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II. A AUTORIZAÇÃO ADMINISTRATIVA

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Dentre os institutos do Direito Administrativo, poucos sofreram tão profundas alterações como a autorização administrativa. Trata-se de um dos mais antigos e clássicos atos administrativos, prestando-se, desde há muito, para assegurar a particulares o exercício de um direito que, sem a devida autorização, não seria licitamente passível de ser exercido. É atuação administrativa localizada no campo do poder de polícia ou da polícia administrativa.

Classicamente, as autorizações encontram-se em certo debate entre a doutrina alemã e a doutrina italiana. Segundo a primeira, a autorização seria ato constitutivo, já que constituiria direito novo nos particulares de exercer uma atividade que não lhes é permitida.15 Já segundo a segunda, a autorização seria ato meramente declaratório, apenas prestante para remover limite imposto pela lei para o empreendimento de uma atividade, sem que lhe aumente, portanto, o plexo de direitos16.

Tal debate culmina em discussões muito importantes acerca do instituto da autorização, eis que versam diretamente sobre a posição jurídica do particular postulante a uma autorização, bem como acerca do caráter do ato administrativo autorizativo. Isso ocorre, pois sendo o ato constitutivo, não haveria direito subjetivo à sua obtenção e, portanto, seria sua outorga discricionária por parte da Administração. Em sentido contrário, sendo o ato meramente declaratório, haveria direito subjetivo à sua obtenção, haja vista existir posição subjetiva apta a receber a autorização administrativa pré-existente à edição do ato, portanto, seria a outorga ato vinculado, dado que não remanesceria capacidade de a Administração Pública exercer um juízo subjetivo sobre a outorga. Trata-se de situação binária em que o particular, ou preenche os requisitos e, portanto, tem direito subjetivo à autorização, ou não os preenche e, portanto, não tem tal direito subjetivo.

No Direito Administrativo brasileiro, a autorização está presente desde há muito. Cumpre o mesmo papel que no Direito Administrativo da Europa continental, qual seja, permitir que particulares exerçam atividades que sem a autorização não seriam lícitas. Desde sempre também é incluído no rol dos atos administrativos emanados no campo do poder de polícia.

Não obstante, entre nós, a autorização acabou recebendo contornos um pouco distintos daqueles tratados na doutrina europeia. Exceto pela visão de Miguel Reale, que é muito próxima daquela adotada pela doutrina italiana17, a doutrina brasileira sempre tratou a autorização como um ato essencialmente discricionário e precário, impassível, portanto, de criação de direitos subjetivos para o particular autorizatário.

Nos primórdios, a doutrina tratava da autorização como um dos atos de polícia. Este ato constituía-se como “o ato administrativo discricionário pelo qual se permitir ao particular exercer atividade que, sem o assentimento da administração, seria proibida18. Seguem posição semelhante Themístocles Brandão Cavalcanti19, Francisco Campos20 e outros.

Não obstante, a posição mais importante, que se tornou referência na teoria e na prática do Direito Administrativo, foi aquela manifestada por Hely Lopes Meirelles. O autor, em uma cuidadosa classificação dos atos administrativos, definia autorização como:

ato administrativo discricionário e precário pelo qual o Poder Público torna possível ao pretendente a realização de certa atividade, serviço ou utilização de determinados bens particulares ou públicos, de seu exclusivo ou predominante interesse, que a lei condiciona à aquiescência prévia da Administração (...)21.

Em outra manifestação, completa o autor:

na autorização, há apenas, uma aquiescência unilateral, precária e discricionária, que possibilita a atividade ou a execução do serviço, sem qualquer encargo para o autorizante e sem nenhuma garantia para o autorizatário”22.

Dada a relevância da definição apresentada pelo autor, ainda hoje presente em decisões e atos normativos da Administração Pública, importante analisar todas as suas implicações, como passarei a desenvolver.

Em primeiro lugar, é relevante notar que o autor classifica a autorização como ato necessariamente discricionário e precário, ou seja, ato que pode ou não ser outorgado, conforme juízo de conveniência a oportunidade pela Administração Pública e que, igualmente, pode ser revogado a qualquer tempo. Essa classificação tem implicações muito relevantes e significativas para a posição jurídica subjetiva do particular, eis que: (i) implica a inexistência de direito subjetivo à obtenção do ato autorizatório; (ii) atribui à Administração Pública a capacidade de avaliar, segundo as condições do caso concreto, a conveniência e a oportunidade de se outorgar uma autorização a um particular que a pleiteia; e (iii) não cria proteções à esfera jurídica do particular autorizado, eis que o ato de autorização, por sua precariedade, poderia ser revogado a qualquer tempo, sem que qualquer direito fosse garantido ao autorizatário.

Em segundo lugar, a classificação apresentada pelo célebre administrativa brasileiro extrapola a delimitação clássica do poder de polícia, como ocorria nas manifestações doutrinárias majoritárias que lhe antecedem. A razão para tanto decorre do fato de que Hely Lopes Meirelles menciona a pertinência da autorização para garantir o acesso a atividade (formulação clássica do poder de polícia) ou serviço, algo que já entraria no campo dos serviços públicos. Ou seja, o autor em discussão admite que possa haver autorização de serviços privativos da Administração Pública, extrapolando o binário tradicional de concessão/permissão.

Em terceiro lugar, o autor em análise ainda afirma que a autorização é outorgada no interesse exclusivo ou predominante do autorizado. Com isso, quer-se afirmar que as atividades autorizadas não poderiam se voltar para a satisfação de um interesse da coletividade, mas apenas um interesse do autorizado. Tal afirmação possui grande relevo para determinar o cabimento da autorização, da concessão e da permissão segundo o pensamento de Hely Lopes Meirelles – o qual, diga-se, teve enorme influência sobre os doutrinadores posteriores e sobre a prática administrativa23.

O autor ainda expressamente manifesta-se no sentido de que as atividades exploradas em regime de autorização, quando qualificadas como serviço público, teriam como traço a sequer inexistência de um regulamento de serviço, algo que seria ínsito e típico das permissões e autorizações. Nesse passo, para o autor, o elemento diferencial da autorização no campo dos serviços públicos é sua exploração segundo ordens exclusivas do ente autorizante, sem a estabilidade típica dos regulamentos, o que não assegura ao autorizatário qualquer forma de indenização ou pleito perante o autorizante24.

Em consonância com a classificação apresentada pelo autor, a concessão é cabível para contemplar a delegação não discricionária e não precária (i.e., contratual e aprazada) de um serviço público para um particular, que o presta em nome e lugar do Estado. De outro turno, a permissão seria cabível para contemplar a delegação unilateral, precária e discricionária de um serviço público a um particular, para prestação à coletividade, também em nome e lugar do Estado, o que se caracteriza pela incidência de regulamentos de serviço. Por fim, como já mencionado, a autorização prestar-se-ia para permitir a prestação de um serviço público, de forma unilateral, precária e discricionária, no interesse exclusivo ou predominante do particular, sem a existência de um regulamento de serviço25.

Ocorre, contudo, como é cediço, que a obra de Hely Lopes Meirelles foi majoritariamente escrita antes da edição da Constituição Federal de 198826, não contemplando o que determina o disposto no artigo 21, incisos XI e XII, de nossa Carta Política. Referidos dispositivos – sendo que o primeiro teve sua redação dada pela Emenda Constitucional n.° 11/98 – expressamente preveem um rol de atividades que devem ser exploradas pela União Federal, diretamente ou por meio de concessão, permissão ou autorização.

Nesse diapasão, passa a ser fundamental interpretar-se o que venham a ser esses três institutos e o que significam as competências materiais da União Federal contempladas nos dispositivos mencionados. E isso ocorre porque o texto constitucional não determinou o que venham a ser atividades lá descritas (serviços públicos ou não) e nem tampouco determinou os contornos e o cabimento dos institutos da autorização, da concessão e da permissão nos casos lá versados.

Muito embora a previsão constitucional da autorização como instrumento apto a permitir a exploração de atividades como telecomunicações, energia elétrica e transportes aéreos, terrestres e aquaviários demande, claramente, a meu ver, uma revisão da visão desse instituto do Direito Administrativo, fato é que a doutrina brasileira mais tradicional não mudou significativamente seu posicionamento após o advento da Constituição Federal de 1988.

Os exemplos mais importantes de manifestações doutrinárias apresentadas após a Carta Constitucional quanto à manutenção do significado clássico da autorização são aquelas apresentadas por Celso Antônio Bandeira de Mello e por Maria Sylvia Zanella Di Pietro.

Segundo o primeiro autor, a previsão da locução autorização nos incisos XI e XII da Constituição Federal somente pode ser interpretada de duas formas: (i) casos em que há a exploração de uma das atividades arroladas em referidos dispositivos no interesse exclusivo do particular, sem qualquer caráter público na atividade (como exemplo, o autor cita o caso em que um particular desenvolva uma atividade de telecomunicação para seu uso exclusivo); ou (ii) casos em que há, de fato, a exploração de um serviço público por meio de autorização para resolver situação emergencial até que seja adotados os procedimentos cabíveis para outorga de permissão ou autorização27.

Já para a segunda autora mencionada, a autorização mencionada no artigo 21 da Constituição Federal mantém suas características básicas do poder de polícia, isto é, atividade que, por razões de segurança pública, saúde pública, economia ou outra razão de interesse coletivo, não pode ser realizada sem uma aquiescência da Administração Pública. Ademais, as atividades autorizadas são desenvolvidas apenas no interesse exclusivo do particular, jamais podendo se falar na hipótese de prestação de serviço público por meio de autorização.

Segundo as palavras da autora:

a autorização de serviço público (da mesma forma que a autorização de uso de bem público) é dada no interesse exclusivo do particular que a obtém; ele não exerce uma atividade que vá ser usufruída por terceiros, mas apenas por ele mesmo. Vale dizer que aquela mesma atividade que, na concessão e permissão, constitui serviço público no duplo aspecto da titularidade do Estado e de prestação ao público (no interesse geral), quando se trata de autorização perde essa segunda característica porque, embora continue de titularidade da União (como decorre do artigo 21, XI e XII, da Constituição), não é prestada ao público, no interesse geral, mas no interesse restrito do próprio beneficiário da autorização28.

Exatamente em função do fato de que a autorização seria emitida no interesse exclusivo do autorizatário há, segundo a visão da autora, a expressa reafirmação de seu caráter discricionário e precário. Dado que não há uma atividade de interesse coletivo ofertada, não haveria necessidade de proteção da posição subjetiva do particular, de forma que o Poder Público poderia revogar a o ato autorizativo a qualquer tempo, em nome de juízo de conveniência e oportunidade29.

O entendimento ora descrito de Celso Antônio Bandeira de Mello e de Maria Sylvia Zanella Di Pietro é frequentemente reproduzido por outros autores brasileiros, como é o caso de José dos Santos Carvalho Filho30 e Edmir Netto de Araújo31, entre outros.

Ou seja, por meio da proposição de hipóteses de cabimento, seguem os autores, em linhas gerais, o entendimento manifestado originalmente por Hely Lopes Meirelles, apenas transpondo as considerações desse para os casos específicos do artigo 21 da Constituição Federal. E essa transposição dá-se a partir das ideias de que as atividades arroladas no dispositivo mencionado somente podem ser exploradas por meio de autorização (i) em casos que satisfaçam apenas os interesses do autorizado ou (ii) em casos extremamente excepcionais de emergências públicas. Exatamente em função desse cabimento da autorização, mantém-se o ato como discricionário e precário.

Não obstante, esse entendimento parece-me completamente equivocado e demandante de urgente revisão doutrinária – a qual, aliás, já é obra em andamento há mais de uma década. Como passarei a expor, o entendimento em debate é completamente desprendido do direito positivo, subsistindo apenas em um mundo hermético e irreal de parte da doutrina brasileira. Para fundamentar essa afirmação, passarei a expor, do ponto de vista teórico, quais os contornos jurídicos do instituto da autorização à luz do artigo 21 da Constituição Federal, partindo-se (i) do que significa a intervenção estatal nele contemplada e (ii) quais os requisitos para a autorização diante do que implica a competência da União Federal ali estampada.

No que concerne ao primeiro ponto, é necessário perquirir o que determina o Texto Constitucional acerca das competências materiais da União Federal contempladas nos incisos XI e XII do artigo 21. A largada para tanto consiste em entender (i) o que é uma competência material e (ii) quais as consequências da existência de competências materiais em campos específicos da economia.

Uma competência material significa, de forma clara, uma capacidade jurídica atribuída à União Federal de realizar determinadas ações concretas nos campos discriminados no dispositivo em testa – e não apenas ações legislativas, portanto32. Mais ainda, o rol de atividades contemplado no artigo 21 da Constituição Federal cria um conjunto de funções públicas a serem empreendidas pela União Federal, ou seja, determinadas finalidades que devem ser desempenhadas para a realização dos interesses da coletividade.

Segundo o critério de apartação de competências pelo interesse predominante adotado pelo Texto Constitucional, cada ente federativo tem a atribuição de agir conforme o interesse existente diante do caso concreto. Nessa perspectiva, cabe à União Federal atuar sempre que houver um interesse de caráter nacional (artigos 21 e 22 da Constituição Federal), ao Estado sempre que houver um interesse de caráter regional (artigo 25 da Constituição Federal) e ao Município sempre que houver um interesse de caráter local (artigo 29 da Constituição Federal)33.

Contudo, a delimitação precisa desses interesses nem sempre é completamente clara, razão pela qual o Texto Constitucional vai além do simples estabelecimento de critérios para apartação de competências. Há uma sistemática na qual as competências atribuídas à União Federal são sempre determinadas de forma expressa e em rol fechado, ao passo que as competências municipais são as estritamente locais e as estaduais são as remanescentes.

Nesse passo, o que está contido no artigo 21 da Constituição Federal nada mais é do que uma lista de temas determinados constitucionalmente como de interesse nacional, que devem ser realizados pela União Federal para a concretização das finalidades constitucionais do Estado brasileiro.

Contudo, as competências materiais atribuídas à União Federal no artigo 21 da Constituição Federal são demasiadamente amplas e diversificadas, havendo algumas que, evidentemente, somente podem caber ao Estado (como, por exemplo, a impressão de moeda, nos termos do inciso VII do artigo 21) e outras que precisam de maior delimitação interpretativa para extração de seu preciso significado.

É precisamente o que ocorre em relação aos casos das atividades inseridas nos incisos XI e XII do artigo 21 em testa. Em referidos dispositivos há a previsão expressa da função pública federal de atuação em determinados setores da economia, como telecomunicações, energia elétrica e transportes aquaviários e aéreos. Ou seja, há a atribuição de um dever jurídico de atuação da União Federal nesses setores, a fim de alcançar determinadas finalidades públicas.

A partir dessa afirmação, uma primeira ideia que viria à cabeça é a de que os incisos XI e XII do artigo 21 da Constituição Federal contemplariam, necessariamente, uma relação de serviços públicos federais, ou seja, de atividades econômicas que devem ser exploradas pelo Estado para fins de realização de determinados direitos fundamentais. Esse entendimento é esposado por parcela da doutrina34.

Por mais sentido que possa fazer extrair dos incisos XI e XII do artigo 21 da Constituição Federal um rol obrigatório de serviços públicos, não é este entendimento, a meu ver, o mais correto. O estribo de meu entendimento reside exatamente no fato de que os incisos em discussão preveem que as atividades lá descritas podem ser exploradas diretamente ou por meio de concessão, permissão ou autorização.

A inserção da autorização como um dos instrumentos de translação das atividades mencionadas nos dispositivos em análise não é mera tertúlia acadêmica. É de enorme relevo para aferição do conteúdo de referidas atividades, pois, em consonância com o disposto no artigo 175 da Constituição Federal, os serviços públicos somente podem ser delegados a particulares por meio de concessão ou permissão35. Destarte, ao incluir a autorização no rol de instrumentos de delegação, deixa evidente o Texto Constitucional que nem tudo o que está ali disposto será serviço público36.

Exatamente nesse sentido, aliás, já decidiu o Supremo Tribunal Federal em relação à atividade de transporte aquaviário. Conforme se pode inferir do Recurso Extraordinário n.º. 220.999-7/PE37, a Corte Suprema rechaçou o entendimento de que a mera previsão do transporte aquaviário no rol do inciso XII do artigo 21 da Constituição Federal fosse suficiente para a transformação automática da atividade em serviço público.

Por outro lado, a previsão expressa das possibilidades de delegação por meio de concessão ou permissão deixa evidente também que algumas das atividades arroladas nos incisos em discussão serão serviços públicos. Caso contrário, não se diria que a União Federal deve explorá-las diretamente ou por meio de concessão ou permissão, em perfeita consonância com o disposto no artigo 175 da Constituição Federal.

E com isso é possível chegar-se ao ponto mais relevante para a interpretação que me parece mais correta do conteúdo dos incisos XI e XII do artigo 21 da Constituição Federal. Lá encontra-se o dever material positivo da União Federal de regular os mercados mencionados, por meio da instituição de um serviço púbico e/ou por meio de uma regulação mais intensa do que aquela que habitualmente caberia em outros mercados.

Isso acontece porque as atividades mencionadas nos incisos XI e XII em comento são todas prenhes de relevantíssimo interesse público, estando muitas vezes claramente vinculadas à realização de direitos fundamentais, como é o caso da energia elétrica e do transporte, por exemplo. Além disso, são atividades insertas em mercados que, normalmente, contemplam algum tipo de falha de mercado e, pois, demandam uma intervenção corretiva por parte do Estado.

Nesse contexto, cabe ao Estado (mais precisamente, à União Federal) atuar para (i) garantir a satisfação dos direitos fundamentais subjacentes, por meio da instituição de um serviço público, e/ou (ii) atuar positivamente, por meio da regulação, para solucionar as falhas de mercado existentes, como a necessidade de acesso a infraestruturas escassas e limitadas, a existência de monopólios naturais, entre outros.

E, note-se, a utilização dos conectores e/ou no parágrafo precedente não é aleatória. Isso porque (i) a instituição de um serviço público é, muitas vezes, um mecanismo regulatório de garantia de funcionamento de um mercado para o alcance de fins públicos38 e (ii) a instituição de um serviço público não afasta a necessidade de uma regulação estatal voltada à ordenação de um mercado imperfeito, eis que, como já dito a ideia de serviço público não implica qualquer forma de monopólio ex iure.

Destarte, pode-se inferir do conteúdo dos incisos XI e XII do artigo 21 da Constituição Federal enorme complexidade, pois haverá (i) a possibilidade de deles decorrer a existência de serviços públicos explorados em regimes de competição muito restrita, nos casos em que seja proporcional a imposição de restrições significativas ao direito fundamental de livre iniciativa para a satisfação de certos direitos fundamentais39, (ii) a possibilidade de serviços públicos com maior grau de liberalização, havendo mais flagrante concorrência40, com consequente menor grau de restrição ao direito fundamental da livre iniciativa, e (iii) atividades que não se constituem como serviços públicos, mas que são reguladas pela União Federal, por serem de grande interesse público e por conterem algum tipo de falha de mercado.41

Nesse diapasão, é possível claramente inferir que as atividades mencionadas nos incisos XI e XII do artigo 21 da Constituição Federal são sujeitas a forte intervenção realizada pela União Federal, sem ser, contudo, possível definir-se a priori o grau e o conteúdo dessa intervenção. Caberá sempre à lei infraconstitucional definir, sob os quadrantes da proporcionalidade, como se dará a intervenção estatal em cada caso.

E a razão para tanto é muito simples: as atividades contempladas nos incisos mencionados têm natureza e conteúdos muito distintos, fazendo com que se concatenem, de forma muito diferente, princípios constitucionais como direitos fundamentais de status positivus, livre iniciativa e, por consequência, livre concorrência. Em determinados casos, poderá ser prescindível a regulação intensa do serviço público; em outros, esse regime é imprescindível, mas implica menor grau de restrição à livre iniciativa; e, por fim, em outros casos, é imprescindível e implica maior grau de restrição à livre iniciativa.

A forma precisa de compatibilização dos princípios constitucionais incidentes dar-se-á, obrigatoriamente, no âmbito da lei infraconstitucional. E sequer estático será, pois, conforme o desenvolvimento de certos mercados será possível, aumentar ou restringir o nível da intensidade da regulação estatal, ampliando-se o papel da livre iniciativa e da livre concorrência.

Pois bem. É exatamente nesse processo de estruturação dos mercados contemplados nos incisos XI e XII do artigo 21 da Constituição Federal que se evidencia o papel das autorizações. Em praticamente todos os casos disciplinados nas normas em análise será a autorização o instrumento jurídico adequado para dar efetividade à regulação estatal existente.

Explico-me.

Como disse, dentro das hipóteses arroladas nos discutidos incisos XI e XII há casos em que somente haverá o regime de serviço público, eis que é a única forma de realização dos direitos fundamentais subjacentes; casos em que haverá serviço público explorado em regime de concorrência; e casos em que não haverá serviço público, mas a exploração controlada de uma atividade, a fim de se mitigar determinadas falhas de mercado.

No primeiro grupo de casos, a autorização não terá papel relevante, pois serão utilizados majoritariamente os instrumentos da concessão e da permissão42. No segundo grupo de casos, a autorização terá papel de enorme relevância, pois será o instrumento de controle de entrada de agentes no mercado para prestar, inclusive, oferecer concorrência aos agentes sujeitos ao regime de serviço público, detentores de concessões e permissões.43 E, no terceiro grupo de casos, a autorização terá papel ainda mais relevante, pois será o único título habilitante aplicável para o acesso a determinado mercado.44

Dessa constatação vê-se, de forma quase autoexplicativa, a imprestabilidade das conceituações doutrinárias da autorização mencionadas anteriormente. Isso, pois as autorizações longe estão de ser outorgadas no interesse exclusivo do autorizatário. Elas são outorgadas como forma de controle estatal da entrada de agentes no mercado, os quais ofertarão seus serviços ao público em geral, em clara concorrência com os agentes detentores de concessões e permissões. E mais ainda: as autorizações, nessa perspectiva, aplicar-se-ão a atividades demandantes de enormes investimentos, o que afasta completamente qualquer sinal de discricionariedade e precariedade.

Conforme sublinhei nos parágrafos precedentes, a doutrina entende – sem qualquer esteio no Direito positivo, repise-se – que a autorização se presta apenas a finalidades de interesse restrito do autorizatário e, por isso, é discricionária e precária. Pode ser o caso, em hipóteses muito restritas devidamente previstas em lei45. Mas não se pode tomar essa afirmação como aplicável para todos os casos, sob pena de se colocar a doutrina como fonte primária do Direito Administrativo46.

Nesse passo, pode até haver uma autorização discricionária e precária aqui ou acolá, em casos muito específicos. Contudo, à luz do conteúdo do artigo 21 da Constituição Federal, não se pode mais determinar que esta seja a regra, sob pena de afastar completamente interessados em atuar em setores altamente demandantes de investimentos sob o regime de autorização e, com isso, frustrar a finalidade constitucional de regular os mercados respectivos com equilíbrio entre a satisfação de certos direitos fundamentais por meio do serviço público e a livre inciativa e a livre concorrência.47

Portanto, o instituto da autorização há que ser analisado conforme seu conteúdo contemporâneo e conforme sua destinação determinada pelo Texto Constitucional. Trata-se de instrumento jurídico de controle estatal de ingresso de agentes em mercados demandantes de regulação, por contemplarem algum tipo de imperfeição. Os requisitos para sua outorga e para sua preservação, por óbvio, devem ser condizentes com sua finalidade e com os direitos gerados em favor dos particulares, o que demanda simplesmente o esquecimento de lições doutrinárias que permanecem repetidas, mesmo sem qualquer supedâneo no mundo jurídico real.

Lapidares, nesse sentido, as seguintes colocações apresentadas por Luisa Torchia:

De um sistema de concessões, fortemente discricionário e limitativo do número de empresas presentes no mercado, vem-se gradualmente aproximando a institutos que garantem – como sublinhada finalidade da emanação das primeiras diretivas europeias em matéria de liberalização nos setores de telecomunicações – critérios ‘objetivos, transparentes e não discriminatórios’ no acesso ao mercado.

A alterada natureza do ato administrativo que permite o ingresso no mercado é coerente com a liberalização da atividade. No momento em que o âmbito da reserva vem progressivamente corroído e se assume sempre maior efetividade no reconhecimento dos direitos de liberdade de empresa diretamente em relação aos agentes privados, devem ser adequados também os instrumentos administrativos que permitem o exercício desses direitos de liberdade de empresa.

O momento de autorização de ingresso no mercado é de importância fundamental: se os procedimentos de garantia de acesso ao mercado são muito onerosos, ou discricionários, é reduzida a possibilidade de competição, frustrando-se o aproveitamento de direitos econômicos de primeira importância48.

Nessa perspectiva, parece-me evidente que a previsão, expressa nos incisos XI e XII do artigo 21 da Constituição Federal, da autorização como título habilitante das atividades lá arroladas tem duas consequências fundamentais: (i) a emergência de uma nova autorização, que deixa de ser um instrumento discricionário e precário por natureza e passa a ter as características que sejam compatíveis com a atividade autorizada e (ii) a pressuposição de que os mercados mencionados nos dispositivos constitucionais em comento predicam uma necessária regulação estatal que garanta um equilíbrio entre uma regulação muito restritiva operada por meio do regime de serviço público e uma regulação menos restritiva, voltada à concorrência, sendo a autorização um elemento-chave para tanto, seja por permitir o ingresso de agentes em regime de concorrência, seja para controlar o ingresso de agentes em mercados imperfeitos. Não por outra razão, a fim exatamente de qualificar essa nova autorização, que me referi a uma categoria que optei por denominar autorização regulatória49.

Por derradeiro, ainda importante assentar que mesmo a autorização prevista nos incisos XI e XII do artigo 21 da Constituição Federal não é um instrumento uniforme. É dizer, não é porque referidos dispositivos constitucionais fazem referência a uma autorização que ela será única para todos os segmentos aos quais se aplica. Cada setor, dentre aqueles descritos nos citados dispositivos constitucionais, terá que adaptar a autorização às respectivas condições de mercado e ao papel a que se presta a autorização. Destarte, parece-me muito claro que o nível de concorrência admitido em cada setor e a finalidade buscada pela autorização permitirão que o instituto tenha configurações diferentes conforme o setor que venha a ser analisado50.

Tal constatação ainda amplia o descabimento das concepções doutrinárias acerca da autorização, eis que essas ainda procuram um conceito uniforme, que é simplesmente inviável. Em grandes linhas, pode-se apenas afirmar que a autorização é um título habilitante para permitir o ingresso de agentes em mercados regulados, sendo completamente variáveis o conteúdo e os meios de outorga da autorização, conforme a natureza e as condições do respectivo mercado.

A conformação precisa dos contornos da autorização em cada setor regulado poderá ser dada diretamente por uma lei geral do setor51, ou por ato normativo do respectivo regulador, dentro do espaço de deslegalização52 existente em cada setor, como ocorre nos casos dos setores de energia elétrica, transportes terrestres, entre outros.

Portanto, posso, sem óbices, concluir que a ideia de que a autorização é ato discricionário e precário encontra-se há muito superada. Trata-se de mais uma formulação hermética da doutrina brasileira, sem qualquer esteio no Direito positivo. Embora ainda seja vez ou outra reproduzida pela jurisprudência, essa concepção encontra-se com seus dias contados, já havendo decisões de enorme relevância proferidas pelo Supremo Tribunal Federal53 e pelo Tribunal de Contas de União54 que ratificam a metamorfose ora indicada no instituto da autorização.

Anuario iberoamericano de regulación

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