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Capítulo Seis

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Eleanor deve ter finalmente adormecido e, antes de dar por isso, Greville abanava-lhe o ombro, exortando-a a acordar. Havia um tronco novo na lareira a estalar e a crepitar, embora o quarto ainda estivesse escuro. Ele já estava vestido e tinha colocado a sua manta dobrada em cima do baú.

— Temos de ir embora — disse-lhe. — Vou chamar a Joan. Quer comer alguma coisa antes de irmos? — Eleanor abanou a cabeça e observou-o a sair do quarto, deixando a porta entreaberta. Ouviu vozes sussurradas lá fora e depois Joan entrou, acendendo as velas à volta do quarto até ficar inundado por uma luz suave. Vestia a sua roupa de viagem e Eleanor perguntou-se se tinha dormido nela, dado que não parecia preocupada com a precoce alvorada.

Em pouco tempo, Eleanor também estava vestida com a sua roupa mais quente e robusta para a viagem que tinha pela frente. Empacotaram as últimas peças dos seus pertences, tendo o resto das suas roupas já sido enviado com antecedência na semana anterior. Lá em baixo, os servos fizeram uma pausa nas suas tarefas para se despedirem das duas mulheres. Alguns deles conheciam Eleanor desde que nasceu e havia imensas lágrimas. Tanto por ela como pela pacata e devota Joan. Não havia sinais de William ou Margaret, e os próprios olhos de Eleanor encheram-se de lágrimas quando deu um último olhar em redor do salão nobre, ainda envolto nas suas sombras noturnas. Imaginou ter visto o fantasma do pai sentado no seu cadeirão a sorrir e a acenar-lhe encorajadoramente, como se lhe desse permissão para iniciar este novo capítulo da sua vida. Estava a virar uma página, um novo começo.

— Adeus, papá — sussurrou, enquanto ouvia o som de botas pesadas a aproximarem-se. O marido pegou-lhe nos ombros e virou-a, envolvendo-a nos seus braços fortes, abraçando-a por um instante. O seu rosto foi pressionado contra a lã áspera do seu manto. Tinha andado dentro e fora enquanto os cavalos estavam a ser preparados e havia uma camada de fino orvalho matinal em cima dele, fazendo-lhe o cabelo curto encaracolar-se em tentáculos contra o pescoço, com a roupa e pele húmida. Eleanor afastou-se.

— Venha, vista o seu manto — disse-lhe, balançando-o nas costas dela e prendendo-o à frente — e vamos embora. Temos um dia difícil pela frente. Hoje não é um dia para finais e despedidas, mas sim um tempo para novos começos. Venha. — Pegando-lhe na pequena mão com a sua muito maior, levou-a para o exterior onde dois cavalos esperavam, batendo os cascos impacientemente. Ela esperava a sua própria montada e procurou-a em redor.

— Onde é que está o meu pónei? — perguntou. — Não o vou deixar aqui.

— Não se preocupe, já foi à frente. Partiu ontem — tranquilizou-a ele —, mas precisa de algo maior e mais resistente para a longa viagem, por isso mandei trazer um dos meus cavalos de Milfleet. — A besta que ele indicou tinha bom ar, com linhas fortes e um corpo largo e robusto. Tinha um focinho suave e fungava calmamente, com pequenas nuvens brancas a soprar das narinas enquanto ela lhe dava palmadinhas no nariz macio. Também era enorme, pelo menos o dobro do tamanho do seu pónei. A pedido de Greville, ela colocou a canela nas suas mãos em concha e levantou-a para cima do flanco largo do cavalo como se ela não pesasse absolutamente nada. Da sua perspetiva, o chão parecia estar a uma longa distância e desejou estar empoleirada na ponta da carroça com Joan.

O amanhecer instalava-se lentamente sobre o horizonte, com feixes suaves de luz a começarem a acenar-lhes para avançarem. Atrás dela, a casa e a abadia além dela erguiam-se numa silhueta escura contra a linha do horizonte e, de coração pesado, Eleanor picou o cavalo para avançar. Greville seguiu atrás dela enquanto cavalgavam para fora do pátio e ela decidiu não olhar para trás.

A viagem de quatro dias até Milfleet foi tão árdua e horrível como Eleanor suspeitava que seria. Dificilmente poderia culpar Greville por a ter enganado, uma vez que ele lhe tinha dado um justo aviso, mas mesmo assim o seu estado de ânimo piorava a cada quilómetro que passavam. A paisagem mal se alterava, uma vastidão plana de terreno húmido e pantanoso que se estendia até onde a vista alcançava, ocasionalmente cortada por algumas casas ou casebres grosseiros em terrenos mais altos. No início, Greville tinha proferido comentários recorrentes, mas à medida que o rosto de Eleanor se ensombrava, acabou por desistir, cavalgando ao seu lado em silêncio.

Quando finalmente chegaram, já passava da meia-noite. Por duas vezes a montada de Eleanor tinha tropeçado no escuro, e numa delas quase escorregou do cavalo enquanto lutava contra o sono. O seu estado de espírito não tinha melhorado. A lua cheia tinha-os ajudado a manterem-se no estreito caminho poeirento e agora brilhava em cima do casarão parecido com um castelo, por detrás do qual jaziam lagoas de água parada a brilhar ao luar como se fossem de vidro. Lá em cima, ouviu-se o som de correntes e de homens a gritar enquanto os enormes portões de madeira se baixavam para permitir ao grupo o acesso ao pátio adiante. Parecia estar cheio de pessoas à espera deles.

Agradecida, Eleanor deslizou do cavalo para o chão, parando momentaneamente enquanto sentia as grandes mãos de Greville à volta da cintura a segurarem-na. Após tantas horas na sela, tinha as pernas dormentes e geladas, e sem ele ali, tinha a certeza de que teria tropeçado. Manteve o olhar firme, vendo os seus profundos olhos castanhos rodeados de pestanas grossas nas quais não tinha antes reparado e tentou não mostrar o medo que lhe corria pelas veias. Quando ele lhe ofereceu o braço, tomou-o sem dizer uma palavra e ele encaminhou-a para o salão nobre.

O interior estava iluminado por velas ardentes, acesas em cada canto e alcova, e o que parecia ser uma dúzia ou mais de cães a rondarem as pernas de todos. Pareciam encantados por ver o amo, empurrando-se uns aos outros enquanto espetavam a cabeça contra Greville, fazendo-o rir alto enquanto os guiava para fora do caminho.

O salão nobre era diferente de tudo o que a Eleanor alguma vez tinha visto ou imaginado. O espaço enorme eclipsava de longe o de Ixworth. O teto elevava-se até decorações elaboradas e vigas esculpidas, não as rústicas com as quais estava familiarizada, e até as arandelas nas paredes eram ornamentadas. As paredes estavam cobertas de tapeçarias espessas e profundas com representações de cenas de caça e deuses romanos em batalha. Numa extremidade da sala havia uma mesa comprida de cavalete, sem toalha, ao longo da qual brilhavam castiçais de estanho. Tudo parecia tão enorme em comparação com tudo aquilo a que estava habituada e Eleanor sentiu-se pequena e insignificante. Perguntava-se como iria alguma vez viver naquela catedral de casa. Era completamente exagerada. Começou a perceber que as suas ideias preconcebidas em relação à casa de Greville, à sua riqueza e estatura, e Norfolk em geral poderiam estar incorretas. Apesar das belas roupas e cavalos de Greville, tinha-se convencido de que a sua casa seria sombria e austera, com poucos adereços de luxo, espelhando a paisagem na qual ele vivia.

Alguém lhe ofereceu uma caneca de cerveja, que bebeu com rapidez sem se aperceber da sede que tinha. Joan apareceu ao lado do seu cotovelo e ajudou-a a tirar o manto de viagem. Sem ele, sentiu-se exposta e a tremer, apesar do enorme fogo que rugia na lareira larga que ocupava quase metade de uma parede. Enrolou os braços em seu redor.

— Tem frio? — perguntou Greville, orientando-a para a lareira. — Fique aqui onde está mais quente. Está com fome?

Ela abanou a cabeça.

— Deixe-me então mostrar-lhe o seu quarto. Pode conhecer todos amanhã, quando não estiver tão cansada. — Colocando o braço à volta do seu corpo para a guiar através da multidão de pessoas — todos os que viviam na propriedade pareciam ter aparecido para conhecer a sua nova noiva, apesar da hora tardia —, Eleanor viu-se a subir um lanço de escadas de madeira polida escura, com os florões e corrimões intrincadamente esculpidos em folhas de carvalho e frutos de outono, todos a brilhar como castanhas acabadas de descascar. Reparou em Joan a segui-los, juntamente com um grande cão de caça peludo que lhe pareceu bastante apegado a ela, apesar das suas tentativas frenéticas de o mandar embora. Greville apenas se riu, aparentemente imperturbável por a besta estar lá em cima.

Abrindo uma porta, conduziu os dois para um quarto muito maior do que aquele que Eleanor ocupava em Ixworth.

Ali havia outra lareira em chamas e Greville acendeu rapidamente as velas. Numa parede estavam tapeçarias grossas dependuradas, na outra três painéis com revestimento de linho que brilhavam à luz do fogo. Num canto, ele puxou uma cortina pesada para o lado e indicou uma grande antecâmara que continha uma cama embutida na parede.

— Há aqui uma cama para a Joan — apontou ele, antes de indicar o canto oposto — e através daquela porta fica o meu quarto.

Eleanor nem conseguia perceber onde é que os painéis terminavam e a porta começava, mas a sua surpresa por ele ter um quarto separado ficou-lhe estampada no rosto. Tinha previsto que, apesar da longa viagem, ele estaria à espera de partilhar a cama dela naquela noite. Aparentemente, estava errada.

— Antes de a deixar, tenho um presente de casamento para si.

Atravessou a porta divisória para o seu próprio quarto e reapareceu segundos depois com algo pequeno, que colocou nas mãos de Eleanor. Era liso e tinha um ligeiro odor a pele tratada. O cheiro acentuado lembrava-lhe de estar sentada com os escribas na abadia, enquanto passavam horas laboriosas a escrever textos e a iluminá-los com tintas de cores brilhantes e folha de ouro. Ela sentava-se e praticava muitas vezes ao lado deles com penas descartadas e restos de pergaminho ou papel velino que já não era necessário. Nunca teria a mão firme ou o olho para os detalhes que eles faziam, mas era capaz de completar ilustrações razoáveis, se bem que bastante ingénuas. Era uma forma agradável de passar os longos dias de inverno, quando o mau tempo podia mantê-los confinados durante semanas a fio. E tinha adquirido muito conhecimento enquanto conversava com eles, aprendendo com as suas experiências no boticário e na enfermaria. A sua caligrafia, com toda a prática que tinha, era pequena e elegante. Uma habilidade que sem dúvida seria útil quando estivesse a ajudar Greville.

Virou o objeto, examinando-o cuidadosamente. Um livro pequeno e pesado que era pouco maior do que o tamanho da sua mão. A capa de couro tinha sido ornamentada com padrões elaborados e espirais que se pareciam com fetos novos, enrolados à volta de um brasão decorado com cores brilhantes. Abriu-o devagar e olhou para as palavras inscritas em latim no interior.

— É um livro de orações? — perguntou ela, encantada. — É lindo, obrigada.

— É. — Ele acenou com a cabeça. — Um livro de horas. Veja aqui, tem as estações da cruz. — Mostrou-lhe as imagens ricamente ilustradas da viagem da Sexta-feira Santa e das orações que a acompanhavam. — E aqui… — virou algumas páginas — tem os dias santos e as festividades. Era da minha mãe, oferecido pelo meu pai no dia do casamento. Há páginas em branco ao longo do livro. Ele mandou acrescentá-las para que ela escrevesse o que quisesse, os seus pensamentos ou orações. Mas ela não as utilizou, por isso o livro continua à espera de que alguém o use devidamente. Espero que satisfaça os desejos do meu pai.

Eleanor sorriu. Estava certa de que não teria problemas em fazer isso.

— Este é o seu brasão? — perguntou ela ao tocar no desenho em relevo da capa.

— Sim — confirmou ele —, e agora também é seu. Dado ao meu avô, juntamente com esta casa, como agradecimento pela sua lealdade a Edward IV. Veja aqui, tem juncos para simbolizar os pântanos onde vivemos e também aqui, uma garça. Este é o nosso lema de família. — Tomando a mão de Eleanor, passou-lhe os dedos sobre a inscrição em latim na parte inferior.

— Dum Spiro Spero — leu ela. — Enquanto há vida, há esperança.

— É isso mesmo — concordou ele. — Há momentos em todas as nossas vidas quando tudo parece sombrio ou mal — disse-lhe ele —, mas nunca devemos perder a esperança de que as coisas voltem a melhorar. — Olhou-a profundamente nos olhos como se estivesse a revistar-lhe a alma e a ler o que lá estava escrito. Talvez percebesse mais o sofrimento dela, como se sentia perdida e sozinha, do que ela pensava. Eleanor recompôs-se um pouco e arrancou os olhos dos dele.

— Obrigada, vou guardá-lo com cuidado — disse-lhe.

— Caso se esteja a perguntar, a mãe da Jane tinha o seu próprio livro de orações, que é a razão de, por acaso, eu ainda ter este livro. Acho que encontrará mais utilidade para ele. — A sua barba, sempre arranjada apesar dos longos dias de viagem, fez-lhe cócegas quando se curvou para a beijar na face, quente contra a sua pele fria, e depois foi-se embora.

Em redor dos cantos do quarto estavam empilhados os vários baús que as duas mulheres tinham passado os últimos dez dias a embalar, mas Eleanor estava demasiado cansada para encontrar uma camisa de dormir. Assim que Joan a ajudou a despir, enfiou-se debaixo dos cobertores da sua nova cama com a túnica e deitou-se, extenuada, enquanto Joan puxava os cortinados à sua volta. Não ouviu os sons da dama de companhia a afundar-se com gratidão no seu próprio colchão, enquanto caía num sono exausto e sem sonhos.

Os segredos de Saffron Hall

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