Читать книгу Os segredos de Saffron Hall - Clare Marchant - Страница 14
Capítulo Oito
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— A que horas vais sair? — perguntou o avô.
— Por volta das dez horas, acho eu. O trânsito estará lento, se este tempo não melhorar.
— Não te preocupes com o jantar desta noite, se quiseres ficar em casa com o Jonathan. Há muita coisa no congelador para mim. — Tirou um pedaço de doce do frasco com a faca e ambos observaram a sua viagem instável até à torrada.
— Não, de certeza que volto. Só concordei almoçar porque a meio da tarde posso estar na viagem de regresso. O Jonathan sabe que eu não gosto de conduzir de noite. Vou trabalhar agora uma hora antes de partir. Assim não desperdicei o dia todo.
O avô levantou as sobrancelhas.
— Tenho a certeza de que «desperdicei» não é a palavra certa.
— Bem, não, não quando vou visitar a Saffron. Mas não sei de mais nada. — Amber olhou para baixo para a chávena de chá à sua frente, com uma camada cintilante a começar a formar-se no topo. Tinha passado a maior parte da noite a tentar afastar os pensamentos sombrios que lhe povoavam a cabeça. Aquele era um dia que ela não podia evitar. A dada altura teria de ver a lápide de Saffron. Já estava a sofrer tanto que dificilmente a conseguiria fazer sentir-se pior. E depois, um almoço tenso com Jonathan. Apesar de o amar e de ter saudades dele, contrariamente ao esperado, não queria vê-lo. Para falar sobre tudo — com certeza que se esperava que ela discutisse o seu estado mental. Ou respondesse a perguntas difíceis sobre quanto mais tempo ficaria com o avô, ou até onde tinha chegado no arquivo dos livros. Mesmo nas profundezas do seu desespero, sabia que não estava a ser justa com Jonathan, excluindo-o quando ele precisava dela, mas não conseguia encontrar uma forma de o deixar entrar.
Ao levantar-se, puxou automaticamente as calças para cima. Mesmo com uma elevada percentagem de elastano, as calças pretas elásticas ainda lhe estavam largas na cintura, e a camisola cinzenta que usava mostrava buracos profundos por debaixo dos colarinhos, pois quase lhe escorregava dos ombros. Tinha perdido mais peso do que se tinha apercebido.
Estava frio no escritório, mas decidiu não ligar o aquecimento, pois não valia a pena quando só estaria a trabalhar por pouco tempo. Ao ligar o portátil, pesquisou os livros ainda deixados na secretária à espera de serem catalogados. Havia várias primeiras edições que deviam mesmo estar na biblioteca, embora, felizmente, o facto de estarem guardadas em caixas de chá e de cartão não lhes tivesse feito muito mal.
No entanto, ignorando o que estava disposto à sua frente, sabia qual era o livro que não podia esperar mais um minuto para ser investigado. Aquele pelo qual se sentia atraída e no qual tinha estado a pensar durante as longas horas de insónia da noite, quando a escuridão a pressionava por dentro. Com cuidado, Amber tirou o precioso livro do cofre. Tinha feito algumas pesquisas iniciais que lhe tinham confirmado a suposição de se tratar de um livro de horas, um livro de orações pessoal medieval pertencente a uma senhora importante. Colocou-o no expositor de veludo para livros que tinha trazido consigo quando se mudou. Não tinha esperado que nada tão excitante assim fosse precisar da sua atenção especializada.
Depois de puxar as luvas, de um branco brilhante na sua frescura imaculada, voltou a desembrulhar o revestimento grosseiro, olhando desta vez com mais cuidado para o que pensava ter sido originalmente apenas um trapo. Embora os têxteis não fossem a sua especialidade, suspeitava fortemente que o tecido era de linho e que parecia bastante fino, de alta classe e não material áspero de trabalhador. Aquele era composto por um delicado bordado que parecia ter sido outrora um trabalho em preto, o simples bordado geométrico em seda preta que era usado para decorar as pontas das camisas e aventais na época medieval, ao longo de uma margem. Numa época em que todos os tecidos eram caros, teriam ainda utilizado uma peça estragada com o que parecia ser uma mancha escura como invólucro. Perguntou-se porque é que uma cobertura danificada tinha acabado em torno de um livro tão precioso como aquele.
Passou a ponta dos dedos sobre a espessa capa de couro castanho-escura, delicadamente ornamentada e gravada com um brasão de armas, embora estivesse agora brilhante e desgastada nalguns sítios. Parecia ter sido originalmente colorida, mas também isso quase se tinha desgastado, havendo apenas pequenos vestígios de amarelo e vermelho visíveis. Passando as mãos por cima dele, tateando suavemente com a ponta dos dedos como se lesse Braille, era quase impossível determinar o que tinha estado lá originalmente. Virou cuidadosamente a primeira página e os seus olhos caíram sobre a escrita que tinha observado no dia anterior. Mais uma vez, um arrepio de angústia correu-lhe pela espinha e fê-la estremecer. Tentou não olhar para a inscrição sobre Mary, mas abriu um novo documento no seu portátil e começou a tomar notas. Quando entregasse, por fim, o livro aos seus colegas do Museu Fitzwilliam, gostaria de também lhes dar um trabalho de pesquisa completo.
«Lista de nascimentos e mortes», anotou rapidamente, «mas uma — Thomas Lutton — não tem data de nascimento adequada, apenas um mês e ano ao lado da sua entrada».
Diante da lista de nomes, encontravam-se as linhas rabiscadas em latim. Eram quase impossíveis de decifrar. Tinha apanhado uma pequena quantidade delas dos projetos para os quais tinha sido designada no trabalho, mas só conseguia reconhecer as palavras e frases mais populares e frequentemente utilizadas. Tirando a sua lupa da gaveta da secretária, tentou ver se ajudaria tornar as palavras maiores. Franziu o sobrolho enquanto semicerrava os olhos. O que é que aquilo significava?
Um rápido olhar ao canto do ecrã do portátil confirmou o que suspeitava. Precisava de ir embora ou chegaria atrasada. As suas investigações teriam de esperar. Depois de voltar a embrulhar cuidadosamente o livro, colocou-o no cofre no canto da sala. Havia uma pequena agitação no fundo do seu estômago, a mais pequena asa de borboleta de interesse atiçado. Após semanas e semanas a vaguear pela coleção do avô, talvez tivesse encontrado algo excecionalmente especial.
Amber parou o carro em Swaffham. Conduzir à chuva tinha-lhe feito sentir os olhos a arder e o seu estado de espírito, que tinha melhorado um pouco depois do trabalho no livro de horas, estava agora tão húmido quanto o tempo na rua.
Pensava que conseguia fazer aquilo. Ver Jonathan, fazer conversa, evitar falar sobre os assuntos que ele claramente queria discutir, mas que nunca o fazia porque tinha demasiado medo de colocar o dedo na ferida. Para visitar a campa de Saffron e ver a nova lápide, um lembrete visível em perpetuidade de que ela não foi capaz de fazer a maioria das coisas básicas e manter o seu bebé a salvo dentro de si. Agora, tinha vontade de voltar para trás, voltar para a casa do avô e esconder-se. Mas não podia fugir para sempre. E tinha esperança de que fosse catártico colocar umas flores para Saffron.
Depois de sair do carro, saltou pela High Street abaixo tentando esquivar-se às poças e apressou-se a entrar na florista. Havia apenas uma florista na cidade, caso contrário teria ido a outro sítio. Ali era o sítio onde Jonathan a tinha levado para escolher flores para o funeral. Só voltar a entrar na loja, com o cheiro avassalador a flores e ramos, a vida nova, ameaçou empurrá-la até ao limite.
Felizmente, a jovem atrás do balcão era uma florista diferente, por isso não havia problema de ser lembrada e ter de mantter uma conversa desconfortável. Em vez disso, depois de ter trocado umas palavras agradáveis sobre o mau tempo, Amber pôde pedir um buquê de gipsofila e sair com a compra, colocando suavemente as flores de pequenas e frágeis pétalas brancas no banco do carro ao seu lado. Era a flor que tinham escolhido para ser colocada no minúsculo caixão de vime branco no funeral dela e Amber não conseguiu pensar em nenhuma outra para comprar.
Por fim, chegou ao estacionamento ao lado da igreja. As mãos tremiam-lhe quando limpou as palmas húmidas às calças. Sabia que devia ter estacionado o carro em casa — o vicariato ficava mesmo ao lado da igreja. Através das árvores conseguia ver os seus tijolos amarelos baços enroscados pela hera. Mas de momento não queria alertar Jonathan para a sua chegada.
Dantes, nessa outra vida anterior a Saffron, tinha adorado estar naquela casa. Era o seu esconderijo do mundo. Tinha tido muitas refeições animadas com os amigos que se prolongavam ao longo da noite. Os seus colegas académicos de Cambridge davam-se bem com os eclesiásticos de Jonathan, juntamente com os velhos amigos da escola e casais da aldeia, alguns com filhos pequenos ou à espera dos seus próprios bebés.
A chuva tinha finalmente parado, com o céu lentamente a abrir à medida que os pingos constantes das árvores lhe saltavam da cabeça e dos ombros enquanto caminhava lentamente em direção à igreja. Talvez devesse estar a fazer aquilo com Jonathan, mas queria paz e silêncio para estar sozinha com os seus pensamentos.
Seguiu o caminho à volta das traseiras e depois atravessou a relva recém-cortada, mas encharcada da chuva, com os restos das ervas a colarem-se aos sapatos. A zona para as campas das crianças ficava no canto mais afastado, instalada um pouco mais longe das restantes. Um pequeno aglomerado de tristeza. Algumas das sepulturas estavam decoradas com moinhos de vento de plástico, peluches ensopados e coelhos de cerâmica. Todos lidavam com a perda à sua própria maneira.
A lápide creme de Saffron, com as letras douradas a resplandecerem debaixo das gotas de chuva que a decoravam, brilhavam sob a fraca luz do sol empurrado pelas nuvens. Ajoelhando-se ao seu lado, Amber passou os dedos por cima das palavras gravadas.
Saffron Morton, nascida adormecida a 18 de fevereiro de 2019
E as estrelas que trepam ao céu de orvalho,
Só vivem para iluminar os teus pés que passam
Era tão permanente como ela tinha imaginado. E doía vê-la, tanto quanto ela sabia que iria doer. Colocou as flores que tinha trazido com gentileza sobre o pequeno montículo de relva em frente à lápide.
— Lamento muito — sussurrou. — Lamento que não estejas aqui connosco como tínhamos planeado. Sinto a tua falta todos os dias e sei que o teu papá também. — Falar com a filha foi mais fácil do que tinha imaginado e teve uma pequena visão de como Jonathan conseguia encontrar conforto ao visitar a sepultura e falar com Saffron todas as manhãs. Levantou-se e refez os seus passos em direção ao carro. Sabia o que precisava de fazer naquele momento, aquilo com que tinha concordado, mas não conseguia lidar com isso. Era demasiado difícil. Noutra altura, iria ver Jonathan noutra altura. Tinha a certeza de que ele compreenderia porque é que ela não conseguia fazer aquilo naquele momento.
Parado à janela do berçário vazio, Jonathan observava-a a ajoelhar-se à beira da campa antes de se levantar lentamente e de se afastar, de cabeça curvada. Minutos mais tarde, ouviu o seu carro a arrancar e afastar-se. Esfregou as mãos com força contra os olhos, a tentar impedir que as lágrimas quentes lhe caíssem pela cara abaixo.