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I. SERVIÇO PÚBLICO E MERCADO
ОглавлениеHistoricamente, a ideia de serviço público foi vista como impeditiva da existência de condições de livre mercado. Em alguns países, como França, Itália e vários da Iberoamérica, o serviço público não poderia ser sujeito a um regime livre de mercado por questões eminentemente jurídicas, dado que seria atividade organicamente afeta ao Estado e sujeita a um regime jurídico especial de Direito Público1. Em outros países, como Reino Unido e Alemanha, os serviços públicos foram retirados da livre iniciativa de mercado em função da utilização de um mecanismo de monopólio estatal de regulação, em que as falhas de mercado existentes em diversos serviços seriam corrigidas pela monopolização da atividade por entidades públicas.
Essa realidade perdurou por quase um século, até que, em fins dos anos de 1980, começou-se um amplo processo de revisão, destinado a analisar os benefícios e os custos da liberalização dos mercados de serviços públicos. Tal processo inicia-se no âmbito da União Europeia e rapidamente alastra-se para os países da América Latina.
O motivo propulsor desse processo de revisão decorre de dois fatores fundamentais: o esgotamento de recursos públicos para investimento na oferta e na expansão dos serviços públicos, notadamente no caso do Reino Unido e dos países latinos (tanto europeus, quanto americanos) e os benefícios que poderiam advir da inserção de concorrência nos mercados monopólicos dos serviços públicos, sobretudo em função da necessidade de busca por maior eficiência, obrigatoriedade de redução de custos, necessidade de melhoria na qualidade etc.
Assim é que, a partir da década de 1990, inicia-se um amplo processo de revisão do conceito e do regime jurídico dos serviços públicos, colocando-se em questionamento se o conceito de atividade estatal, sujeita a um regime jurídico específico e afastador da livre iniciativa privada permaneceria existindo. Em alguns casos mais extremos, chegou-se até mesmo a cogitar a morte do serviço público, por meio da sua substituição por outros mecanismos, como o serviço econômicos de interesse geral2.
Inobstante, o que, de facto, ocorreu não foi a morte do serviço público, mas sua simples revisão. As atividades que eram consideradas, de fato e/ou de direito, monopólios estatais passaram a ser vistas como atividades econômicas com algumas especificidades, passíveis, pois, de exploração em regime de mercado, com a incidência do maior grau possível de concorrência, a fim de melhorar sua oferta para a coletividade.3
A regra que antes era o monopólio passou a ser a concorrência. Ressalvadas hipóteses especiais, em que a concorrência pudesse ser prejudicial ao alcance da finalidade da atividade, deve o serviço ser prestado em regime de concorrência. Passa a haver um sobrevalor à ideia de proporcionalidade, a partir da qual somente se pode restringir a livre iniciativa e a livre concorrência na exata medida do proporcional e do necessário para se alcançar uma finalidade de interesse coletivo consistente na oferta da atividade4.
Se na União Europeia essa transformação deu-se a partir do conteúdo do antigo artigo 86 (atual artigo 101) do Tratado de Constituição da União Europeia, no Brasil houve que se dar a partir da aplicação, aos serviços públicos, das determinações expressas contidas nos artigos 170 (caput e inciso IV), 173 (§ 4º) e 177, os quais impõem à toda evidência que a regra é a concorrência em todas as atividades econômicas5.
Não obstante a necessidade de abertura das atividades para a concorrência e o livre mercado, nunca se pôde descurar que muitas das atividades consideradas serviços públicos têm alguma falha de mercado, decorrente, principalmente, da existência de monopólios naturais6 em alguma etapa de sua cadeia produtiva. Por conseguinte, a abertura das atividades para o livre mercado e a livre concorrência não poderia se dar de forma completa, sem qualquer forma de intervenção do Estado. A regulação antes desempenhada por meio do monopólio deveria passar a ser realizada por outras formas de intervenção do Estado no mercado, voltada a mitigar os efeitos de tais falhas de mercado.
Nesse passo, a abertura dos serviços públicos a um regime aberto de mercado pressupôs duas ações fundamentais: (i) a redução das barreiras de entrada no mercado e (ii) uma ação estatal corretiva, pela via normativa e comportamental, destinada a mitigar os efeitos negativos dos monopólios naturais existentes.
No que se refere à primeira ação, houve uma profunda revisão dos conceitos de reserva originária, monopólio estatal e demais correlatos, admitindo-se, aprioristicamente, que a atividade poderia comportar mais do que um agente prestador, agindo em regime de concorrência – ressalvadas, claro, as hipóteses em que a concorrência possa ser perniciosa para o alcance das finalidades da atividade. Via de consequência, independentemente de o agente prestador do serviço público ser estatal ou privado, determinou-se a possibilidade de ingresso no mercado de outros agentes competidores.
Isso implicou uma quebra de paradigma na concepção de que os mercados de serviço público somente eram alcançáveis pelo Estado ou sua entidade prestadora, ou por concessionários que recebiam um título habilitante exclusivo e excludente para prestar, em nome e lugar do Estado, o respectivo serviço (ou seja, a concessão). Ou seja, foi necessário revisar o conceito de título habilitante relacionado à exploração de uma atividade considerada serviço público.
Na estrutura antiga da prestação do serviço público, essa atividade era desempenhada exclusivamente pelo Estado, em processo de descentralização administrativa7, ou por um particular que recebia um título habilitante exclusivo e excludente chamado concessão. Ou seja, ou a estrutura de monopólio era atribuída ao próprio Estado ou era transferida in totum para um particular.
A partir do momento em que se deve assegurar uma pluralidade de prestadores da atividade em regime de concorrência, é necessário revisar os mecanismos e os efeitos dos títulos habilitantes. E isso pode se dar de várias formas diferentes, variáveis conforme a natureza da atividade, as condições do mercado e as finalidades públicas a serem alcançadas8.
Admitindo-se que a concorrência seja viável e consentânea com o alcance das finalidades públicas do serviço, uma primeira alternativa é transformar a concessão em um título habilitante não exclusivo e não excludente. Ou seja, a concorrência seria alcançada por meio da outorga de diversas concessões a diversos agentes, todos atuantes, pois, sob um mesmo e único regime jurídico. Por exemplo, no Brasil, esse é caso do serviço público de transporte aéreo de passageiro, no qual todos os agentes prestadores encontram-se sujeitos a um único e mesmo regime de concessão de serviço público.
Um segundo cenário possível é aquele em que apenas o livre mercado e a livre concorrência são suficientes para garantir o alcance das finalidades públicas subjacentes ao serviço público, sendo prescindíveis quaisquer títulos habilitantes. Neste cenário, simplesmente retira-se a necessidade de qualquer título habilitante e se transforma a atividade em algo livremente acessível por qualquer interessado. Opera-se uma profunda desregulação do mercado. Embora não seja um exemplo propriamente atual, pode-se mencionar, no caso brasileiro, a exploração de frigoríficos e abatedouros, que eram serviços públicos com grandes restrições de entrada e simplesmente deixaram de sê-lo.
Um terceiro cenário possível e pouco menos extremo que o anterior, é o caso em que se abandona o regime de serviço público e o substitui por um mecanismo de concorrência regulada, em que há certo nível de controle do ingresso dos agentes no mercado, bem como há certo nível de regulação de sua ação, mas sem que haja as obrigações inerentes ao serviço público9. No caso brasileiro, pode-se citar como exemplo o setor de geração de energia elétrica, que não se sujeita mais à regulação de serviço público, mas que ainda se encontra sujeito a algum nível de regulação.
Por fim, o quarto cenário – e, para os fins deste trabalho, o mais importante – é aquele em que os títulos habilitantes para ingresso no mercado comportam regimes jurídicos diferentes, criando-se um sistema de assimetria regulatória10 entre os agentes prestados. Ou seja, há um ou mais prestador do serviço sujeito ao regime da concessão de serviço público, com o dever de cumprir todas as obrigações inerentes a esse serviço, ao passo que há outros agentes explorando a mesma a atividade sob regime jurídico distinto.
As hipóteses de assimetria regulatória podem contemplar dois cenários de exploração diferentes e são dotadas de grandes complexidades jurídicas e técnico-econômica.
No que concerne aos cenários de concretização da prestação de um serviço público com assimetria regulatória, há uma primeira hipótese em que existe um agente sujeito ao regime de serviço público e não há qualquer título habilitante necessário para outros agentes adentrem o mesmo mercado e lhe ofereçam concorrência. É, no Brasil, o caso dos serviços postais: há uma empresa estatal (atuante por mecanismo de descentralização administrativa) incumbida de explorar a atividade no regime de serviço público, com o dever do cumprimento de todas as obrigações inerentes ao serviço público, ao mesmo tempo em que há diversos outros agentes que desempenham a mesma atividade sem qualquer título habilitante específico. Ao mesmo tempo, há uma segunda hipótese em que há um agente sujeito ao regime de serviço público e outros agentes dotados de título habilitante distinto que lhe oferecem concorrência fora do regime de serviço público. Entre nós, é caso, por exemplo, do setor portuário, em que há os agentes concessionários e arrendatários que se sujeitam ao regime de serviço público e há agentes titulares de autorizações que não se sujeitam a referido regime.
Contudo, há enormes complexidades a serem enfrentadas, devendo-se sempre adotar a assimetria regulatória cum grano salis, eis que alguns pressupostos hão que ser sempre observados de forma a evitar distorções no mercado que evitem o alcance das obrigações inerentes ao serviço público.
Nesse passo, os elementos jurídicos e técnico-econômicos da conformação do mercado estabelecem o dever de a assimetria regulatória ser cuidadosamente concebida, eis que jamais pode predicar a existência de violações à Isonomia e jamais poderá criar cenários de concorrência desleal. Afirmo-o porque a sujeição de agentes econômicos atuantes no mesmo mercado a regimes regulatórios diferentes poderia favorecer uns em benefício de outros, causando grandes distorções.
Com o fito de evitar essas distorções, parecem-me fundamentais três ações elementares da regulação setorial, quais sejam:
Em primeiro lugar, é fundamental que somente se insira a concorrência na prestação de um serviço público na medida em que (i) seja ela um instrumento facilitador (e não inibidor) do alcance das obrigações inerentes ao serviço público e (ii) estejam os investimentos exigidos para se assegurar o cumprimento das obrigações inerentes ao serviço público devidamente amortizados, podendo haver o ingresso de novos agentes no mercado.
No que concerne à primeira afirmação, repiso o quanto já deixei claro: à luz da noção de proporcionalidade, poderá haver restrições à concorrência na prestação de determinado serviço público, a fim de se assegurar o alcance das finalidades do serviço. Isso quer dizer que a concorrência, mesmo sendo a regra, somente será cabível se for condizente com as obrigações inerentes à existência do serviço público (i.e., atendimento de determinados direitos fundamentais)11. Caso a concorrência possa prejudicar a viabilidade econômica da empresa prestadora do serviço público, deverão prevalecer as obrigações inerentes a esse serviço.
Já no que se refere à segunda afirmação, tem-se que somente é cabível a inserção de concorrência na prestação de um serviço público quando os investimentos necessários à garantia da oferta universal, módica e contínua da atividade já estiverem completamente amortizados. Isso ocorre, pois, muitas vezes (notadamente no caso das redes de suporte à prestação de um serviço público) somente o monopólio temporário pode garantir a amortização dos investimentos necessários à prestação de um serviço público12. Caso os investimentos demandados pela prestação do serviço ainda não estejam amortizados e o mercado ainda for incipiente, há que se conter temporariamente o fomento à concorrência.
Caso esse primeiro dever não seja observado, haverá a sucumbência do agente prestador do serviço público, frustrando-se as finalidades da atividade. Isso, pois ou a concorrência tornará inviável o cumprimento de obrigações muitas vezes pouco rentáveis inerentes ao serviço público, ou a concorrência inviabilizará a amortização de investimentos, permitindo-se que competidores que não realizaram esses investimentos possam se beneficiar do sacrifício do prestador do serviço.
Em segundo lugar, é fundamental que haja um contrabalanceamento entre os encargos inerentes à prestação de uma atividade em regime de serviço público e os direitos assegurados ao prestador vis-à-vis os direitos e obrigações dos agentes atuantes fora do regime de serviço público.
Como é notório, a concessão de serviço público impõe uma série de obrigações a seu agente. Contudo, há alguns benefícios também assegurados, como algumas salvaguardas atinentes ao regime remuneratório, a garantia de indenização por investimentos não amortizados e a garantia de preservação do equilíbrio econômico-financeiro. Assim, a concessão de serviço público deve contemplar um equilíbrio entre os direitos e os deveres do concessionário.
Em sentido contrário, os concorrentes do concessionário que se encontram fora do regime de serviço público não dispõem dos mesmos direitos inerentes à concessão de serviço público. Com isso, se, por um lado, estão isentos do cumprimento das obrigações de serviço público, por outro estão desprotegidos quanto aos mecanismos inerentes à relação jurídica da concessão. E essa assimetria deve trazer equilíbrio à relação, eis que o concessionário é mais onerado ao mesmo tempo em que é mais protegido; enquanto seus competidores são menos onerados, mas são mais expostos aos riscos da atividade.
Portanto, a estruturação de um mercado de serviço público com assimetria regulatória deverá ser calibrada para assegurar que: (i) o concessionário disporá de meios de competição, como a liberdade tarifária13; (ii) as obrigações inerentes à prestação do serviço público sejam compatíveis com um ambiente de competição; e (iii) haja direitos assegurados ao concessionário que lhe confiram garantias contrabalanceadas à liberdade de ação dos agentes competidores (i.e., novamente: se, por um lado, há o ônus de certas obrigações não extensível aos competidores, há garantias igualmente não extensíveis que tornam o sistema global de alocação de riscos compatível com a isonomia dos agentes).
Em terceiro e último lugar, é fundamental que a concorrência com assimetria de regimes seja uma condição ab initio de mercado, seja prevista ab initio, ou seja inserida em momento de saturação e maturidade do mercado monopólico. É dizer, a concorrência com assimetria de regimes não pode ser um elemento novo que rompa com uma estrutura de mercado existente quando da outorga de uma concessão de serviço público. O imperativo da concorrência, como princípio que é, deve ser sempre sopesado a outros, como a segurança jurídica e a proteção da confiança legítima.
Por conseguinte, ou a regulação setorial nasce prevendo que há concorrência com assimetrias de regime (como no caso do setor de telecomunicações no Brasil), ou nasce prevendo que a concorrência será instaurada após certo período e depois de alcançados certos parâmetros de amortização de investimentos (como no caso do setor da distribuição de gás natural canalizado no Estado de São Paulo), ou, então e de forma muito claramente justificada, determina a implantação a posteriori da concorrência, em função da saturação e do completo amadurecimento do mercado monopólico (i.e., saturação das infraestruturas).
Nos quadrantes acima dissertados, em que a concorrência é a regra na prestação dos serviços públicos, tem-se que os mercados desses serviços apresentam uma interessante combinação de iniciativa pública com livre iniciativa privada, ainda que esta última possa ser sujeita a temperamentos determinados pela regra de proporcionalidade.
Como já tive a oportunidade de defender, a permanência dos serviços públicos no Estado contemporâneo se deve, principalmente, à necessidade de criação de mecanismos de realização de determinados direitos fundamentais, que não sejam plenamente concretizados pela simples lógica de mercado. Nessa perspectiva, o serviço público deixa de ser uma atividade privativa a exclusiva do Estado, demarcando sua existência e seu campo de atividade, e passa a ser uma obrigação jurídica imposta ao Estado, para que sejam cumpridos direitos fundamentais dos cidadãos14.
Nesse trilhar, o quanto poderá ser restrito da livre iniciativa privada – e, pois, da livre concorrência – no campo da prestação dos serviços públicos depende de um teste de proporcionalidade à luz das necessidades efetivamente verificadas para garantir as finalidades do serviço público. Isto é, somente se pode restringir a livre iniciativa privada na exata medida do proporcional para se garantir a efetiva prestação de um serviço público.
Destarte, nos campos econômicos em que o Direito houver determinado a existência de um serviço público, haverá, com maior ou menor intensidade, uma combinação entre uma iniciativa pública obrigatória e uma livre iniciativa privada.
A iniciativa pública é essencial porque, nos estritos limites do artigo 175 da Constituição Federal, o serviço público é uma obrigação estatal. Portanto, havendo a determinação de uma determinada atividade é de incumbência do Poder Público, deverá o Estado nela atuar, diretamente ou por meio de permissão ou concessão. A iniciativa pública é obrigatória e deve existir na exata medida do necessário e do suficiente para dar cumprimento ao direito fundamental subjacente.
Ao mesmo tempo, poderá haver a atuação de agentes privados, até o limite que não prejudique a realização das finalidades do serviço público. Via de consequência, remanesce a livre iniciativa privada para atuar em concorrência com o Estado (ou seu delegatário) nos campos de oferta de serviços públicos.
E essa livre iniciativa poderá ser plena, isto é, não condicionada a qualquer título habilitante conferido pelo Estado, ou poderá ser condicionada, nos casos em que um título habilitante é necessário para permitir o ingresso de agentes privados. A existência ou não da necessidade de um título habilitante dependerá da conformação de cada mercado, a possibilidade ou não de livre acesso a certos bens e instalações, a intensidade da necessidade de um controle público etc.
Ao lume do quanto exposto neste tópico, fica evidente que os serviços públicos não são, nem de longe, monopólios per se. A regra desses serviços é a prestação concorrencial, como expressamente se depreende dos artigos 170, 173 e 177 da Constituição Federal. Em determinados casos, essa concorrência se dá dentro de uma unicidade de regimes jurídicos, ao passo que, em outros casos, a concorrência dá-se com dualidade de regime, em sistema de assimetria regulatória. Em qualquer caso, o certo é que poderá haver, simultaneamente, um agente estatal na prestação de um serviço público e agentes privados atuantes no mesmo mercado, na exploração de atividades materialmente concorrentes ao serviço público.