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Espero por Simone atrás do palco de um pequeno bar de cervejas artesanais que, às terças-feiras à noite, se transforma num clube drag. Há lantejoulas e borlas por todo o lado. Sinto-me como se estivesse no pesadelo da rapariga de um harém, à espera que o xeque venha fazer o que quiser comigo. Há uma drag queen no pequeno camarim em que me encontro, a aplicar um contorno denso de olhos líquido com a precisão de um cirurgião. Ignora-me por completo enquanto calça as botas de salto alto e sai pela porta. Segundos mais tarde, entra Simone, coberta de purpurina corporal e com uma roupa verde-lima que é mais uma t-shirt do que um vestido. Faz-me pensar na primeira vez que nos vimos num grupo de apoio a alcoólicos. Usava algo semelhante, possivelmente cor-de-rosa choque.

— Não tens vindo às reuniões — comenta, quando me vê sentada junto da prateleira de acessórios e lenços brilhantes.

— Eu sei — respondo. Teria um desgosto se soubesse que estava a ir a outro tipo de reuniões. Mas, em minha defesa, mal posso encarregar-me dos meus próprios problemas. Como posso esperar que ela o faça?

Tira os saltos e senta-se à frente do tocador para esfregar os pés.

— Também não atendeste as minhas chamadas.

— Não gosto de falar ao telefone — digo. Desde o ano passado, quando fui arrastada até à margem de Vancouver Island, depois de a minha filha, Bonnie, ser raptada, estive a evitar Simone e os seus olhares perspicazes. Gosta muito de falar de sentimentos. Sobretudo dos dela, mas, de vez em quando, também se interessa pelos meus.

— E, agora, queres que investigue o passado do teu pai, não é? — Tira o vestido. O corpo musculado que há por baixo é uma publicidade do valor estético da depilação corporal. — Recebi a tua mensagem ontem, Nora, mas foste tão má amiga comigo que não sei se me apetece ajudar-te desta vez. Dizes que encontraste uma organização de veteranos para os marines do Líbano? Talvez devesses investigar por aí — replica, sabendo bem o que penso de falar com desconhecidos pela Internet sobre algo que não seja sexo.

É difícil sabê-lo só de olhar para ela, mas Simone é uma espécie de perita em segurança informática. Tem a sua própria empresa, que gere como o seu alter ego Simon, e parece satisfeita com uma vida dupla com sapatos de salto de agulha dourados. Não me ofereço para lhe pagar pela sua ajuda porque suspeito que seria prejudicial para mim. Portanto, espero enquanto tira a peruca e a maquilhagem e veste um fato de treino por cima das meias. A única coisa que resta da sua personalidade drag é as unhas compridas e pintadas, que usa para coçar o couro cabeludo depois de ter tirado os ganchos da peruca.

— Desculpa — desculpo-me, com um sorriso. — Vamos falar de ti.

Sorri e tira-me da sala.

— Esperava que me perguntasses. Estou a sair com um rapaz novo, o Terry, mas ainda tem um pé dentro do armário. Foi um pesadelo maravilhoso.

Tremo com a imagem que me vem à cabeça e questiono-me, não pela primeira vez, porque é que quando se pergunta a alguém pela sua vida em geral, o consideram um convite para nos encher os ouvidos com a sua vida sentimental. Mas trata-se de Simone, portanto, mostro-me mais indulgente.

— Qualquer um teria sorte por te ter.

— Até tu? — pergunta-me, num tom de brincadeira. Seguro-lhe a porta aberta e pisca-me um olho enquanto sai.

— Sobretudo, eu. — E é a verdade. Quem não quereria uma perita em segurança informática como amante? Pensando melhor, entendo o dilema de Terry. Não há nada que não conseguisse descobrir se quisesse.

— E o que farias quando tirasse as meias e te mostrasse a pila? Conseguirias lidar com um homem como eu?

A pergunta perturba-me. Desde que se apresentou como mulher e, além disso, uma mulher capaz de cantar perfeitamente a Single Ladies, nunca pensei nela como homem. Não sei se quer que o faça. Mesmo de fato de treino, sem a peruca, com o cabelo curto e sem maquilhagem, parece-me a pessoa mais feminina que alguma vez conheci. Ri-se.

— Não faças essa cara de surpresa. De todas as formas, não és suficientemente lésbica para mim.

De repente, sinto-me ofendida. Não sou suficientemente lésbica? Como se atreve? Revejo a minha energia feminina, que continua a ser tão duvidosa como sempre foi. Com posso não ser suficientemente lésbia? Ora…

— Investigarei o teu pai, Nora. Sabes que o farei. Mas não posso começar senão dentro de duas semanas. Parece-te bem?

— Sim — respondo. — De qualquer forma, vou fazer uma viagem, portanto, envia-me os detalhes por correio eletrónico quando puderes.

A cara dela ilumina-se.

— Isso é novo. Vais a algum lugar emocionante?

— Ouvi dizer que as viagens internacionais são boas para a alma — declaro, encolhendo os ombros.

— Vais a Detroit, não é? Vais a Detroit. — Então, suspira e entrelaça o braço com o meu. — Anda. Acompanha-me a casa do Terry. Assim, podes contar-me como está a correr a sobriedade.

Está uma noite nublada e o fumo ainda não se dissipou, portanto, convenço-a a apanhar um táxi enquanto eu apanho o autocarro para voltar para casa. Quando chego à entrada, acende-se a luz do meu telemóvel. A luz só se acende quando recebo uma mensagem numa aplicação particular que instalei para poder comunicar-me com Bonnie, a filha que dei para adoção há dezasseis anos. O facto de ela saber quem sou é o resultado de uma merda administrativa espetacular. Bem-vindos ao Canadá, a terra do bacon, dos consórcios do xarope de ácer e dos erros administrativos revoltantes. Um erro que fez com que a certidão de nascimento original de Bonnie acabasse nas mãos dos seus pais adotivos quando nasceu. Talvez algum empregado de escritório cansado tenha cometido um erro. Talvez fosse o seu primeiro dia de trabalho ou talvez estivesse lá há centenas de dias. Talvez fosse uma vingança ao sistema no seu último dia. A razão por que o arquivo de Bonnie se filtrou já não importa, porque já sabe quem sou agora.

Não só isso, como tem o meu número de telefone.

Nunca telefonamos. Nunca ouvimos as nossas vozes. Só trocamos fotografias através dessa aplicação, para evitar aumentar os encargos nas nossas tarifas telefónicas. A fotografia que me envia desta vez é do seu pé num estribo. É sempre o pé dela em algum lado e presumo que o resto do seu corpo também. Está bem porque o seu pé está. Suponho que, de tudo isso, deva deduzir que continua com vontade de viver a vida. Agora, está a fazer um exame ginecológico, por exemplo.

Obrigada pela atualização.

Envio-lhe uma fotografia da Whisper que guardei com esse propósito. Ela mostra-me os pés e eu mostro-lhe a minha cadela e esta é a nossa relação. Fotografias das nossas vidas, mas à distância e mascaradas com filtros de melancolia.

Em casa, encontro Seb acordado e no seu escritório, a rever o último rascunho das suas memórias. Acabámos agora os seus capítulos do Kosovo e estamos a abordar o seu casamento, de quando tentava passar por heterossexual. Sempre foi um grande escritor, mas este livro está tão carregado de emotividade que tive de o deixar depois de ler as últimas páginas.

Estou preocupada porque continua sem querer falar da sua última visita ao hospital. É por isso que sei que foi má.

— Não tenho de ir, sabes, não é? — pergunto, quando volto de levar a Whisper à rua. Não voltámos a ver o veterano desde a nossa conversa inesperada no parque. Desapareceu na noite e levou o meu equilíbrio mental com ele. Mesmo assim, estava inquieta durante o passeio e a Whisper impacientou-se, portanto, demos a volta a meio do caminho para voltar para casa. Já não gosta de estar longe de Seb durante muito tempo. Agora, está deitada aos seus pés, a lamber o tapete em que afundou os dedos.

— Tens, sim. Além disso, preciso de estar sozinho durante algum tempo.

— De certeza que não precisas de mim?

— Já quase acabei — responde, encolhendo os ombros. — Fizeste um grande trabalho com a documentação e a organização, Nora. Fico feliz por… ter contado com a tua ajuda.

Não olha para mim nos olhos.

Quando os cães sabem que estão a morrer, encontram um lugar confortável e deitam-se lá até chegar a sua hora. Não há autocompaixão nos seus olhos. Não resistem ao que se aproxima. São os seus donos que se assustam com a ideia de o seu animal de estimação estar prestes a morrer. Mas, para o cão, só existe uma espécie de resignação tranquila.

Uma hora mais tarde, volto a entrar no escritório. Seb está no sofá com a Whisper aninhada no outro extremo, ainda aos seus pés, ao redor da manta grossa com que se tapou. Como está a dormir, agarro-lhe as mãos ossudas e aperto-as com ternura. Não retribuiu a pressão. A Whisper abana o rabo duas vezes, mas recusa-se a levantar-se. Provavelmente, porque percebe que me vou embora. Que a minha mochila junto da porta é o sinal de que vou abandonar a manada quando mais precisa de mim. Embora tenha falado com Brazuca e tenha dado instruções — e um pouco de dinheiro extra — ao passeador de cães, continuo a sentir-me culpada. Quando olho para eles, acrescento o medo à mistura de emoções.

O que me assusta é que a Whisper parece tão tranquila como ele ali no sofá.

Mas não posso ficar mais tempo. Tenho de apanhar um avião.

Tudo se desmorona

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