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Capítulo Dois

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Do seu quarto, Eleanor conseguia ouvir a agitação frenética no pátio abaixo, com homens a gritar aos moços de estrebaria e aos servos, em conjunto com o bater impaciente dos cascos dos cavalos contra a calçada. A animada comitiva que acabara de chegar parecia enorme. Ninguém na casa estava habituado àquele número de convidados e ao barulho que provocavam, Eleanor incluída.

Apesar das suas reservas, sabia o que ditava o protocolo. O seu querido pai tinha-lhe incutido boas maneiras desde tenra idade, pelo que se preparou para descer as escadas e cumprimentar o primo William, agora o proprietário da sua casa. Parecia ter chegado não só com a família, mas também com muitas outras pessoas.

Quando chegou ao cimo da escada de pedra acompanhada por Joan, a sua dama de companhia e melhor amiga, o salão nobre estava cheio de gente, com o fedor da roupa de lã húmida a subir e a fazer-lhe enrugar o nariz. Os seus olhos pairaram sobre eles para verificar qual dos muitos cavalheiros, a maioria dos quais ainda com as grossas capas de cavaleiro vestidas, era o primo. Ao observar o moço da cozinha a apressar-se de um lado para o outro a oferecer canecas de cerveja, o seu olhar prendeu-se num par de olhos claros e cruéis, que se estreitaram e fixaram nos dela quando se cruzaram. A mulher vestia um manto de viagem de veludo verde com muitos bordados e estava ao lado de um homem pequeno e robusto. Eleanor olhou para Joan e ambas ergueram as sobrancelhas. Joan sorriu e fez-lhe um pequeno aceno de encorajamento antes de a deixar e regressar ao quarto. Precisava de fazer aquilo sozinha.

Eleanor fez o seu caminho pelo meio das pessoas que se acotovelavam e mal reparavam na sua forma discreta, até acabar por se encontrar diante do casal que tinha visto da galeria acima. De perto, William era pouco mais alto do que o seu próprio metro e sessenta de altura, com um corpo rotundo encimado por um rosto rosado profusamente suado. Fazendo uma vénia aos dois, saudou-os.

— Meu senhor, minha senhora, bem-vindos a Ixworth. Espero que sejais muito felizes na vossa nova casa.

— Prima Eleanor, como é encantador conhecê-la. — O que lhe faltava em altura, compensava no volume da voz. Eleanor estremeceu ligeiramente quando uma rajada de mau hálito a cerveja lhe assaltou as narinas. Esta é a minha esposa, Lady Margaret.

Eleanor repetiu a vénia de olhar baixo, mas assim que se voltou a endireitar, fitou os estilhaços penetrantes que lhe queimavam os olhos. Porque é que aquela mulher a odiava tanto? A sua animosidade escorria-lhe de todos os poros do seu rosto bexigoso. As suas roupas e peles luxuosas e a fila de pérolas cosidas ao seu capuz francês da moda não conseguiam diminuir a devastação da sua pele. Aquelas pessoas estavam a mudar-se para a sua maravilhosa casa, tirando-lhe tudo o que o seu pai possuía, porque William era o seu herdeiro e Eleanor apenas uma rapariga que muito em breve poderia ficar sem casa ou ser despachada para um convento. Margaret deveria estar a dançar pela sala em deleite, em vez de parecer que se podia estilhaçar num milhão de pedaços a qualquer momento.

— O nosso querido filho, Robert, chegará dentro de alguns dias — continuou William. — Tem apenas um ano e está com uma febre ligeira, pelo que virá de Richmond quando estiver bem, tendo sido aqui instalado um berçário para ele. Viemos diretamente da corte e naturalmente lamentamos não termos conseguido chegar a tempo do funeral do seu pai.

Não soava a alguém com muitos remorsos e, por instantes, passaram-lhe pela visão uma série de imagens da procissão fúnebre escassa atrás do caixão do seu pai enquanto fazia o caminho da casa que amava para a capela onde foi enterrado ao lado da mãe.

— Sir William fará muita falta ao rei — informou-a Margaret — e não consigo imaginar o que faremos nesta região selvagem abandonada por Deus. — Tinha o nariz comprido enrugado e Eleanor começou a aperceber-se porque é que estava com um ar tão fora de si. Mordeu-se para não replicar que eram mais do que bem-vindos a regressar à corte porque não os queria em sua casa. Só que já não era sua. De repente, não conseguia suportar mais a multidão, o calor opressivo e o fedor a corpos por lavar nem mais um instante.

— Por favor, deem-me licença — murmurou antes de se apressar a passar pela massa de gente em direção à porta.

Uma vez lá fora, parou por um momento no ar húmido mais fresco, a inspirar em grandes golfadas. Estava habituada a dezassete anos de isolamento e paz. Como é que ia viver numa casa cheia de barulho e clamor o dia inteiro? Era insuportável.

Olhando através do pasto, os olhos ergueram-se em direção ao arenito creme pálido do muro do priorado que se erguia do terreno pantanoso que rodeava a sua casa. Sob a autoridade do muito maior Priorado de Thetford, aquela era uma instituição mais pequena e autossuficiente, onde os monges tinham, na sua maioria, os próprios códigos e leis. Como sempre, oferecia-lhe o refúgio que ela desejava. Sem pensar duas vezes, juntou e levantou as saias e correu de pés a voar pelo chão na sua direção, através das ervas altas à altura da cintura ao longo do caminho bem trilhado.

Entrando pelo portão de carvalho gasto nos jardins do priorado, Eleanor soltou lentamente a respiração, vendo-a formar-se em vapor à sua frente. Ali estava a salvo. O jardim vazio diante dela encheu-lhe o coração de calma. As árvores de fruto e as filas de ervas e vegetais imaculadamente cultivados pelos monges eram um conforto. Apesar da hora tardia, os andorinhões continuavam a pairar sobre a sua cabeça para apanhar insetos, e um par de tentilhões discutia em voz alta num arbusto frutífero por perto. O que quer que acontecesse em casa, aquele pequeno canto do seu mundo era uma constante. A regularidade reconfortante dos irmãos no seu trabalho diário, o canto da capela enquanto o fluxo da oração em latim a inundava e lhe limpava a alma dos pensamentos pouco caridosos que tinha tido sobre o primo.

Dobrando-se, arrancou um raminho de tomilho, enrolando as minúsculas folhas verdes entre os dedos e o polegar e cheirando o aroma pungente que libertavam. Um ligeiro restolhar perturbou-lhe os pensamentos e, ao levantar o olhar, viu o Irmão Dominic a dirigir-se a ela. Era o seu favorito de todos os irmãos, um querido amigo, e Eleanor não pôde evitar abrir um largo sorriso no rosto, com a sua inocência de criança a fervilhar dentro de si. Um sentimento que quase tinha sido extinto nos últimos meses.

— Está de visita ou a esconder-se? — perguntou o jovem monge quando chegou ao mesmo nível dela. Ele só tinha sido ordenado sacerdote no ano anterior e não era muito mais velho do que a própria Eleanor. Via nele uma alma gémea, alguém que tinha de se conformar às regras estabelecidas, contra o seu melhor julgamento. Os seus olhos, do verde mais claro que ela já tinha visto, brilhavam de forma travessa para ela sob as suas sobrancelhas erguidas, já seguro da resposta à sua pergunta.

— Claro que estou aqui de visita — respondeu ela. — Se ninguém sabe que estou aqui, é apenas uma mera e útil coincidência.

— O seu parente já chegou?

— Chegou juntamente com a esposa e uma grande comitiva de outras pessoas. O salão estava cheio. Cumprimentei-os antes de os deixar para se instalarem nos seus aposentos. Duvido que alguém sinta a minha falta durante algum tempo. Ou de todo.

— Então entre e tome uma chávena de hidromel. O prior ficará satisfeito por ter alguma companhia. Está novamente com dores. Este ar fresco e húmido não lhe convém. Fiz uma cataplasma com cravinho e poejo, mas não pareceu aliviar-lhe as dores.

— Poderia acrescentar um pouco de matricária? Ou óleo de bagas de loureiro, se tiver algum? — sugeriu ela.

— Acho que temos. É uma boa ideia, obrigado. Vou já ver.

Eleanor encontrou o prior, o Padre Gregory, no seu solário privado. Dali, o som do canto simples, o canto melódico profundo dos salmos que ondulava e balançava como árvores ao vento, ouvia-se mais alto, fazendo vibrar a pedra por baixo dos seus chinelos finos. Ele passou-lhe uma taça de barro e ela bebeu o vinho de mel, sentindo o seu calor a invadi-la por dentro.

Empoleirando-se na beira de um banco, fechou os olhos enquanto a paz e a serenidade do edifício a invadiu. Visitava o priorado com o pai quase diariamente desde que tinha memória. E agora era o seu refúgio, um lugar onde o suave apelo da rotina nunca variava. Tudo em redor lhe dizia que a mudança estava a chegar, depenando-lhe a roupa, puxando-a através dos sons dos cascos dos cavalos e dos gritos de homens estranhos. As notícias de Londres tornavam-se mais preocupantes, de que o rei estava a fechar muitos conventos e mosteiros e a ameaçar fazer desaparecer a vida outrora ordenada que conhecia. O que é que o futuro reservaria aos seus amigos? Uma pontada de medo e premonição rastejou-lhe pela coluna.

— Disseram-me que o seu primo chegou? — acabou o prior por perguntar.

— Chegou — respondeu ela, distraída dos pensamentos explicando a comitiva de pessoas que o acompanhavam.

— Talvez seja melhor não o antagonizar — recordou-lhe o Prior Gregory, deixando o resto da frase por dizer. Ela precisava de se manter do lado direito do seu primo: a sua situação era precária e ele era o dono do teto sobre a sua cabeça. Eleanor franziu a testa e acenou com a cabeça. Percebia o que era esperado de si.

Ao olhar para fora da janela, percebeu que as sombras se começavam a alongar. Um ronco suave do Prior Gregory alertou-a para o facto de ter permanecido demasiado tempo e esgueirou-se pela porta para a Capela da Nossa Senhora, onde mergulhou a ponta dos dedos na água benta e fez o sinal da cruz antes de se ajoelhar ao fundo na escuridão. Fechando os olhos, murmurou as vésperas, as familiares orações da noite, enquanto o canto profundo e simples continuava como pano de fundo do seu murmúrio. A luz trémula das velas atirava sombras ondulantes dos irmãos encapuzados através das paredes rugosas e do teto abobadado. Eleanor levantou a cabeça por um momento, deixando os sons da sua infância infiltrarem-se no seu corpo. Estava a equilibrar-se na cúspide de uma nova vida, com tudo o que lhe era familiar prestes a desaparecer.

Levantando-se da posição de joelhos, saiu pela porta voltando para o prado onde o crepúsculo se instalava. Não era sensato sair depois do anoitecer, especialmente quando a casa estava cheia de estranhos. Não tinha qualquer desejo de se encontrar com nenhum deles fora das paredes protetoras da casa.

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