Читать книгу Tudo se desmorona - Sheena Kamal - Страница 12

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Há vários meses, quando Seb, Leo Krushnik e eu ainda trabalhávamos juntos em Hastings Street, Leo deixou cair na minha mesa um pedido de passaporte com o argumento de que as viagens internacionais poderiam melhorar a minha vida sexual. «Não estás morta da cintura para baixo, sabes?», comentou. «E é difícil ter sexo nesta cidade.» Então, lançou um olhar nostálgico a Seb.

Essa foi a primeira vez que observei o distanciamento entre eles.

Agora, dirijo-me para o escritório antes do amanhecer, muito antes de Leo pensar em aparecer. O seu novo sócio, pelo contrário, é antissocial e tem horários estranhos. Uso a minha antiga chave para entrar e estranho que Leo não se tenha incomodado em mudar a fechadura. Há muito tempo que não passava por aqui, mas a mudança é surpreendente. Mudou a decoração toda do local. Qualquer lembrança da presença de Seb foi eliminada sem piedade. O seu diploma de confeitaria não está pendurado em nenhuma parede e também não está na casa, o que faz com que me questione se Leo terá feito algo drástico com a única prova tangível de que Seb sabe o que fazer com a manteiga e a farinha.

Embora o escritório seja no centro da zona leste da cidade, bastante suja, o interior é bastante chique agora. Mais do que gritá-lo aos quatro ventos, a nova decoração anuncia discretamente que aqui se levam a cabo investigações por uma módica quantia. Quando Seb me deu a oportunidade de ir com ele, não hesitei, mas, pela primeira vez, sinto nostalgia. A minha secretária velha continua na zona da receção, mas está quase eclipsada por um vaso enorme cheio de flores.

Stevie Warsame, o novo sócio de Leo, mudou a sua mochila boa para o escritório de Seb e instalou um posto complexo de computadores num canto. No outro canto, há uma segunda secretária que me incomoda. Embora não tenha vindo por isso, não consigo evitar revistá-la. Só encontro alguns carregadores de telemóvel, equipamento de vigilância e uma tabela que compara o valor nutricional de diversos legumes quando se bebem em sumo. Leo substituiu-me por um vaso e deu uma secretária no escritório de Seb a um maluco dos sumos?

— Encontraste o que procuravas? — pergunta uma voz familiar atrás de mim.

Brazuca, o meu antigo padrinho dos Alcoólicos Anónimos, está apoiado na ombreira da porta, a olhar para mim com desconfiança. Não o vejo desde o ano passado, quando me disse que me perdoava por o ter drogado e abandonado num hotel na montanha. Quando descobri que me tinha mentido sobre o seu trabalho e fui demasiado estúpida para me aperceber.

Agora, aqui estamos outra vez, ambos com um certo mau aspeto, ele um pouco menos; possivelmente devido à introdução dos legumes frescos na sua dieta. Tem melhor cor nas faces e os olhos parecem brilhar mais. Por alguma razão, imagino-o a foder, mas é um pensamento desagradável. Nenhum dos dois tem carne. Estamos demasiado magros e colar os nossos ossos bicudos uns contra os outros é o menos sensual que consigo imaginar. Não conseguimos consolar-nos. Pelo menos, um ao outro. Se respondesse ao meu anúncio online, teria de apagar a mensagem dele. O instinto de sobrevivência é uma coisa curiosa.

— A melhorar a tua vida? — pergunto, enquanto levanto a tabela.

Sorri, ignorando a distância entre ambos, como se fosse uma questão de simples espaço físico. Contudo, à medida que os segundos passam e a distância se transforma num abismo, percebe que não há nada entre nós senão a desconfiança e um único orgasmo.

— Uma coisa dessas — concede. — O que estás a fazer aqui? Pensei que tinhas ido trabalhar com o Crow.

— O que estás a fazer aqui? Pensei que trabalhavas para a WIN Security. — A empresa de segurança que foi contratada para encontrar a minha filha, Bonnie, quando desapareceu. Contratada por uma família corrupta que os comprou. Fui alertada do seu desaparecimento pelos seus pais adotivos, o que desencadeou uma série de acontecimentos que fizeram com que quase morresse afogada.

— Precisava de uma mudança depois do ano passado. Não respondeste à minha pergunta. — Entra na sala. Ainda me dói muito o ombro do tiro do ano passado, mas, com a fisioterapia, consegui disfarçar o coxear causado por uma lesão no tornozelo que nunca chegou a sarar por completo. No entanto, Brazuca não teve tanta sorte com a sua perna entrevada, resultado de uma ferida de bala quando era polícia. Ou talvez as suas lesões não sejam apenas físicas. Atribuo-o à sua mentalidade de vítima.

— Estou à procura do Stevie.

— O Warsame está numa missão — informa Brazuca, o que explica o silêncio de Stevie. — Queres deixar uma mensagem?

Não preciso de Brazuca para isso. Se quisesse deixar uma mensagem a Stevie, fá-lo-ia sozinha. Mas o que tenho de dizer não pode comunicar-se por meios eletrónicos. Não criaram carateres de teclado capazes de o abranger.

— Vou estar fora durante algum tempo. Preciso de alguém que dê uma olhadela ao Seb.

Não me pergunta onde vou e eu não lhe ofereço mais informação.

— O que se passa? — pergunta, finalmente.

Falo-lhe do cancro e dos tratamentos falhados.

— O Leo não sabe — acrescento, quando acabo. — Posso pagar-te para que o faças se o Stevie não puder.

— Porque é que todos acham que preciso de dinheiro de repente? — murmura, enquanto passa uma mão pelo cabelo.

Encolho os ombros. Talvez tenha alguma coisa a ver com a roupa dele, que está bastante desfasada e, na verdade, não é suficientemente justa para o homem moderno, mas não o menciono. O ego masculino é muito frágil.

— Com que frequência? — pergunta-me.

— A cada poucos dias. O passeador de cães que contratei passará por lá todos os dias.

— Não vais levar a Whisper contigo? — pergunta-me, com o sobrolho franzido. — Sabes? Tanto faz. Não preciso de saber.

Passo junto dele, com cuidado para evitar que os nossos corpos toquem um no outro por acidente. Da última vez que tocámos um no outro, tinha-me sentado em cima dele e tinha-lhe deitado álcool pela garganta, sabendo perfeitamente que é alcoólico. Nunca lhe pedi perdão por isso. Nem o farei. Antes dos acontecimentos do ano passado, era capaz de distinguir as mentiras, com todos, menos com Brazuca. As suas mentiras foram as que mais me magoaram porque não as vi vir. Talvez não quisesse fazê-lo. Não voltarei a cometer esse erro.

— O Krushnik não vai gostar disto — comenta, quando chego à porta.

— Podes dizer-lhe, se quiseres.

Mas ambos sabemos que não o fará. Esse não é o nosso segredo. Leo acabará por descobrir e teremos de o enfrentar quando chegar o momento. Por enquanto, acedemos a manter o silêncio. Outro acordo ilícito, outro homem. Ultimamente, parece que os acumulo.

Penso em perguntar uma coisa, porque sei que é muito observador.

— Viste alguém a vigiar o edifício quando entraste? Alguém que te tenha causado desconfiança.

— Estamos na parte leste da cidade. Todos me causam desconfiança — declara, olhando para mim como olharia para um louco. E a zona leste de Vancouver é a zona de reunião para os loucos. Para mim também. Os desamparados, os viciados, as pessoas com demónios. Todos nos refugiamos aqui porque, com frequência, é o único lugar que nos aceita.

Assinto com a cabeça. Os seus poderes de observação não dão para tanto.

Enquanto regresso ao carro, vejo um grupo de pessoas em torno de um corpo estendido na rua. Não consigo evitar fixar-me nas suas caras para ver se o veterano está entre elas. Não está, portanto, viro-me para o espetáculo. Há um homem de cócoras junto de uma mulher, a falar em voz baixa. A mulher está inconsciente. Tira uma agulha intramuscular de um kit que tem ao lado e extrai uma dose de líquido de um frasco. Então, crava-lha na coxa. Alguém dá um grito entre a multidão. Será alguém que não é daqui, porque isto é o dia a dia desta zona. Não espero para ver se a mulher do chão acorda com a injeção de naloxona. Já há cidadãos preocupados suficientes em redor e, além disso, já tenho muitos problemas.

Quando regresso à casa, Seb está no seu escritório com a cabeça apoiada na secretária e a Whisper aos seus pés, a olhar para mim com olhos acusadores. Por um instante, o coração para, mas, então, ouço Seb a ofegar. Não sou uma mulher grande, mas levantá-lo não é um esforço grande. É como um monte de ossos nos meus braços, presos apenas por tecidos conectivos frágeis e músculos fracos. Deixo-o com suavidade no sofá e ocupo o meu lugar na poltrona.

Leo levou tudo menos os livros. Se soubesse como Seb precisava deles, também os teria levado. Porém, não o fez, portanto, continuam aqui e, quando Seb se sente bem, enumeramo-los enquanto revemos as suas memórias. Fala e escreve enquanto eu ouço e tomo as minhas próprias notas ou escrevo quando ele não tem forças. Só trabalhamos nesta sala e deixamos toda a nossa bagagem extra à porta. Todos precisam de um lugar sagrado e este pertence aos três. Protegidos pelos livros maltratados que significaram alguma coisa para ele ao longo da sua vida.

Eu não sou uma académica, mas os livros de Seb foram uma revelação para mim. Nada me comove como a poesia de Césaire, o escritor político das colónias francesas que falava da rejeição das pessoas a desafiar a sua visão do mundo. Era fácil separar as ideias, como assustar uma mosca.

Na semana passada, antes de chegar o fumo dos incêndios do norte, levei a Whisper às rochas que dão para o oceano. Tínhamos tempo para matar enquanto Seb estava no hospital. Ficámos lá durante um bom bocado, o suficiente para ver o ciclo da vida à nossa frente. Mesmo por cima da superfície da água, no fundo do meu campo de visão, duas aves de rapina rodeavam um ponto concreto da água. De vez em quando, uma das duas mergulhava. Chamavam-se uma à outra e, quanto mais tempo passava, mais fechados eram os círculos. Eu percebia o que viam. Que a criatura da água, um pato desorientado, talvez estivesse cada vez mais cansada. Os seus reflexos eram cada vez mais lentos. No fim, aconteceria o inevitável.

Recordou-me que o desastre se precipita e ataca quando uma criatura está mais fraca.

Sozinha, com duas bocas famintas para alimentar e com a certeza de que o amor de uma mulher é algo poderoso, mas não tão poderoso como o vazio que deixa quando se vai embora. Até aparecer esse veterano de guerra, cujo nome nem sequer me ocorreu perguntar, pensava que o meu pai simplesmente não tinha conseguido aguentar a pressão.

No entanto, agora, penso em Césaire e uma suspeita aloja-se na minha mente. Como bem disse, a ideia é como uma mosca incómoda. A zumbir-me no ouvido. Diz-me que há algo mais por trás da morte do meu pai do que me tinha permitido pensar. Altera a minha visão do mundo.

Tudo se desmorona

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