Читать книгу Tudo se desmorona - Sheena Kamal - Страница 17

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As nuvens desenham formas lindas à frente da minha janelinha ovalada. Até agora, o voo foi tranquilo, o avião atravessa essas formas como se fossem de açúcar. Poderia ficar aqui em cima para sempre, mas o olhar solícito da assistente de bordo começou a transformar-se num olhar de ódio quando me entretenho com a bandeja da comida. Tentou tirar-ma várias vezes e eu salvei-a, agarrando-me a ela com mão de ferro. Mas, se houvesse uma discussão até à morte entre nós, apostaria nela. Nunca apostaria contra uma mulher capaz de apanhar o cabelo num coque tão firme. Uma bomba poderia explodir neste avião e, entre os restos, encontrariam uma esfera de cabelo perfeita, ainda intacta, sem uma madeixa loira fora do seu lugar.

Quando aterramos, o agente da alfândega dos Estados Unidos parece duvidar de que a minha razão da viagem é «turismo», mas, provavelmente, não consegue imaginar que problemas poderia causar em Detroit que não se tenham causado já. No aeroporto, alugo um Chevy Impala e, enquanto atravesso a cidade com a luz da última hora da manhã, entendo porque todos deixámos de nos importar. Há edifícios abandonados por todo o lado. Ruas decadentes. Pessoas que não olham umas para as outras nos olhos. É violento, sobretudo, vindo de uma das cidades mais bonitas — e menos acessíveis — do mundo, onde quer viver tanta gente que quase ninguém tem oportunidade.

E chego aqui, a Detroit.

Não está calor nem há fumo como em Vancouver quando me fui embora, mas, certamente, o ar tem algo peganhento. Algo pesado. Acerta-me no nariz, como um murro que alguém me deu antes de ter tido tempo para reagir. Ou talvez a minha mente esteja a pregar-me novamente uma partida.

Registo-me num hotel barato do centro e tento situar-me. Disseram-me que estava localizado numa zona boa da cidade, perto da universidade, mas as parcelas do quarteirão com edifícios em demolição dizem-me outra coisa. O hotel em si parece estar bem e os lençóis estão limpos, mas têm um estampado floreado desgastado que causa uma esperança insuportável, dada a localização tão deprimente do hotel. Não consigo deitar-me nessa cama, mas também não quero sair para a rua até ter de o fazer, portanto, sento-me com as cortinas corridas, numa poltrona que poderia partir-se com o peso de um rabo maior. Mas estou a viver no limite, portanto, tanto me faz.

Sonho com uma menina coberta com o sangue de um homem, que escorrega nele quando abre a boca, dá um grito silencioso e se escapule. Acordo então e sinto-me como se a cidade de Detroit se tivesse derrubado enquanto dormia e quase todos os escombros me tivessem caído em cima. Há muito tempo que não pensava nessa menina pequena. E nunca, pelo menos até hoje, tinha sonhado com ela. Ainda bem que já quase anoiteceu e está na hora de fazer uma visita. Portanto, por enquanto, posso pôr de parte todas essas lembranças de uma infância feliz.

Não me incomodo em olhar para os mapas, porque há demasiadas coisas no mundo que me são incompreensíveis agora para prestar atenção aos sinais das ruas e conduzir um veículo em movimento ao mesmo tempo. Simplesmente, sigo as instruções do GPS do meu telemóvel até chegar à morada dos postais. A casa de tijolo, de dois andares, devia ser uma boa casa, mas a sua glória desapareceu com o tempo, ao ritmo da deterioração do resto da cidade. Procurando na Internet ontem à noite, descobri que este bairro a sudeste de Detroit costumava ser uma zona predominantemente branca, mas, agora, é mais mista do que antes, no seu apogeu, quando os americanos tinham sonhos e a Cidade do Motor era o lugar onde podiam ir vivê-los.

O homem que me abre a porta parece tão velho como a tinta descascada do alpendre e é tão corpulento que o percurso até à porta deve ter consumido as reservas de energia que tinha para o resto da noite. Mas os seus olhos estão despertos e estão limpos enquanto olha para mim, ali parada à porta dele. Atrás dele, vejo uma menina pequena que espreita. Leva um dedo aos lábios. Pedindo que fique em silêncio.

Ignoro-a e concentro a minha atenção no homem. O sol está a pôr-se por cima do meu ombro, envolvendo-nos numa luz rosada suave. Não digo nada. Agora que estou aqui, questiono-me se consegue ver alguma coisa dos traços do meu pai na minha cara. Fico em silêncio e uma parte de mim alberga a esperança de que me reconheça.

— Quem raios é? — pergunta, a modo de cumprimento.

— O meu nome é Nora Watts. Acho que conhecia o meu pai, o Samuel.

O seu olhar assustado percorre-me de cima a baixo, reparando nas minhas calças de ganga e na minha camisola com capuz, observa que tenho o ombro direito ligeiramente deitado para trás e o pé esquerdo um passo adiantado. Como um lutador. Recua e está prestes a fechar-me a porta na cara. «Não sei quem é esse.»

Ponho o pé na ombreira da porta para ganhar tempo enquanto procuro no bolso do casaco. Tiro os postais que enviaram ao meu pai, presos agora com a fita de seda azul, e mostro-lhos.

— Sabe quem enviou isto? Saíram desta morada.

Finge que não olha para os postais, mas um movimento leve do seu olhar indica-me que os viu.

— Desapareça daqui. Não tenho nada para lhe dizer. — Dou um passo inconsciente para trás ao ouvir a fúria da sua voz. Fecha-me a porta com força, mas consigo ver qualquer coisa que reconheço na sua expressão. Algo que parece desespero. Fico no alpendre por um instante, olhando para a menina pequena que espreita pelas cortinas da janela próxima. Apostaria o meu carro de aluguer, para o qual rejeitei temerariamente o seguro adicional, em como esse homem não só viu os postais antes, como foi a sua mão que os escreveu.

Porque, quando lhe perguntei se conhecia o meu pai, me mentiu na cara. Estou quase certa disso. Parece que essa pequena intuição que costumava ter quando alguém me mente volta a espreitar, a capacidade que antes me saía sozinha e, agora, só desponta de vez em quando, em retalhos, mas resta o suficiente para duvidar do homem que acabou de me fechar a porta na cara.

A menina pequena abre a janela e faz-me um gesto para que me aproxime. Tem o cabelo castanho apanhado num rabo de cavalo meio desfeito no topo da cabeça e uns óculos com armação azul que estão sempre a escorregar pelo nariz. Numa mão, tem um chupa-chupa, que me oferece. Não sei calcular a idade das crianças, por não ter feito parte da infância de Bonnie, mas acho que esta poderia ter uns dois anos ou um pouco mais. Talvez esteja na idade de ir para a creche. Agarro o chupa-chupa, abro o pacote e devolvo-lho.

— Para ti — digo.

— Obrigada. — Faltam-lhe os dois dentes da frente e ceceia um pouco. A língua aparece pelo espaço e sorri. Talvez tenha encontrado a criatura mais adorável que alguma existiu.

— Foi o teu pai que me abriu a porta?

Abana a cabeça.

— O teu avô?

Assente.

— Alguma vez sai de casa?

Isso causa uma gargalhada profunda, como as crianças sabem fazer, uma gargalhada surpreendente e deliciosa. Se algo pudesse derreter este coração frio que tenho, seria, sem dúvida, uma gargalhada como essa.

— Vamos à escola — informa, sem parar de sorrir. Então, volta a levar o dedo aos lábios, espera um segundo enquanto ouve um som de dentro e, depois, volta a sorrir. É surpreendente ver que as meninas começam cedo a esconder segredos aos machos alfa das suas vidas.

— Gostas da escola?

Abana novamente a cabeça.

— Não faz mal — digo. — Na verdade, não precisas dela. Tens de abrir caminho no mundo sozinha, entendes o que digo? Não acabes como eu. Sê tu própria. Procura dinheiro.

Assente, muito séria, ao receber aquele pedaço de sabedoria não solicitada. Desato a fita de seda azul dos postais e dou-lha.

— Anda muito devagar amanhã quando fores para o colégio, está bem?

Afasto-me do alpendre e volto para o meu carro de aluguer, que estacionei ao virar da esquina. Quando chego ao lugar, demoro um minuto a perceber que o Impala desapareceu. Roubaram-mo. Atravesso a rua para a paragem de autocarro próxima. As pessoas que lá estão não se incomodam em arranjar-me espaço. Ficam ali, com os olhos vazios, sabendo perfeitamente que o meu carro desapareceu à frente delas, mas ninguém está disposto a falar disso. Mais um facto do dia a dia. Não tem nada de especial.

Tudo se desmorona

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