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Brazuca vê-se imediatamente obrigado a reconsiderar os seus preconceitos pelas mulheres sustentadas quando entra no apartamento de Clementine. Não é o bordel que imaginara. Não tem nada de frívolo, para além do preço de viver num apartamento com vista para English Bay. Tem um ambiente acolhedor e caloroso e, embora os móveis não sejam baratos, também não são ostentosos. Alguém com muito bom gosto transformou este lugar num lar.

A luz suave da tarde penetra na sala, onde Brazuca encontra uma fotografia emoldurada de Lam a rodear Clementine com os braços. Estão a observar as águas de Deep Cove, a norte de Vancouver, onde se juntam Burrard Inlet e o fiorde de Indian Arm. Brazuca nunca viu Lam tão feliz como nessa fotografia, sorrindo contra o cabelo de Clementine.

Ouve um barulho no interior do apartamento. Afasta-se da fotografia, passa à frente da cozinha elegante e para à porta do quarto.

— Está aí alguém?

Uma jovem chinesa olha para ele, afasta uma madeixa de cabelo da testa e apanha-a num coque descuidado. Tem um fato de treino com o logótipo da Universidade de British Columbia e está sentada no chão rodeada de montes de roupa, sapatos e malas, com aspeto de estar totalmente perdida.

O que lhe chama a atenção é que não parece especialmente surpreendida por ver um desconhecido ali. Também não parece preocupada com a sua segurança. Entreolham-se durante uns segundos e, depois, a mulher aponta para as malas. «Sabes quanto custa normalmente uma mala de marca?», pergunta, finalmente. «Claro que não sabes. Imagino pela tua forma de vestir. Não és um dos namorados habituais da minha irmã.»

Brazuca acha graça, apesar de tudo. Cruza os braços e apoia-se na ombreira da porta.

— Milhares de dólares — continua ela. — Deve haver malas no valor de cinquenta mil dólares só nesta divisão, pelo menos. O que vou fazer com estas coisas?

— Devíamos unir os nossos recursos e vendê-las juntos. Ambos seríamos ricos.

— Estas etiquetas vendem-se sozinhas. E não tenho a certeza com o que poderias contribuir, sejas quem fores.

— Jon Brazuca — apresenta-se e decide não estender a mão. O olhar desconfiado da mulher indica que deve ficar onde está. — Um amigo da Clementine pediu-me para passar por cá.

A mulher fica a olhar para ele e ele sente-se tentado a recuar ao ver a raiva súbita na sua expressão. Levanta-se.

— Referes-te ao Bernard Lam? Ela morre de overdose e ele fica furioso, não é? O seu brinquedo morreu.

— Não acho que a Clementine fosse um brinquedo para ele.

— Vamos deixar uma coisa clara — replica a mulher, apontando-lhe para o peito com um dedo. — Não sei porque queria que a chamassem por esse nome horrível de stripper, mas o seu nome era Cecily Chan. Estudava Literatura Inglesa na universidade antes de parar para ser modelo. Era uma pessoa, com uma família que a amava.

Brazuca levanta uma mão em gesto de paz. Tinha uma tia-avó chamada Cecily e entende que uma mulher de menos de quarenta anos prefira que lhe chamem de outro modo.

— Está bem, já compreendo. Amavam-na. Não disse que não era assim.

Ela fica séria. Dá um pontapé numa mala que poderia valer mais do que ele ganha num mês.

— Lamento muito. Estou fora de mim. Não suporto isto. A minha irmã morreu e a única coisa que deixou para trás foi um punhado de merda muito caro que tenho de administrar agora.

Vai à cozinha e liga o fervedor de água. Poucos minutos mais tarde, vai atrás dele com uma caixa de cartão cheia de malas de marca e deixa-a cair junto de uma pilha de caixas que já estão na sala. Depois, tira um saquinho de chá de um armário a que mal chega. Juntos, fazem uma chaleira de chá de jasmim muito aromático e sentam-se à mesa da sala de jantar que dá para a baía.

A divisão vai escurecendo enquanto o sol se põe por cima da água, mas nenhum dos dois se incomoda em fechar as cortinas ou acender as luzes. Às vezes, Brazuca recorda como esta cidade é bonita. Porque escolheu viver aqui. Está tão perdido nos seus pensamentos que demora uns segundos a perceber que a mulher o observa fixamente. Já deve estar assim há um bom bocado.

— Sou a Grace — apresenta-se.

— Grace. Tens alguém que possa vir ajudar-te com as coisas da Cecily?

— Não, a verdade é que não.

— Os teus pais, talvez?

Abana a cabeça.

— Como se alguma vez fossem pôr um pé aqui. Os nossos pais e ela tiveram uma discussão há alguns anos. Ela disse que desejaria que estivessem mortos. Disseram-lhe que poderiam estar mortos para ela, se fosse o que queria. Depois, foi-se embora e nunca mais voltaram a falar. Recusaram-se a vir à missa quando morreu porque esse imbecil a pagou. Só apareceram alguns primos e eu. No fim, não acho que a minha irmã tivesse muitos amigos.

Brazuca observa as caixas de cartão empilhadas na sala.

— Bom, está bem, talvez possa ajudar-te a levar algumas destas coisas. Onde vives?

— Vivemos em Richmond… Oh, não me olhes assim!

— Assim como?

Tem a chávena apertada com as mãos com tanta força que parece empenhada em parti-la. Há uma raiva súbita nela, talvez porque a irmã morreu ou talvez porque tem de ser ela a limpar o desastre.

— Como se todos conduzíssemos um desportivo, recebêssemos aulas de violino e vivêssemos em Richmond. Como se estivéssemos a invadir a vossa maldita cidade. A família da minha mãe está aqui desde que os chineses vieram construir a ferrovia há cem anos e o meu pai mudou-se para cá do continente quando era uma criança. Ambos são engenheiros. Não é que tenhamos chegado a comprar propriedades à frente dos vossos narizes. Temos raízes aqui. Estou a estudar para ser urbanista.

Brazuca não devia surpreender-se por ela ficar à defesa. O preço das casas está tão alto que muitos culpam a afluência dos chineses pelos preços astronómicos do mercado. Mais de metade da população da cidade de Richmond é imigrante e há certas pessoas que se sentem incomodadas com a mudança demográfica. É uma espécie de racismo insidioso que Brazuca observa cada vez com mais frequência e começa a vê-lo agora através dos olhos desta mulher. De repente, sente ternura por ela. Estica o braço e cobre-lhe as mãos com as suas.

— Não disse que a tua família não pertence a este lugar. Lamento muito o que aconteceu à tua irmã.

— A minha irmã… Deixou-se comprar e pagar. — Agarra-lhe as mãos e entrelaça os dedos com os dele. Faz uma pausa, mas não há lágrimas nos seus olhos. — Trabalhas com o Lam, não é? Sabes como são essas mulheres?

Há algo inquietante na sua maneira de olhar para ele. Brazuca afasta as mãos, mas não sabe onde as pôr, portanto, põe-nas nos bolsos.

— Às vezes, ajudo-o com alguns problemas. Antes… era polícia.

— Mas já não és.

— Não.

Grace dá a volta à mesa e afasta a chávena de Brazuca. Então, senta-se no seu colo.

— Grace… O que estás a fazer? — pergunta ele, sem saber se terá força de vontade para afastar uma mulher excitada e triste.

— Quero… Quero sentir-me como ela se sentia. Só por uma noite — confessa. E aproxima a boca da dele.

Brazuca não tem força de vontade, afinal de contas.

Não foi uma proposta sensual, pensa Brazuca, muito mais tarde, quando jazem os dois enredados na cama da irmã. Embora, claro, as suas propostas não costumem sê-lo. Tem o dom de atrair mulheres que não estão interessadas na suavidade. Ter virado a página não parece estar a ajudar muito, nem sequer nisso. Jazem na cama, às escuras, durante um bom bocado. Brazuca não sabe se a fez sentir-se como uma prostituta, mas ele, certamente, sente-se assim. Há tanto silêncio no quarto de Clementine que ambos se apercebem do som da chave ao virar na fechadura. Brazuca olha para Grace nos olhos e leva um dedo aos lábios. Levanta-se e veste as calças de ganga. Ouve barulho atrás dele enquanto Grace se veste.

Sai sem fazer barulho para o corredor e para na entrada da sala.

Não sabe o que espera encontrar lá, mas, certamente, não uma mulher minúscula com um fato justo. Está de pé no meio da sala, levantando um telemóvel no ar. Está a olhar para as caixas empilhadas num lado da sala. Observa-a da porta, com Grace a mexer-se pelo corredor, enquanto a mulher se aproxima da caixa das malas de marca e rebusca nela. O cabelo escuro é tão comprido e lustroso que, embora Brazuca não esteja muito familiarizado com as extensões capilares, está bastante certo de que aquela mulher as usa. Finalmente, a mulher tira um pequeno telemóvel que vibra de uma das malas e finaliza a chamada que está a fazer do seu próprio telemóvel.

— Deves ser a traficante — conclui Brazuca.

A mulher para. Olha para ele e não diz nada. Ele percebe a raiva de Grace atrás dele.

Aponta com a cabeça para o telemóvel que tirou da mala, que é descartável, dos que se encontram com facilidade e nos quais pode pôr-se qualquer cartão SIM.

— Usavas um telemóvel especial para te comunicar com ela. Mantinhas o teu número separado dos seus outros contactos. Muito inteligente.

A mulher volta a guardar o telemóvel na mala. Quando fala, a sua voz é agradável e infantil. Tem um sorriso retorcido que é estranhamente encantador.

— Oh, assim é tudo mais limpo.

Essa é a razão por que ele veio ao apartamento. Questionava-se porque não encontrava registos do traficante de Clem no telemóvel que Lam lhe dera. Clementine tinha uma vida muito isolada, mas tinha de receber a sua dose de algum lado.

Grace espreita pela ombreira da porta.

— Ordinária!

A mulher observa a sua cara. É tão minúscula e sorri com tanta doçura que Brazuca quer acreditar que é mais jovem do que deve ser. No entanto, como tem um olhar calculista, supõe que deve ter pelo menos mais dez anos do que pensara ao princípio.

— Nisso, não te enganas, querida — diz a Grace, antes de olhar novamente para ele. — Provavelmente, o Bernie pediu-te para vires procurar-me, não foi?

— Como sabes? — Brazuca não imagina ninguém a chamar «Bernie» a Lam, pelo menos, não na cara. Lam é um playboy, mas há certas coisas que nem sequer ele suportaria.

— Oh, eu sei tudo sobre o Bernie — continua a mulher, abanando uma mão com unhas feitas na manicura. — Tu deves ser o Bazooka. A Clem falava de ti de vez em quando, mas só porque deve ter ouvido o Bernie a falar de ti. Não tinha vida própria.

Ele assente. Bazooka. É uma alcunha de que não consegue livrar-se.

— E tu és?

— A Priya — sussurra. — Não tem sentido continuar a escondê-lo. Se deres a minha descrição ao Bernie, saberá que sou eu. Fui eu que os apresentei, sabes?

— O Lam e a Clementine?

— Sim. Ajudo… a encontrar pessoas para uma certa clientela de elite. O Bernie estava obcecado com as meninas asiáticas. As que não têm compromissos, quero dizer. E eu sabia que a Clem seria boa para ele. — Ignora Grace deliberadamente. — As pessoas são curiosas. Mesmo aqui, não saem do rebanho.

Brazuca entra na sala, afastando-se um pouco de Grace, que parece estar prestes a entrar em combustão espontânea.

— Fala-me do que lhe deste. Sabias?

— Que morreria? Claro que não. Não é uma coisa que costume fazer com frequência, na verdade. A Clem não confiava em mais ninguém e eu devia-lhe um favor. Sabia que tinha contactos. Mas disse-lhe que esta seria a última vez durante um tempo. O seu vício estava a descontrolar-se e não conseguiria mantê-lo escondido se continuasse assim. Então, o Bernie acabaria por se envolver e eu acabaria na merda. Como estou agora, suponho.

— De onde tiras a mercadoria?

— Espera — pede Grace, virando-se para Brazuca. — Foi por isso que te enviou? É por causa da droga? Por amor de Deus! A minha irmã morreu!

Priya olha para a porta.

— Parece-me que vocês têm algumas coisas para esclarecer.

Brazuca aproxima-se mais dela, certificando-se de que exagera o seu coxear. É um truque barato, mas não se importa de recorrer a ele quando é útil.

— Talvez devêssemos falar em privado. — O que, percebe agora, é o que devia ter acontecido desde o começo.

— Quero ouvi-lo — diz Grace, cruzando os braços.

— Não — responde Priya. — Não queres. — Então, sai com duas malas de marca. Uma delas será a dela.

Brazuca lança um olhar arrependido a Grace enquanto segue a traficante da sua irmã para a porta, deixando-a mais ou menos tal como a encontrou. No meio de uma divisão, perdida e triste.

Alcança Priya no elevador, sem se incomodar em disfarçar que consegue mexer-se depressa quando realmente quer. E só durante breves espaços de tempo.

— Não posso dar-te um nome — diz ela, quando a alcança. — Entendes, não é? O Bernie não entenderia, mas tu és uma pessoa mais razoável. Percebo só de olhar para ti.

— Acho que gostava realmente dela. Desta vez, não é apenas a atitude de macho. Não posso voltar sem nada.

Ela assente, compreensiva. Ambos têm de prestar contas a alguém. Abrem-se as portas do elevador e ela entra.

— Bebes?

— Já não. — Não desde que Nora o prendera a uma cama e lhe deitara rum com analgésicos pela garganta. O que significa que, oficialmente, conta como uma recaída, embora não possa considerar-se culpa dele. Subestimara-a e pagara o preço. Recorda que, então, também se sentira um pouco como uma puta. Parecia ser um denominador comum nos seus acordos com mulheres.

— Uma pena. Há um bar em Gastown que acho que é muito bom. Servem uns coquetéis de fruta com chapeuzinhos. O Lala Lair.

Fecham-se as portas.

Brazuca pensa em voltar ao apartamento para ajudar a irmã de Clementine a organizar todos os seus pertences muito caros e acompanhá-la na sua dor. Pensa melhor e carrega no botão do elevador. Ao fim e ao cabo, tem um trabalho para fazer e, por muito que deseje atribuir a conversa com Priya sobre beber um copo ao seu sex appeal, suspeita que ela tinha uma motivação diferente. Disse-lhe o que precisa de saber, da única forma que considerava segura.

Quanto a Grace… Bom, só espera que tenha conseguido o que precisava dele.

Tudo se desmorona

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