Читать книгу Os segredos de Saffron Hall - Clare Marchant - Страница 7
Capítulo Um
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— Queres que ajude a carregar alguma coisa? — O avô encostou-se à porta do escritório com uma caneca de chá numa mão e um monte de bolachas com creme na outra.
Amber levantou o olhar da caixa empoeirada que estava a esvaziar, empilhando o conteúdo à frente da secretária que rapidamente ficava sem espaço. Tinha o rosto pálido e magro atormentado. As sombras profundas quais nódoas negras debaixo dos olhos refletiam as horas que permanecia acordada à noite, enquanto todos em redor dormiam.
— Avô, não consegues levantá-las. Nem penses nisso! — advertiu-o. Provavelmente as bolachas eram a coisa mais pesada que conseguia atualmente carregar.
— Estás com um ar demasiado pálido. Devias comer mais — comentou.
Amber mergulhou de novo a cabeça na caixa que estava a esvaziar e revirou os olhos. — Estou sempre desta cor. Fica bem com o cabelo ruivo. — Os pais não tinham feito muito uso da imaginação quando lhe deram o nome Amber. Levantando-se, colocou um punhado de velhos guias de Londres em cima de uma pilha periclitante de cópias quase idênticas datadas dos anos 50. — A sério? — Apontou para os guias e ergueu as sobrancelhas. — Estavas a pensar em obter a licença de taxista? — Fez-lhe um sorriso irónico.
Foi a vez de o avô revirar os olhos.
— Não mudes de assunto — disse-lhe, franzindo o sobrolho por debaixo das suas sobrancelhas demasiado grossas, agora quase brancas, mas ainda com vestígios de uma ligeira coloração ruiva.
— Então, preparei uma folha de cálculo para catalogar tudo — continuou ela, como se ele não tivesse falado — e estou a anotar a localização dos livros em casa para que os possas encontrar mais tarde quando decidires o que fazer com eles.
— Isso soa muito eficiente.
— Foi o que combinámos — relembrou-lhe. — As minhas capacidades de arquivista em troca de cama e comida. — E um lugar onde me esconder, deixou ela por dizer. — É bom que fique cá um ano porque desconfio que vou demorar todo esse tempo a registar os teus livros todos. Há milhares deles. Sabia da biblioteca, claro, mas não fazia ideia de que tinhas enchido o sótão com sabe-se lá o quê.
— Bom, é o problema de se ser alfarrabista — defendeu-se ele. — Às vezes, nos leilões, tem de se comprar um lote inteiro de livros quando só se quer um, de facto. Imagino que tudo o que esteja no sótão seja lixo, mas primeiro precisa de ser verificado.
— Hum, lixo é muito provavelmente a palavra certa — comentou Amber, acrescentando mais dois guias à pilha e equilibrando uma cópia esfarrapada d’ O colégio das quatro torres em cima de alguns anuários Jackie. Teve de se controlar para não folhear alguns dos livros que encontrara ou a tarefa gigantesca nunca acabaria. Ao menos havia muito material de leitura para as noites longas e solitárias. Para as horas negras em que era preferível não adormecer, porque depois tinha de acordar e lembrar-se novamente de tudo.
O avô mergulhou uma das bolachas no chá e tentou virar a metade ensopada para a boca. Atualmente, as suas reações não eram tão rápidas como dantes e ouviu-o praguejar entredentes enquanto a bolacha caía de novo no chá, afundando-se para fora de vista. O AVC que o tinha deixado com um coxear impercetível e um ligeiro arrastar das palavras quando estava cansado, tinha feito estragos no braço esquerdo, deixando-o enfraquecido e maioritariamente inútil. E ser esquerdino tornava a deficiência ainda mais acutilante. Depois de uma vida inteira de raciocínio rápido e reações relâmpago, percebia a sua frustração diária quando o novo corpo que habitava lhe falhava.
— E como estás tu? — Hesitava sempre em perguntar, mas ela apagava-se mais a cada dia. As sombras escureciam-lhe o rosto e ele conseguia sem dúvida ver-lhe as veias azuis-claras a cruzarem a testa sempre que ela empurrava as madeixas do seu cabelo curto e fino para trás.
— Ah, estou bem, sabes. — Sabia exatamente ao que ele se referia, mas não estava pronta para falar sobre isso. Ainda não. Sorriu-lhe, embora o estremecimento do canto da boca lhe tenha desmentido a resposta.
— Posso ser velho, mas não sou estúpido — respondeu ele num tom um pouco ríspido demais. — Para além de estares magra como um palito, estás com um ar deslavado. Devias comer comida como deve ser, em vez de só sopa, torradas ou cereais. Ia ajudar, sabes? — A sua boca contorceu-se e ergueu as sobrancelhas. Os olhos enrugaram-se ligeiramente, um pequeno reconhecimento das suas palavras duras. — E sempre que entro na cozinha, encontro chávenas de chá que fizeste, mas não bebeste. O que é que se passa, afinal?
— Não ando a dormir bem. — Encolheu os ombros. — Fazer chá reconforta-me. É uma pequena rotina que posso fazer sem pensar para me ajudar a limpar a cabeça. «Às vezes, mantém os demónios à distância, nem que seja só por uns minutos», refletiu ela em silêncio. — Para ser sincera, não me lembro de os meus hábitos alimentares fazerem parte do nosso acordo. Estou aqui para ter alguma paz e solidão, mas sem chatices, obrigada. — Avançou para outra caixa e começou a atirar o conteúdo para o último canto livre da secretária. Levantou-se uma densa camada de pó cinzento no ar, com uma nuvem de partículas minúsculas de poeira a efervescerem de excitação por terem sido libertadas, dançando à luz fraca do sol que se esforçava por passar pelas janelas imundas. Amber suspeitava que nunca tinham sido limpas nas décadas desde que a avó tinha morrido.
Depois de desdobrar a caixa agora vazia com agressividade a mais, atirou-a para um canto da sala para cima da pequena montanha de cartão igualmente maltratado. O avô observava em silêncio enquanto ela puxava mais uma para si e arrancava a parte de cima, levantando uma mão de cheia de livros e empilhando-os.
— Achei que estares aqui e teres algo com que te distrair… das coisas fosse arrebitar-te, mas ainda não me parece que esteja a acontecer. Talvez… — Ele levantou ligeiramente a mão quando ela abriu a boca para interromper — …estar aqui num local tão remoto não tenha sido boa ideia. Talvez se estivesses com os teus pais, se não queres estar com o Jonathan, fosse melhor para ti? Mais gentil para a tua alma? Às vezes o isolamento em alturas complicadas não é solução.
As sobrancelhas de Amber dispararam até à linha de cabelo.
— Não brinques comigo. Porque é que te escondeste neste casarão velho depois de a avó morrer para gerires o teu negócio à porta fechada? Se bem te lembras, deixaste a mãe com a família da avó e depois fugiste para te vires enterrar no fim do mundo. Por isso, desculpa-me se sigo as tuas passadas. Chama-lhe genética, se quiseres.
Atirou-se para a cadeira de escritório atrás da secretária fazendo-a recuar ligeiramente e tentou não ranger os dentes. A casa estava na família há gerações e fazia parte da sua essência, da sua base. Ecoava com as almas dos seus antepassados ruivos e apenas lhe pareceu natural regressar ali, quando a sua vida foi dilacerada, para se esconder do mundo. Embora amasse os pais, tinham uma relação frequentemente tensa e sentia-se mais próxima do avô. Precisava de estar com ele e na casa naquele momento. Por isso, a última pessoa que esperava que questionasse a sua decisão era o próprio avô.
* * *
Quando Amber se sentou, o avô percebeu que tinha construído uma muralha de livros em cima da secretária em seu redor e que agora estava completamente escondida. Uma barricada atrás da qual se escondia mais uma vez.
— Só porque o fiz, não quer dizer que fosse correto — comentou ele para o vazio onde ela tinha estado. Voltando-se com cuidado, deixando as pernas acompanharem momentaneamente o cérebro, voltou à sala de estar e à corrida das duas e meia em Kempton Park.
Quando teve a certeza de que ele tinha saído da divisão, Amber voltou a pôr-se em pé. Limpou as já familiares lágrimas que tinham começado a cair com a bainha da t-shirt, inclinando o rosto para cima para tentar pará-las, mas era um gesto inútil. Os sulcos estavam-lhe quase permanentemente gravados no rosto, de tantas vezes terem serpenteado até abaixo, para lhe pingarem no queixo pequeno e pontiagudo. Esperava acordar uma manhã com as linhas indelevelmente marcadas nas suas faces para sempre, como tatuagens. Uma mancha visível da sua tristeza, para mostrar ao mundo a pessoa horrível que era, um fracasso. A vida já era suficientemente difícil sem um sermão do avô, o rei das fugas, há sessenta anos escondido naquele mausoléu de casa.
Tinha apenas um ano sabático da universidade durante o qual precisava de resolver a sua vida, de alguma forma. Decidir se ela e Jonathan tinham algo que valesse a pena salvar. O pesar esmagador, agora amigo habitual, pesava-lhe nos ombros enquanto foi até à cozinha para fazer uma chávena de chá que não beberia.