Читать книгу Tudo se desmorona - Sheena Kamal - Страница 8
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ОглавлениеQuando chego a casa, Sebastian Crow, o meu antigo chefe e novo companheiro de apartamento, está a dormir no sofá.
Estico uma mão para tocar nele, mas afasto-a antes que os meus dedos lhe toquem na têmpora. Não quero acordá-lo. Quero que durma assim para sempre. Em paz. Tranquilo. Num lugar onde a palavra que começa por «C» não consegue apanhá-lo. Todos os dias parece encolher-se um pouco mais e o seu espírito cresce mais para compensar a diminuição do espaço físico que ocupa. Está doente e não há nada que eu possa fazer porque é terminal. A minha cadela Whisper e eu mudámo-nos para lhe fazer companhia e para nos certificarmos de que não cai pelas escadas, mas, para além disso, não há esperança. Há um incêndio enorme em que ele parece arder também. O seu corpo virou-se contra ele, mas a sua mente recusa-se a render-se.
Até acabar o livro.
Quando me pediu para o ajudar a organizá-lo e revê-lo, não pude dizer que não. Não é possível dizer que não a Sebastian Crow, o jornalista que está a escrever as suas memórias à medida que se aproxima do fim da sua vida. Escreve-as como cartas de amor à falecida mãe e como desculpa ao seu filho, de quem se afastou. Também como uma explicação para o amante que abandonou. O que li do livro é lindo, mas significa que está a passar os seus últimos dias a viver no passado. Porque não há futuro, para ele, não.
A Whisper empurra-me a mão com o focinho. Está inquieta. Nervosa. Ela também o sente.
Ponho-lhe a trela, porque não confio nela com este humor, e dirigimo-nos para o parque da frente. Há lá um homem que tenta sempre acariciá-la, portanto, mantemo-nos afastadas dele num espírito de generosidade para as suas mãos. No outro extremo do parque, há um caminho que percorre a costa. Mesmo aqui, ainda vemos o fumo de uns incêndios invisíveis. Nem sequer a brisa marinha consegue dissipá-lo. Andamos, ambas as inquietas, até darmos a volta ao parque. Sento-me num banco com a Whisper bem perto.
O homem que me observava passa à minha frente.
— Está uma noite bonita para espiar os outros — comento. — Não te parece?
O homem para. Olha para mim. Abre a boca, talvez para dizer uma mentira, mas volta a fechá-la. Estou de costas para o candeeiro que ilumina insuficientemente esta parte do parque. A Whisper e eu somos apenas duas sombras escuras para ele, mas ele aparece iluminado por completo. Tem o casaco aberto e, no colarinho, tem uma franja de pele com manchas que vai desde o queixo até à clavícula. Parece que tentou fazer crescer pele nova nessa zona, mas parou a meio caminho, deixando uma marca inacabada. É um homem idoso, mas custa-me a calcular a idade. Seja qual for, usou os seus anos para aprender a vestir-se bem. Casaco elegante. Bons sapatos. Não condiz. Um homem que cuida da sua aparência e passa as noites sentado num parque a seguir mulheres enquanto passeiam os seus cães.
Esperamos num silêncio incómodo, os três. A Whisper boceja e passa a língua pelos caninos afiados para acelerar as coisas. O homem interpreta-o como a ameaça que, sem dúvida, é.
— A tua irmã disse-me onde podia encontrar-te — admite, finalmente.
Se acha que isso vai tranquilizar-me, engana-se muito. Lorelei não fala comigo desde o ano passado, desde que roubei o carro do marido dela, o tirei da estrada e o despenhei por uma ravina.
Mas decido fazer o que ele quer.
— O que queres?
— Não sei — responde, com um sorriso triste. — Suponho que recordar os velhos tempos nos meus últimos anos.
— E o que é que isso tem a ver comigo?
— Conheci o teu pai. — Ainda bem que tem uma voz suave, porque, pronunciada num decibel mais alto, aquela frase poderia ter feito com que caísse de rabo no chão, se não estivesse já sentada. — Posso sentar-me? — Aponta para o banco. Há algo estranho no seu tom de voz. A sua dicção está demasiado calma para alguém a enfrentar um animal imprevisível. Questiono-me se a cicatriz do pescoço terá alguma coisa a ver com a sua atitude despreocupada. Se será um desses homens tão habituados ao perigo que já não têm medo.
— Não. Conhecias o meu pai de onde?
Faz uma pausa e observa as presas da Whisper.
— Do Líbano. Sabes que servimos com os marines lá, não é?
Ignoro-o porque não sabia, mas, certamente, não lhe diz respeito.
— Isso não explica porque me segues.
Passa uma mão pela cara e para as pontas dos dedos na cicatriz. Observa que olho para lá.
— Do Líbano. Uma explosão. — Pondera cuidadosamente as palavras seguintes antes de falar. — Disse que viria ver-te se acontecesse alguma coisa.
Rio-me.
— Chegas várias décadas atrasado.
— Não sou um bom amigo. Olha, agora, estou reformado e tinha de viajar para o Canadá. Pensei em passar por cá para te ver. Já vim ver a tua irmã e a ti quando morreu, há muitos anos, mas, então, estavam com a vossa tia e tudo parecia em ordem. Há alguns dias, consegui localizar a tua irmã. Não parecia muito contente contigo…
— Não tem de estar. — Lorelei e eu não nos tínhamos despedido de forma amistosa. No entanto, mantivera o seu apelido de solteira quando se casara e tinha muita presença online. Não seria difícil de encontrar se alguém se incomodasse em procurá-la.
— Disse-lhe que éramos velhos amigos. Demorei a convencê-la, mas disse-me que conseguiria encontrar-te através do Sebastian Crow. E aqui estou.
— Mas porquê?
Fica nervoso, tira um cigarro do casaco e acende-o. Mantém o olhar fixo na chama do isqueiro.
— Alguma vez fizeste uma promessa que não cumpriste? Fiz muitas coisas más na vida, mas o que aconteceu ao teu pai, no fim… Nunca pensei que o que lhe aconteceu estava bem. Sabia que tinha sofrido depois do problema no Líbano, mas meu Deus. Que pena!
Olha para a minha mão e vê que tenho os dedos agarrados à trela da Whisper com tanta força que as unhas se cravam na palma, deixando marcas em forma de meia-lua.
— Não sei o que estou a fazer aqui — admite. Ainda não levou o cigarro à boca e não parece ter intenção de o fumar.
No ano passado, quase morri afogada. Não me lembro muito daquilo, só que devo ter desmaiado em algum momento. Qualquer mergulhador sabe que, na última etapa da narcose de nitrogénio, a hipoxia chega ao cérebro. Pode causar uma incapacidade neurológica. Com frequência, o julgamento e o raciocínio são afetados, pelo menos, naquele momento. Mas também pode ser agradável, a falta de oxigénio. Quente. Até segura.
Pode fazer com que alucinemos.
Interrogo-me se estarei a experimentar um efeito colateral a longo prazo causado por ter estado prestes a afogar-me. Porque antes percebia quando as pessoas mentiam, quase com certeza. Contudo, agora, não tenho a certeza. Depois dos acontecimentos do ano passado, quando a minha filha desapareceu, a rapariga que tinha dado para adoção sem pensar duas vezes, vejo as pessoas de um modo diferente. Talvez seja o meu instinto maternal preguiçoso, que me tolda os sentidos. Ou talvez tenha perdido a minha magia. Porque, ao dizer-me que não sabe o que faz aqui, acredito. Acho que fazemos coisas que não têm sentido. Nem sequer para nós próprios.
Também é possível que esteja a ser vítima das minhas próprias alucinações.
Estou tão confusa que não digo nada em resposta. O veterano de guerra parece tão inquieto como eu. Fico a olhar fixamente para ele até se afastar, para o oceano, e desaparecer na noite densa. Então, esfrego as mãos para recuperar o toque. Tenho os pensamentos emaranhados, mas um deles solta-se do matagal.
Não é apenas a surpresa de alguém vir procurar-me depois de tantos anos. Nem sequer é o facto de sentir a necessidade de me seguir na escuridão para se certificar de que estou bem. É mais do que isso e tem a ver com as coisas que não sabia sobre o meu pai. Que houve problemas no Líbano. Com o meu pai.
O meu pai teve problemas no Líbano e, alguns anos depois, rebentou os miolos.