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Capítulo Três

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2019

O clima invulgarmente quente do final de setembro agarrou-se aos últimos vestígios de verão, como que relutante em deixá-lo seguir graciosamente até ao outono. Dia após dia de denso calor opressivo deixou o ar denso e húmido, congestionando-lhe os pulmões. Antes de ir para a cama, Amber abriu as janelas tanto quanto se atreveu, preocupada com a sua antiguidade. Não queria que caíssem dos mainéis de pedra. Mas não ajudou. O ar pesado e petrificado pairava imóvel e silencioso tanto no exterior, nos terrenos da casa, como no seu quarto.

Ouviu os sons familiares da casa enquanto rangia e se instalava para a noite. Aos seus pés, Gerald, o gato enorme cor de laranja do avô, já estava enroscado e completamente adormecido, indiferente às condições pegajosas. Pensando que nunca conseguiria dormir, Amber deitou-se em cima do edredão com a t-shirt desconfortavelmente colada à pele.

No entanto, deve ter dormitado, porque foi subitamente acordada por um som tão alto de algo a partir-se que assustou Gerald ao ponto de se tornar numa bola amedrontada de pelo cor de laranja. Quando abriu a porta do quarto, ele saiu disparado. O seu quarto foi iluminado por uma luz azul esbranquiçada, forte e brilhante, que lhe picou os olhos e a fez estremecer. Foi rapidamente seguida por outro som semelhante ao que a tinha acordado, um barulho que soou como se a terra estivesse a ser dividida em duas, seguida de um trovão e de um eco a acontecer à distância. Depois veio o bem-vindo som da chuva, com grandes gotas a salpicarem sobre a hera no exterior. Fechou rapidamente as janelas, mas deixou as cortinas abertas, a observar as correntes de água a correr pelas pequenas vidraças enquanto a tempestade se agitava. Teria apostado dinheiro em como Gerald tinha mudado de ideias sobre ir lá para fora e que tinha encontrado um local seco para se enroscar algures no andar de baixo.

Enquanto o vento uivava em redor do edifício, um raio todo-poderoso atingiu a casa. Amber ouviu um estrondo e um barulho crepitante, como se algo estivesse algures a fritar. Abriu a porta do quarto com cuidado e pôs a cabeça de fora, cheirando o ar em busca de um odor a queimado. A casa estava às escuras, mas não conseguia cheirar nada de mal. Quando acendeu o interruptor da luz do quarto, nada aconteceu. Não havia eletricidade. Ouviu pés a arrastar e resmungos do quarto do avô e avançou com cautela na sua direção. A última coisa que queria era que ele caísse no escuro.

— Avô, estás bem? — chamou ela para o silêncio que se seguiu a outro estrondo de trovão que lhe vibrou debaixo dos pés. — A eletricidade foi-se.

— Sim, estou acordado. Espera. — Ela ouviu a porta a abrir-se um pouco mais ao fundo do corredor e quando o céu se iluminou de novo, conseguiu ver-lhe momentaneamente a silhueta à entrada da porta.

— Não saias do quarto — disse ela bem alto. — Só queria ter a certeza de que estavas bem.

— Estou bem — entoou ele. — Temos um para-raios no cimo da torre. Presumo que tenha sido atingido e esturricado. Não seria a primeira vez. Mas não há nada que possamos fazer até ao amanhecer. Cheira-te a queimado?

Preocupada, Amber voltou a cheirar o ar.

— Não, definitivamente não cheira — confirmou.

— Então, ótimo. Não estamos a arder. — Soou bastante satisfeito, enquanto as suas palavras eram afogadas por mais um estrondo ensurdecedor no exterior e o corredor tornava a iluminar-se.

Amber deu um guincho involuntário. Nunca tinha tido medo de tempestades, mas aquilo era outra coisa.

— Tens a certeza de que estamos seguros aqui? — perguntou quando o seu ritmo cardíaco começou a voltar ao normal.

— Claro que sim. — O avô riu-se. — Esta casa sobreviveu a quinhentos anos de temporais. Vai correr tudo bem. Podemos acabar por perder algumas telhas do telhado. Temos de verificar isso de manhã. Agora tenta dormir um pouco.

Ela ficou em silêncio por um momento, escutando-o a esbarrar contra a mobília, seguido do ranger das molas quando voltou a subir para a cama.

A ideia de dormir no meio do ruído exterior, com a chuva ainda a bater contra a janela, era risível. Depois de voltar para o quarto, quando estava prestes a fechar a porta, ouviu o som de unhas a raspar no chão de parquet. Gerald voltou a correr para dentro e desapareceu debaixo da cama.

Quando começou a amanhecer, a tempestade afastou-se para ser engolida pelo Mar do Norte e Amber conseguiu umas horas de sono irregular antes de ser acordada por Gerald, de bexiga cheia a arranhar a porta, a querer sair novamente. Enfiando-se no roupão, seguiu-o até lá abaixo, onde a sua parte felpuda de trás desaparecia ao sair pela portinhola de gato. Não havia sinal do avô, embora normalmente fosse madrugador e já tivesse amanhecido lá fora.

Empurrando os pés para dentro de um par de galochas demasiado grandes do avô que tinha encontrado ao lado da porta traseira, Amber saiu para a rua. O ar estava mais fresco, limpo e ela inspirou, desfrutando da frescura fria nos pulmões, com o cheiro a terra húmida e à vegetação molhada fustigada na noite anterior. A menta, o cebolinho e as rosas molhadas assaltaram-lhe os sentidos enquanto saltava pelas poças pelo antigo caminho de tijolos partidos que levava à horta. Ficou satisfeita por ver que o vidro da estufa ainda estava intacto. O avô ficaria aliviado.

Os relvados estavam cheios de ramos e galhos, os restos das últimas flores de verão espalhados pela relva, mas Amber mal teve tempo de os registar, enquanto prosseguia com as pesadas botas até à razão do barulho que tinham ouvido na noite anterior. Espalhados pelo chão, na base da torre, supostamente a secção mais antiga do edifício, estavam vários pedaços de alvenaria em bruto. Olhou para a torre e não viu nada de estruturalmente errado, embora suspeitasse que o conservacionista local e os projetistas dos edifícios classificados discordassem dela. O seu trabalho de arquivo teria de entrar em pausa enquanto resolvia aquela questão.

Reconstituiu os seus passos lamacentos até ao interior e começou a fazer chamadas telefónicas para saber quando é que a eletricidade seria restaurada e averiguando qual o protocolo correto a tomar relativamente aos danos na torre.

Quando o avô chegou à cozinha já passava das nove horas e Amber tinha organizado tudo o que podia, embora por essa altura estivesse desesperada por uma bebida quente e uma torrada.

— Não somos só nós que ficámos sem eletricidade — relatou. — Há cabos caídos daqui até ao Downham Market. Podemos ficar sem energia o dia todo, mas eles estão a tratar disso.

— Então não há televisão para mim hoje. — Fez uma cara desanimada enquanto se deixava cair numa cadeira à mesa. — Mas se foram só esses os danos que sofremos, não nos podemos queixar.

— Na verdade, não foram só esses — advertiu ela, explicando-lhe a alvenaria que tinha encontrado na base da torre. — Não consigo ver de onde veio, mas liguei às pessoas dos edifícios classificados da câmara para se arranjar um construtor e vêm cá ver. Se as estradas estiverem desimpedidas, devem vir esta tarde, mas quando falei com eles, não sabiam se havia árvores caídas por aqui.

* * *

Amber ficou encantada quando, pouco antes do almoço, as luzes tremeluziram e depois voltaram a acender-se. O avô e ela aconchegavam-se com sanduíches de bacon e uma segunda chávena de chá quando uma batida na porta da frente anunciou que os funcionários da câmara tinham chegado para inspecionar a torre.

— Tenho de admitir que não estava à espera de que viessem tão cedo — disse-lhes Amber enquanto os levava pelo exterior da casa. — Se puderem, talvez, sugerir um construtor, eu ligo-lhe para vir dar uma vista de olhos. — Foi claramente a coisa errada a dizer. O mais velho dos dois homens parou no caminho, fazendo com que o assistente mais novo quase esbarrasse contra ele.

— Senhora Morton — começou numa voz deliberadamente pausada, como se estivesse a falar com uma criança de cinco anos —, este edifício está classificado como de segundo grau, pouco menos do que um monumento nacional. Pode ser a casa do seu avô, mas também faz parte da História desta nação, e como tal, deve usar um restaurador de edifícios históricos especializado e não um velho caubói qualquer que encontre no Google.

Amber cerrou os dentes enquanto tentava pensar numa resposta que não fosse tão condescendente como a forma como ele estava a falar com ela. O funcionário mais novo parecia claramente envergonhado e olhava em redor do jardim sem cruzar o olhar com ela.

— Estou bem ciente da História e proveniência da minha casa de família, obrigada — respondeu num tom frio e modulado —, razão pela qual vos pedi para virem cá ver os danos e para sugerirem alguém a quem possa telefonar. Não tenho qualquer intenção de procurar alguém na Internet. — Afastou-se caminhando pela relva até à torre, pisando os pedaços dos destroços ainda caídos no relvado, deixando os dois homens a seguirem-lhe os passos.

— Portanto, aqui está a alvenaria, mas não consigo perceber de onde vem. — Falou diretamente para o homem mais novo, enquanto ele e o colega retiravam monóculos dos bolsos e os usavam para examinar silenciosamente o topo da torre. Eventualmente, pigarreou e respondeu.

— Suspeito que as ameias tenham sido diretamente atingidas por um raio ontem à noite — disse-lhe. — Vejo que uma delas está partida, mas esse parece ser o menor dos seus problemas. Há uma fenda a partir do telhado com cerca de um terço do comprimento ao longo da fachada deste lado. Desce até ao caixilho da janela. Precisa que vejam aquilo urgentemente.

— Então, pode sugerir alguém que possa dar uma olhadela?

— Vamos deixar-lhe uma lista de empreiteiros aprovados. Terão de colocar primeiro o andaime para poderem ver bem. Não vai ser barato. — Tinha sido o homem mais velho a falar e quase com satisfação. A vontade que Amber tinha de lhe dar uma bofetada aumentou. Fechou as mãos em punhos.

— Sem problema. Haverá seguro para cobrir os gastos — respondeu airosamente enquanto esperava fervorosamente que a sua suposição estivesse certa.

No espaço de dois dias, Kenny Clarke, um especialista em restauração que trabalhava juntamente com o filho Pete, chegou com uma carrinha carregada de andaimes. Ficaram empilhados na rua durante três dias enquanto eles, e o que parecia ser uma dúzia de trabalhadores, bateram e rebateram, assobiaram, riram-se e gritaram enquanto erguiam lentamente uma jaula de metal enorme à volta da torre. Amber tentou esconder-se no escritório, tendo percebido no primeiro dia que, se fosse vista na cozinha, alguém apareceria na porta das traseiras com o seu tabuleiro de canecas e um sorriso esperançoso. Normalmente era Pete, que tinha uns olhos azuis intensos que brilhavam de cada vez que sorria. Não eram precisos prémios para adivinhar porque é que os outros trabalhadores o enviavam sempre para pedir as chávenas de chá, embora quando tentasse envolvê-lo em conversa, descobrisse que, por detrás da sua robusta boa aparência, era muito tímido.

Agora, sentada em frente ao portátil, com um monte de romances policiais gastos e empoeirados dos anos cinquenta ao seu lado, não se conseguia concentrar. A divisão parecia estranha, no entanto, não conseguia apontar o que estava diferente. Tanto quanto podia ver, nenhum dos móveis tinha sido movido, e dada a profundidade do pó que cobria tudo, seria fácil de detetar se alguma das decorações tivesse sido alterada. De facto, havia algo de estranho pela casa, e o que quer que fosse, conseguia senti-lo mais fortemente na biblioteca, na base da torre. Com a luz fraca das pequenas janelas agora ainda mais obscurecidas pela miríade dos postes dos andaimes, a divisão parecia estranha, inquieta. Como se não estivesse contente com o trabalho a decorrer no exterior, o que era uma noção ridícula, disse para si. No entanto, a atmosfera tinha sido perturbada e por vezes tinha a certeza de que alguém a observava, embora uma rápida verificação à sala provasse o que ela já sabia, que estava sozinha.

Poucas horas após os dois homens terem iniciado as suas investigações, Kenny apareceu na porta das traseiras com um pequeno pacote a perguntar se podia falar com ela e com o avô. A sua jovialidade habitual tinha-o abandonado e, depois de o ter convidado a entrar na cozinha e de lhe ter oferecido uma cadeira à mesa, foi à procura do avô.

— É muito pior do que eu conseguia ver do chão — começou assim que todos se sentaram com mais uma chávena de chá. — Há algum trabalho estrutural de fundo que precisa de ser empreendido. A fenda que avistámos é maior do que eu inicialmente pensava e continuará a abrir pela parede da torre até que toda a esquina se desfaça e se venha a desmoronar. O caixilho da janela está tão solto que tivemos de o remover antes que caísse e todo aquele vidro antigo se partisse. Pete encontrou isto no parapeito da janela. — Pôs o pacote que trazia em cima da mesa diante de Amber.

Mesmo antes de lhe pegar, ela sabia ser algo especial e passou-lhe um formigueiro acentuado ao longo dos braços, fazendo-lhe os pelos eriçarem-se. Era um pequeno bloco retangular, grosseiramente embrulhado num pedaço de linho castanho, bordado e desfiado nas pontas. Estava envolto num cheiro a mofo, com um toque a especiarias e incenso, lembrando instantaneamente Amber da sua casa e de Jonathan e da antiga igreja vizinha. Quando lhe pegou, conseguiu sentir o ar à sua volta a arrepiar-se e distorcer-se por um instante. Deslizando-o para o colo, tentou ouvir a conversa entre os outros dois. O que quer que estivesse contido no velho pedaço de pano tinha-lhe despertado o interesse, mas queria olhar para ele quando estivesse sozinha.

Após mais discussões sobre o trabalho necessário, e de despachar Kenny de volta para o exterior com mais chá e um pouco de bolo de chocolate para ele e Pete, Amber foi até ao escritório a segurar o pacote firmemente contra o peito. Pousando-o sobre a secretária, levantou gentilmente o embrulho de linho, agora castanho, com manchas escuras e amarelado pelo tempo. Quando começou a desembrulhá-lo, os seus sentidos foram alertados para o cheiro pungente e evocativo a livros decrépitos e a ervas amargas que a invadiram, fazendo-a fechar os olhos por um instante. Infiltrou-se na divisão como um espírito, como se estivesse ali, mas não estivesse.

O ar perfumado lembrou-lhe momentaneamente de Jonathan e da sua igreja. Da sua ordenação e das vozes agudas dos meninos de coro enquanto cantavam Ubi Caritas, as palavras a rodarem pelo teto abobadado em veneração, enquanto o seu marido, nas suas vestes negras, se estendia no chão que vibrava com as notas profundas e poderosas do órgão. A luz colorida que entrava pelos vitrais brilhava através do fumo do incenso, criando um arco-íris enevoado. Ela nunca tinha compreendido a sua paixão intensa pela teologia e a sólida crença na fé, mas agora desejava, mais do que tudo, ter também algo sólido a que se agarrar e que pudesse salvá-la. Fechou os olhos por um momento, deixando a ténue fragrância assentar sobre ela. Era sustentada por um toque acentuado, quase metálico, de uma especiaria pungente que não conseguia identificar.

Amber virou o tecido nas mãos, examinando o bordado pesado. Parecia antigo. Desembrulhando-o cuidadosamente, retirou-o do objeto que cobria. Inspirou com força, apercebendo-se com choque do que estava a segurar. Era um livro minúsculo de orações encadernado em pele, com uma capa espessa que encerrava páginas finas.

Dentro da capa, rodeada de iluminuras coloridas, requintadas ilustrações religiosas ainda tão vivas como no dia em que foram concluídas, e escrito num inglês medieval estilizado que fez Amber franzir os olhos, lia-se:

Sir Greville Richard Lutton, nascido em junho de 1508

Eleanor Lutton, nascida a 29 de novembro no ano de Nosso Senhor de 1520

Por baixo, em veia semelhante e com decoração, estava escrito:

Jane Elizabeth Lutton nascida a 7 de agosto de 1534

Henry Greville Lutton nascido a 15 de maio de 1539

Uma entrada adicional, menos ilustrada dizia apenas:

Thomas Lutton julho de 1539

Por baixo da entrada de Thomas, lia-se:

Mary, em segurança nos braços de Nosso Senhor, 17 de novembro de 1541

Mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa

Engoliu em seco. Parecia que Mary, tal como a sua própria filha, a sua minúscula Saffron, não tinha sobrevivido à nascença. A pior experiência por que alguma mãe ou pai poderia passar. Uma dor inscrita no seu coração para sempre. E porque é que a autora dessas palavras tinha acrescentado Mea culpa? Como é que poderia alguma vez pensar que a culpa era sua? Embora Amber soubesse exatamente como é que era essa culpa que tudo consumia. Em frente ao frontispício, aquela primeira página com a lista de nascimentos, havia outra coisa escrita em latim, mas rabiscada desordenadamente como se tivesse sido escrita com rapidez, sem nenhuma da arte que decorava a outra página. Os olhos de Amber fixaram-se na primeira linha que, devido à sua profissão e para sua satisfação, foi capaz de traduzir.

infans filia sub pedibus nostris requiescit

«Uma filha bebé jaz debaixo dos nossos pés»

O que significava a inscrição? Era um epitáfio para Mary? Conseguia sentir o coração a bater com mais força. Era como se o livro a tivesse encontrado, como se tivesse estado à espera dela na torre para que se unisse a ele. Ela e Eleanor, a proprietária original há centenas de anos, tinham uma ligação pela mais dolorosa das razões, duas mães de luto. As suas suspeitas foram confirmadas: aquele livro era definitivamente muito antigo. Teria estado sempre ali em Saffron Hall?

Embora a casa fosse uma fração do tamanho que outrora teve, ela sabia pelos registos e pesquisas já feitas que nos tempos medievais tinha sido um castelo de tamanho considerável. Um livro de horas, um pequeno livro pessoal de orações como aquele, escrito à mão e não impresso, era provavelmente datado do século XV, talvez até anterior. Deve ter sido muito especial para Eleanor. Que achado. O ar à sua volta crepitou e por um instante pensou ter ouvido um sussurro enquanto o tecido do edifício suspirou e se mexeu ligeiramente, quase em antecipação. Estava desesperada para decifrar o resto da passagem em latim, para descobrir se se referia a Mary.

Os segredos de Saffron Hall

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