Читать книгу Os segredos de Saffron Hall - Clare Marchant - Страница 13
Capítulo Sete
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O telefone de Amber apitou com a chegada de uma mensagem. Baixando o olhar para o ecrã, suspirou, batendo repetidamente no botão de ligar com frustração até o ecrã finalmente escurecer. O que tinha começado como uma indagação ocasional sobre o seu bem-estar, começava agora a parecer ligeiramente prepotente e desconfortável. Sabia que Jonathan estava preocupado e precisava mesmo de falar com ele para lhe acalmar as preocupações. Até porque se não o fizesse, ele começaria a ligar para o telefone da casa para falar com o avô, e o desgraçado do velhote levava dez minutos só para sair da poltrona e cambalear até ao telefone.
Ele não a ia deixar em paz. Ela já lhe tinha explicado em numerosas ocasiões que não o tinha deixado ou abandonado o casamento, mas não podia estar em casa com ele no vicariato naquele momento. Tudo o que lá estava apenas lhe lembrava do que não estava. Ele tinha desimpedido o berçário e colocado tudo no sótão, a achar que iria ajudar, mas na realidade só tinha piorado as coisas. Como se Saffron nunca tivesse existido. Mas ela era uma pessoa real, a sua filha. Foi uma gravidez surpresa após uma tomada de antibióticos que fez com que a pílula não funcionasse. Amber tinha ficado horrorizada quando viu pela primeira vez as duas linhas azuis a aparecerem no teste. Jonathan, como sempre, tinha sido muito mais pragmático e, em poucos dias, tinha passado de prudente a extremamente entusiasmado. Tinha demorado vários meses até Amber aceitar o que estava a acontecer e ter começado a aguardar ansiosamente a nova adição à sua família e a partilhar da excitação crescente de Jonathan. Agora, estava crucificada com a culpa da sua falta de felicidade inicial.
Amber sabia que se estivesse à janela do berçário agora vazio, tinha vista para a campa onde a sua bebé jazia. Jonathan achou que era um conforto estar tão perto. Visitava a campa todas as manhãs antes de abrir a igreja. Ela tinha-o visto da janela, os lábios a mexer enquanto falava com a filha. Ou talvez estivesse a rezar. Ela não podia perguntar porque não queria admitir que tinha estado a observá-lo. No início, tinha andado a pairar pela paróquia num nevoeiro, incapaz de se concentrar no que quer que fosse. Pegava em livros e voltava a pousá-los, por ler. Fazia chávenas de chá que não bebia. Até que, passados alguns meses, sabia que tinha de encontrar um sítio onde pudesse voltar a respirar. Um lugar familiar que a chamava.
Era apenas uma viagem de noventa minutos de carro de casa até ao avô. Inicialmente, tinha concordado em regressar a casa aos fins de semana, mas isso depressa chegou ao fim. Jonathan estava sempre a trabalhar aos domingos e geralmente a preparar-se para as missas no dia anterior, e era uma longa viagem de carro apenas para cozinhar um assado para o jantar e passarem pouco tempo juntos.
E agora que ele não era capaz de acompanhar pessoalmente o seu declínio físico e mental, tinha começado a enviar mensagens escritas várias vezes por semana. Ela tinha-o convencido de que era melhor se ela lhe telefonasse a uma hora conveniente para não incomodar o avô, mas as mensagens de texto estavam agora a aumentar. Só queria ter alguma paz para respirar e chorar a sua filha da maneira que se sentia capaz.
O avô estava a dar o seu passeio matinal, embora Amber tivesse descoberto que isso significava apenas caminhar da porta das traseiras até à estufa. Sentava-se ali todos os dias no seu banco de jardinagem, independentemente do estado do tempo, a olhar para a sua extensa horta que agora estava completamente infestada de ervas daninhas. As plantas problemáticas e indisciplinadas tinham crescido, desde que ela se lembrava, ao longo dos canteiros cuidadosamente regulados nos quais, ao longo dos anos, ele tinha cultivado vegetais suficientes para alimentar todo o exército britânico. Contra o tijolo claro do jardim murado, as figueiras espaldeiras ainda produziam baldes de fruta todos os anos, a maioria das quais caía ao chão, um banquete para os insetos antes das chuvas de outono os transformarem num melaço pegajoso de composto.
Mas já não era capaz de fazer o trabalho físico. Ela sabia que ele odiava a fraqueza com que tinha ficado após o derrame, e duvidava que alguma vez tivesse realmente aceitado a forma como as coisas eram agora. Ainda fazia planos de coisas para fazer quando voltasse a estar bem e ela não tinha coragem de lhe dizer que esse dia talvez nunca chegasse.
Aproveitando-se de ter a casa só para ela e sabendo que devia responder às mensagens de Jonathan, Amber voltou a ligar o telefone e andou pela casa em busca de um sítio com rede decente. Era decididamente melhor na parte da frente da casa, mas mesmo assim não era grande coisa. Uma vez tinha sugerido ao avô subir à torre para encontrar sinal decente de rede, mas ele tinha sido veemente na sua resposta, chocando-a. E agora, com o andaime em cima, estava estruturalmente inseguro e a porta das escadas permanecia trancada, como sempre. Nada o dissuadia da sua decisão. Admitiu que estava inacessível desde que se lembrava e que ninguém sabia onde estava a chave, mas ela tinha a certeza de que havia mais alguma coisa que ele não lhe estava a contar.
A biblioteca, contudo, era a divisão com cobertura de rede melhor. Não era um sítio que ela normalmente frequentasse, com as vidraças antigas de chumbo a deixarem entrar dezenas de minúsculas correntes de ar. Pequenos punhais afiados de gelo. Era esse o problema de um edifício classificado como o Saffron Hall: nada podia ser substituído, pelo que não havia hipótese de haver vidros duplos adequados e eficientes e a família tinha de viver com o frio consequente. Não admirava que no inverno o avô se sentasse na escuridão a maior parte do dia com as cortinas velhas e grossas corridas para manter o calor lá dentro.
O seu telefone finalmente apanhou um sinal fraco e vibrou. Olhando para o ecrã, descobriu não uma, mas quatro mensagens e uma chamada não atendida de Jonathan.
— Pelo amor de Deus — murmurou ela rolando pelas mensagens. Começavam a perguntar educadamente sobre a sua saúde e a perguntar se podiam conversar, mas à quarta dizia severamente: LIGA-ME, AMBER. LIGA-ME, QUE RAIO! Ele poderia hesitar em usar o nome do Senhor em vão, mas Jonathan não era esquisito na questão de praguejar, se achasse que a ocasião o merecia. Pressionando o seu nome no registo de chamadas recentes — de facto, o único nome no registo de chamadas — segurou o telefone contra o ouvido, ouvindo o barulho enquanto fazia a ligação, imaginando-o sentado no seu escritório a agarrar o telefone e quase a deixá-lo cair na sua pressa de o atender. Jonathan estava no primeiro patamar dos desajeitados.
— Olá, Amber? — Parecia estar sem fôlego.
— Sim, sou eu. É boa altura? — Pegou numa caneta abandonada no aparador ao seu lado e começou a clicar na tampa para cima e para baixo sem parar.
— Claro, sim. Estava só a cortar algumas das últimas dálias para dar às mulheres da rota de flores desta semana. Foram um pouco agitadas pelo vento, mas servem. As flores, digo, não as voluntárias. Desculpa, estou a divagar. Como estás? — A voz dele fugiu e ela sentiu-se compelida a preencher o silêncio que sabia que se instalaria entre eles até ela falar. Conseguia visualizá-lo, a olhar de um lado para o outro como se isso o ajudasse a encontrar palavras para dizer.
Tinham tido uma parceria tão boa desde a primeira vez que se encontraram quando ela estava a desbloquear a sua bicicleta no exterior das escavações em Cambridge e ele estava lá parado a desbloquear a dele. Tinha feito imediatamente um comentário favorável acerca das suas brilhantes botas Doc Martens amarelas, embora só muito mais tarde ela lhe tenha explicado a ligação entre o tom vibrante do seu calçado e o nome da sua casa ancestral. O avô tinha-lhas comprado pelo seu décimo oitavo aniversário e ela adorou-as. Não demorou muito tempo até se sentir acalorada ao ouvir a sua profunda voz melódica e tinha-o convidado para um concerto que alguns amigos iam dar no bar da faculdade nessa noite. Desde esse dia, nunca tinham tido um momento em que não soubessem o que dizer um ao outro. Até àquele.
— Oh, bem, já sabes, o mesmo de sempre. Ainda a trabalhar arduamente nos livros do avô. — Prosseguiu explicando os recentes danos na torre. — Não tem havido muito tempo para fazer mais nada. Tenho saído para dar um passeio quando está sol, mas isso não acontece com muita frequência.
— Sim, o tempo tem estado muito parecido aqui. — Podiam ambos obter um certificado em conversa fiada.
— E tu? Alguma coisa excitante em Little Walpole?
— Bem, há algo que te quero dizer e é por isso que queria falar contigo, em vez de estar a mandar mensagens infernais. Isto é algo que precisa de ser dito em voz alta.
Por um segundo, o coração de Amber bateu-lhe loucamente no peito e o acentuado nervoso miudinho fez-lhe passar o calor pelo rosto, apesar da corrente de ar frio da janela. Jonathan raramente tinha algo importante para lhe dizer. Ter-se-ia fartado de esperar que ela voltasse ao seu antigo eu, a Amber que costumava ser? Ia pedir para acabar com o seu retiro, ou com ela e o casamento? Tinha sido sugestão dela tirar um tempo e ficar com o avô para desanuviar a cabeça. Ele não tinha gostado da ideia, mas quando o avô sugeriu que ela catalogasse a sua coleção de livros, Jonathan tinha vacilado e acabou por concordar que talvez isso ajudasse.
Percebeu que tinha perdido as primeiras palavras enquanto se tentava sintonizar novamente no que ele estava a dizer.
— …Por isso, achei que não te importasses se avançássemos e a mandássemos erguer. O Tony veio ontem à tarde e eu ajudei-o a fazê-lo. Pareceu-me importante estar envolvido, pela Saffron. E parece-me correto. Acho que vais ficar contente com ela. O Yeats que escolheste é absolutamente perfeito.
Amber percebeu com um abanão que ele estava a falar da pedra tumular para a campa de Saffron. Sentiu que a tinham escolhido há tanto tempo que se esqueceu que ainda precisava de ser colocada no sítio. Os olhos arderam-lhe enquanto as lágrimas familiares lhe brotaram e rolaram pela cara abaixo. A vista da janela, a extensão dos campos planos por baixo do pesaroso céu molhado embaciado num quadro oscilante de cinzento e sépia como uma pintura impressionista.
— Não tinha percebido que já estaria pronta — admitiu ela a fungar alto — ou que o solo já tivesse assentado.
— Vens a casa para ver? Acho que vai ajudar. Sei que a mim me ajudou. É mais permanente e um símbolo apropriado de que ela esteve cá. É dizer ao mundo que tínhamos — temos — uma filha.
— Sim, claro, gostava disso — respondeu Amber. Quase conseguia ouvir o sorriso no rosto de Jonathan como se estivesse à espera de uma resposta diferente. Sugeriu um dia na semana seguinte em que ele não tinha trabalho para poderem também almoçar. Amber estremeceu. Achava que não ia conseguir enfrentar as horas de conversa fiada que ele esperava. Ela já não era a mesma pessoa. Tinha mudado para sempre. Se ao menos Jonathan conseguisse perceber isso. O avô estava habituado a uma vida calma e raramente se entregava a conversas sem rumo, por isso, desde que chegou, a sua capacidade de conduzir longas conversas sem sentido tinha diminuído para quase nenhuma. Antes de desligar, concordou relutantemente em encontrar-se com ele no vicariato ao final da manhã no dia que tinha sugerido.
A lápide de Saffron. Tudo parecia tão definitivo, como se todos os outros, Jonathan incluído, estivessem a seguir em frente. Só que ela não conseguia. Estava a descair no seu próprio purgatório pessoal. Uma pausa entre a sua vida e nenhuma vida, apenas a escuridão que habitava todos os dias. Ainda não tinham qualquer explicação oficial para o facto de o coração da sua preciosa filha ter parado de bater. Um dia estava tudo bem, ela estava uma semana atrasada em relação à data do parto, o bebé dava bons pontapés, e no dia seguinte nada. Tinham passado várias horas até ter percebido que não tinha sentido quaisquer movimentos. Se ao menos tivesse reparado mais cedo e tivesse ido para o hospital, então poderiam ter sido capazes de fazer alguma coisa. A culpa foi dela, tudo culpa dela.
A quietude que os rodeou quando o médico levantou o olhar do ecógrafo e lhes disse que não havia batimento cardíaco. Que o bebé deles estava morto. Um silêncio aberto a sugar o ar da sala deixando-os em vácuo enquanto processavam a informação. Depois houve uma precipitação nos seus ouvidos, um barulho estridente que percebeu estar a sair-lhe da boca, mas que ainda assim não sabia como silenciar. E esse som podia agora ser interior, mas ainda não conseguia fazê-lo parar.
Amber deixou-se descair contra a janela e fechou os olhos. Era culpa dela que, em vez de estar em licença de maternidade com a sua bela filha, estivesse em ano de sabática, numa licença misericordiosa enquanto tentava aprender a viver aquela nova vida. Aquela vida com um enorme buraco cavernoso por não ter insistido que os médicos lhe induzissem o parto assim que a sua data limite chegou. Enquanto Saffron ainda estava viva. Por aceitar as garantias médicas de que até dez dias de atraso era perfeitamente seguro. Mas sete dias depois tinham descoberto que não.
Passando os dedos pelo cabelo curto, agarrou-o nos punhos, puxando o cabelo esticado sem sentir a dor. Estava dormente, gelada. Não conseguia ver uma maneira de voltar a sentir-se normal. Ao esfregar as mãos com força nos olhos, espalhou a humidade e o sal pela cara e teve um arrepio. A sala parecia ainda mais fria do que antes. Quando se virou em direção à porta, parou. Houve uma mudança no ar. Uma sensação momentânea de que não estava sozinha na divisão, ainda que conseguisse ver claramente que estava. Era semelhante à forma como os braços às vezes lhe doíam por ter a certeza de poder sentir o peso de Saffron deitada neles, embora soubesse ser impossível. Estavam vazios.
Parecia tão real que alguém tivesse estado na sala com ela durante um breve instante. E havia só uma pitada de um cheiro estranho. A mel e a algo metálico. Estaria a começar a perder o juízo? Tinha feito alguma terapia depois de Saffron e foi-lhe dito que no luto tudo era possível. Era simplesmente o seu cérebro confuso a pregar-lhe partidas, não era?