tiepolo. Era um homem grande como um urso, com uma barba crespa, grisalha e negra. Como era habitual, envergava uma túnica branca solta e um lenço amarrado despreocupadamente à volta do pescoço.

Deu um abraço apertado a Gabriel.

— Sempre soube que ias voltar.

— Estou de férias, Francesco. Não nos entusiasmemos demasiado.

Tiepolo acenou a mão como se estivesse a tentar afugentar os pombos na Piazza di San Marco.

— Hoje estás de férias, mas, um dia, vais morrer em Veneza. — Baixou o olhar para o túmulo. — Suponho que teremos de enterrar-te noutro lugar que não seja uma igreja, não é?

Entre 1552 e 1569, Tintoretto criara dez pinturas para a igreja, incluindo a Apresentação da Virgem no Templo, que pendia no lado direito da nave. Era uma tela gigantesca, de 4,80 por 4,29 metros, e uma das suas obras-primas. A primeira fase do restauro, que era remoção do verniz desbotado, estava concluída. Faltava apenas o retoque das partes da tela deterioradas pela passagem do tempo e condições ambientais. Seria uma tarefa monumental. Gabriel calculava que um único restaurador pudesse demorar um ano a concluí-la, se não mais.

— Quem foi a pobre alma que removeu o verniz? O Antonio Politi, espero.

— Foi a Paulina, a rapariga nova. Tinha esperanças de poder observar-te a trabalhar.

— Suponho que a tenhas desenganado dessa ideia.

— Taxativamente. Ela disse que podias ficar com a parte do quadro que quisesses, exceto a Virgem.

Gabriel ergueu o olhar para a parte superior da imponente tela. Maria, a filha de três anos de Joaquim e Ana, judeus de Nazaré, subia hesitantemente os quinze degraus do Templo de Jerusalém em direção ao sumo sacerdote. Alguns degraus abaixo, havia uma mulher reclinada, vestida com um manto de seda castanha. Estava a abraçar uma criança pequena, mas era impossível perceber se se tratava de um rapaz ou de uma rapariga.

— Ela — disse Gabriel. — E a criança.

— Tens a certeza? Precisam de muito trabalho.

Gabriel sorriu tristemente, com os olhos na tela.

— É o mínimo que posso fazer por eles.

Ficou na igreja até às duas da tarde, mais tempo do que pretendia. Nessa noite, ele e Chiara deixaram as crianças com os avós e jantaram a sós no restaurante que ficava no outro lado do Grande Canal, em San Polo. No dia seguinte, quinta-feira, levou as crianças para um passeio de gôndola, de manhã, e trabalhou no Tintoretto do meio-dia às cinco, hora a que Tiepolo trancava as portas da igreja.

Chiara decidiu fazer o jantar no apartamento. Depois, Gabriel supervisionou a batalha noturna conhecida como hora do banho, antes de se retirar para a proteção da chupá para lidar com uma pequena crise em casa. Era quase uma da manhã quando se arrastou para a cama. Chiara estava a ler um romance, alheada da televisão sem som. O ecrã mostrava uma transmissão em direto da Basílica de São Pedro. Gabriel aumentou o volume e soube que um velho amigo falecera.

[1] Tenda sob a qual se realiza o casamento judaico. (N.T.)

[2] Terreiro, em italiano. (N.T.)

[3] Pátio, em italiano. (N.T.)

A Ordem

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