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CANNAREGIO, VENEZA
ОглавлениеMais tarde, nessa manhã, o corpo de Sua Santidade, o papa Paulo VII, foi levado para a Sala Clementina, no segundo andar do Palácio Apostólico. Ali permaneceu até ao início da tarde seguinte, quando foi transferido, em procissão solene, para a Basílica de São Pedro, para dois dias de exibição pública. Quatro guardas suíços, com as alabardas a postos, vigiavam o pontífice falecido. A imprensa do Vaticano deu grande destaque ao facto de o arcebispo Luigi Donati, o assistente e confidente mais próximo do Santo Padre, raramente se ter afastado do seu lado.
A tradição da Igreja ditava que o funeral e o enterro do papa ocorressem quatro a seis dias após a sua morte. O cardeal camerlengo, Domenico Albanese, anunciou que teriam lugar na terça-feira seguinte e que o conclave se reuniria dez dias depois. Os vaticanisti previam uma disputa renhida e fraturante entre reformadores e conservadores. As apostas centravam-se no cardeal José Maria Navarro, que usara a sua posição como guardião doutrinário da Igreja para construir uma base de poder no seio do Colégio Cardinalício que rivalizava, até, com a do papa defunto.
Em Veneza, onde Pietro Lucchesi reinara como patriarca, o presidente do município declarou três dias de luto. Os sinos da cidade ficaram em silêncio e houve um serviço religioso moderadamente participado na Basílica de São Marcos. À exceção disso, a vida prosseguiu como normalmente. Uma pequena acqua alta inundou uma parte da Santa Croce e um cruzeiro colossal colidiu contra um cais do canal da Giudecca. Nos estabelecimentos onde os locais se reuniam para beber um café ou um copo de aguardente contra o frio outonal, raramente se ouvia o nome do falecido pontífice. Cínicos por natureza, poucos venezianos se davam ao trabalho de assistir à missa regularmente e menos ainda viviam as suas vidas de acordo com os ensinamentos dos homens do Vaticano. As igrejas de Veneza, as mais belas de toda a Cristandade, eram locais onde os turistas estrangeiros iam para contemplar arte renascentista.
Contudo, Gabriel seguia os acontecimentos em Roma com um interesse mais do que superficial. Na manhã das exéquias fúnebres do papa, chegou cedo à igreja e trabalhou sem interrupções até ao meio-dia e um quarto, quando ouviu o eco oco de passos na nave. Levantou a sua viseira de ampliação e abriu cuidadosamente a cortina de lona que tapava a sua plataforma. O general Cesare Ferrari, comandante da Divisão de Defesa do Património Cultural dos Carabinieri, mais conhecida como Brigada de Arte, devolveu-lhe um olhar sem expressão.
Sem que tivesse sido convidado, o general atravessou a cortina e contemplou a enorme tela, banhada pela luz branca abrasadora de dois candeeiros de halogéneo.
— É um dos melhores dele, não acha?
— Estava sob enorme pressão para provar o seu valor. Veronese tinha sido reconhecido publicamente como o sucessor de Ticiano e o melhor pintor de Veneza. O pobre Tintoretto já não recebia o mesmo tipo de encomendas de antes.
— Esta era a paróquia dele.
— Não me diga.
— Vivia ao virar da esquina, na Fondamenta di Mori. — O general afastou a lona para o lado e dirigiu-se para a nave. — Antigamente, havia um Bellini nesta igreja. A Virgem com o Menino. Foi roubado em 1993. A Brigada de Arte anda à procura dele desde então. — Perscrutou Gabriel por cima do ombro. — Não o viu, pois não?
Gabriel sorriu. Pouco antes de se tornar chefe do Departamento, recuperara a pintura roubada mais procurada do mundo, a Natividade com São Francisco e São Lourenço, de Caravaggio. Tinha-se assegurado de que a Brigada de Arte recebia todo o crédito por isso. Fora por esse motivo, entre outros, que o general Ferrari aceitara providenciar a Gabriel e à sua família segurança vinte e quatro horas por dia, durante as suas férias em Veneza.
— Era suposto estar a descansar — disse o general.
Gabriel baixou a viseira de ampliação.
— E estou.
— Há algum problema?
— Por razões inexplicáveis, estou a ter algumas dificuldades em recriar a cor da vestimenta desta mulher.
— Refiro-me à sua segurança.
— Parece que o meu regresso a Veneza passou despercebido.
— Não completamente. — O general olhou de relance para o relógio de pulso. — Calculo que não consiga convencê-lo a fazer uma pausa para o almoço…
— Nunca almoço, quando estou a trabalhar.
— Sim, eu sei. — O general desligou os candeeiros de halogéneo. — Ainda me lembro.
Tiepolo dera a Gabriel uma chave da igreja. Observado pelo comandante da Brigada de Arte, acionou o alarme e trancou a porta. Caminharam juntos até um café que ficava algumas portas abaixo da antiga casa de Tintoretto. O funeral papal passava na televisão atrás do balcão.
— Caso esteja a perguntar-se — disse o general —, o arcebispo Donati queria que estivesse presente.
— Então, porque é que não fui convidado?
— O camerlengo não permitiu.
— O Albanese?
O general assentiu com a cabeça.
— Pelos vistos, nunca se sentiu confortável com a proximidade da sua relação com o Donati. Aliás, nem com o Santo Padre.
— Provavelmente, é melhor eu não ter ido. A minha presença só teria sido uma distração.
O general franziu o sobrolho.
— Deviam tê-lo sentado num lugar de honra. Afinal, se não fosse por si, o Santo Padre teria morrido no atentado terrorista no Vaticano.
O empregado, um rapaz magricelas de vinte e poucos anos, vestido com uma t-shirt preta, serviu-lhes dois cafés. O general acrescentou açúcar ao seu, mexendo com uma mão à qual faltavam dois dedos. Perdera-os devido a uma carta armadilhada, quando era comandante da divisão de Nápoles dos carabinieri, que estava infestada pela Camorra. A explosão também lhe levara o olho direito. A prótese ocular, com a sua pupila imóvel, deixara o general com um olhar frio e inflexível. Até Gabriel tinha tendência para o evitar. Era como fitar o olho de um Deus que tudo vê.
Naquele momento, o olho estava apontado na direção da televisão, onde a câmara se movia lentamente para mostrar uma galeria de políticos, monarcas e celebridades globais variadas. Finalmente, deteve-se em Giuseppe Saviano.
— Pelo menos não está de braçadeira — murmurou o general.
— Não é um admirador?
— O Saviano é um defensor apaixonado do orçamento da Brigada de Arte. Como tal, damo-nos bastante bem.
— Os fascistas adoram o património cultural.
— Ele considera-se um populista, não um fascista.
— Que alívio.
O breve sorriso de Ferrari não se espelhou minimamente na sua prótese ocular.
— A ascensão de um homem como o Saviano era inevitável. O nosso povo perdeu a fé, com noções fantasiosas como democracia liberal, União Europeia e aliança ocidental. E como é que não perderia? Entre a globalização e a automatização, a maioria dos jovens italianos não consegue começar uma carreira digna. Se quiserem um emprego bem remunerado, têm de ir para a Grã-Bretanha. E, se ficarem aqui… — O general olhou de soslaio para o jovem atrás do balcão. — Servem cafés aos turistas. — Baixou o tom de voz. — Ou aos espiões israelitas.
— O Saviano não vai alterar nada disso.
— Provavelmente, não. Mas, entretanto, vai projetando força e confiança.
— Então, e a competência?
— Desde que mantenha os imigrantes afastados, os seus partidários estão-se nas tintas para o facto de ele não conseguir construir uma frase.
— E se houver uma crise? Uma verdadeira crise. Não uma inventada por um site de direita.
— Como por exemplo?
— Pode ser outra crise financeira que arrase o sistema bancário. — Gabriel fez uma pausa. — Ou algo muito pior.
— O que é que poderia ser pior do que ver as poupanças da minha vida inteira esfumarem-se?
— Que tal uma pandemia global? Uma nova estirpe de gripe para a qual os humanos não tenham uma defesa natural.
— Uma praga?
— Não se ria, Cesare. É só uma questão de tempo.
— E de onde é que virá essa sua praga?
— Vai passar de animais para humanos num local onde as condições sanitárias deixem muito a desejar. Um mercado chinês, por exemplo. Vai começar lentamente, com um conjunto de casos locais. Mas, como estamos tão interligados, vai propagar-se pelo mundo inteiro como um incêndio. Os turistas chineses vão trazer o vírus para a Europa Ocidental nas fases iniciais do surto, ainda antes de o vírus ser identificado. Em poucas semanas, metade da população italiana vai estar infetada, talvez mais. O que é que acontece nesse momento, Cesare?
— Diga-me o Gabriel.
— Todo o país terá de ficar em quarentena para evitar que continue a propagar-se. Os hospitais vão ficar tão saturados que vão ser forçados a rejeitar toda a gente, exceto os mais novos e saudáveis. Vão morrer centenas de pessoas todos os dias, talvez milhares. O exército terá de recorrer à cremação em massa para evitar mais contágios. Vai ser…
— Um holocausto.
Gabriel assentiu lentamente com a cabeça.
— E como é que imagina que um iletrado incompetente como o Saviano vai reagir nessas circunstâncias? Vai ouvir os médicos especialistas ou vai achar que ele é que sabe? Vai dizer a verdade à população ou vai prometer que há uma vacina e um tratamento logo ao virar da esquina?
— Vai culpar os chineses e os imigrantes e sair disso mais forte do que nunca. — Ferrari olhou seriamente para Gabriel. — Sabe alguma coisa que não me está a contar?
— Qualquer pessoa com dois dedos de testa sabe que já há muito que devíamos ter tido algo à escala da gripe de 1918. Eu disse ao primeiro-ministro que, de todas as ameaças que Israel enfrenta, uma pandemia é, de longe, a pior.
— Ainda bem que a minha única responsabilidade é encontrar quadros roubados. — O general observava a televisão, enquanto a câmara se movia através de um mar de paramentos vermelhos. — O próximo pontífice está ali sentado.
— Dizem que vai ser o cardeal Navarro.
— É esse o rumor.
— Tem alguma informação?
O general Ferrari respondeu como se estivesse a dirigir-se a uma sala cheia de jornalistas:
— Os carabinieri não fazem qualquer esforço para monitorizar o processo de sucessão papal. Nem as outras agências italianas de segurança e serviços secretos.
— Poupe-me.
O general riu-se silenciosamente.
— E o Gabriel?
— A identidade do próximo papa não diz respeito ao Estado de Israel.
— Agora já diz.
— Está a falar de quê?
— Vou deixar que ele explique. — O general Ferrari apontou com a cabeça na direção da televisão, onde a câmara encontrara o arcebispo Luigi Donati, secretário pessoal de Sua Santidade, o papa Paulo VII. — Quer saber se o Gabriel teria uns minutos para falar com ele.
— Porque é que ele simplesmente não me telefonou?
— Não é algo que queira discutir ao telefone.
— Ele disse-lhe de que se tratava?
O general abanou a cabeça.
— Só que era um assunto da máxima importância. Tinha esperança de que o Gabriel pudesse almoçar com ele amanhã.
— Onde?
— Em Roma.
Gabriel não respondeu.
— Fica a uma hora de avião. Vai estar de regresso a Veneza a tempo do jantar.
— Vou mesmo?
— A avaliar pelo tom de voz do arcebispo, tenho as minhas dúvidas. Ele vai estar à sua espera, à uma hora, no Piperno. Ele disse que o Gabriel conhece o sítio.
— Tenho uma vaga recordação.
— Ele gostava que fosse sozinho. E não se preocupe com a sua esposa e os seus filhos. Vou cuidar muito bem deles durante a sua ausência.
— Ausência? — Não era a palavra que Gabriel escolheria para descrever uma viagem de um dia até à Cidade Eterna.
O general estava novamente a fitar a televisão.
— Olhe para aqueles príncipes da Igreja, todos vestidos de vermelho.
— A cor simboliza o sangue de Cristo.
O olho bom de Ferrari pestanejou de surpresa.
— Como é que sabe isso?
— Passei a maior parte da minha vida a restaurar arte cristã. Provavelmente, sei mais sobre a história e os ensinamentos da Igreja do que a maioria dos católicos.
— Incluindo eu. — O olhar do general regressou ao ecrã. — Quem é que acha que será?
— Dizem que o Navarro já está a encomendar mobília nova para o appartamento.
— Sim — disse o general, assentindo pensativamente com a cabeça. — É o que dizem.