Читать книгу Contos e Phantasias - Maria Amalia Vaz de Carvalho - Страница 14

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Na frisa, radiante de mocidade, de fina distincção, com todos os requintes da moda a fazer realçar a sua belleza moderna, fragil, quebradiça, alguma cousa amaneirada estava Margarida.

A marqueza ao lado d'ella conversava com um velho diplomata.

Á entrada dos dous a mãe teve um comprimento um pouco secco, a filha um sorriso de graça adoravel, de garridice innata mas irresistivel.

—Quiz vêl-o porque soube que tem sido muito bom para Thadeu, excellente mesmo. Elle contou-me tudo.

Pobre rapaz! poor dear boy! e sorriu-se outra vez com um aspecto bondoso e protector que a transfigurou por instantes.

—Eu tinha-me esquecido, o Thadeu é que se lembrava de tudo. Fez-me reviver a minha infancia. Sempre é bom. Agora já estou tão velha que acho immensa graça a estas recordações do passado.

E graciosa, maternal, afastando toda e qualquer idéa que não traduzisse uma solicitude encantadora para o seu companheiro da infancia, Margarida foi o que seria a noiva idealisada pelo austero coração de Henrique.

E d'ali em diante o amigo de Thadeu deixava-se arrastar de oito em oito dias até o palacete dos marquezes.

Era ali optimamente recebido.

Margarida, adorada pelos paes, dava a lei em casa. Sabiam-n'a voluntariosa, cheia de caprichos e de phantasias, tinham medo de irrital-a resistindo-lhe.

Depois, Henrique com as suas maneiras de gentleman, com a gravidade desaffectada do seu porte, com os generosos ardores da sua rica organisação, revelava-se o que era: um homem de futuro, um homem que havia de ter nome mais tarde.

O marquez, cynico como a vida o tornára, era juiz excellente n'este assumpto.

Conhecia um homem depois de duas horas de conversação.

As proprias severidades do moço, amollecidas agora ao contacto da perturbadora formosura de Margarida, agradavam ao marquez como uma cousa nova, picante, inteiramente imprevista para elle.

Thadeu nadava em um jubilo celeste.

Era muito bem tratado; Margarida tinha com elle umas garridices angelicas que ás vezes o deixavam pallido e suffocado, encostado a uma arvore ou a um banco do jardim para não cahir no meio do chão desfeito em lagrimas.

Thadeu tinha agora de vez em quando um odio selvagem á sua mesquinha e enfezada personalidade.

Se elle não fosse como era... se fosse alto, esbelto, forte... póde ser... tem-se visto tanta cousa...

E tambem ficava absorto, idiota, seguindo com um olhar esgazeado umas visões que o iam enlouquecendo.

Ella no emtanto vinha alegre, radiosa, cheia de vida, com o seu vestido de foulard côr de carne a desenhar-lhe as fórmas flexiveis, com uma rosa nos seus cabellos louros, dava-lhe o braço, e arrastava-o enlevado e estupido pelas alamedas do jardim.

—Conta-me lá o que tu fazias quando eu cá não estava! conta-me em que pensavas. Estavas muito triste? Quando é que viste pela primeira vez o teu amigo Henrique? Que lhe dizias tu de mim? E elle?... elle que idéa fazia d'esta endiabrada pessoa que tu lhe descreveste tanta vez com a tua phantasia de poeta—porque tu quando se trata de mim és poeta, meu pobre Thadeu!—Anda, falla, conta-me o que vocês faziam, gosto tanto de te ouvir!

E toda dobrada sobre o hombro d'elle, meiga, electrica, fascinadora, com meneios de serpente, levava horas passeando pelo braço de Thadeu.

Um anno depois d'esta época, Margarida declarava terminantemente aos paes que voltava para França, que ia morrer freira no convento onde vivêra educanda, se elles a não casassem com Henrique.

E dizia-lhes estas palavras n'uma tal violencia de gritos e de soluços, tão magra, tão empallidecida n'aquella lucta intima de doze longos mezes, que o marquez encolheu os hombros com a suprema indifferença que fazia d'elle um viveur, e que a marqueza animada pela placidez do marido ao encarar esta questão magna, declarou á filha, hoje seus unicos amores, que ia fazer tudo para lhe dar o noivo da sua alma, o escolhido pela sua ardente paixão juvenil.

Teve medo de ver a filha definhar-lhe e morrer-lhe nos braços. Via-a tão abatida, tão triste, tão enfastiada da vida, que a idéa de perdêl-a sobrelevou a todos os seus escrupulos de rica e de fidalga.

Margarida auctorisada pelos paes pôde dizer a Henrique, que o amava!

Quanto amor! que enthusiasmo febril n'este sublime impudor da creança opulenta, formosa, aristocratica, disputada por dezenas de noivos tão ricos e tão nobres como ella, que vem espontaneamente offerecer a sua mão e a sua vida inteira ao obscuro plebeu que passa confundido no meio das multidões desconhecidas!

E esse impudor ninguem mais fidalga e altivamente do que Margarida o soube ter.

Sabia-se adorada, estremecida, sabia que um riso d'ella bastaria para as alegrias e para as torturas de uma semana passada por Henrique na labutação da sua mesquinha existencia; mas sabia tambem que elle era tão grande, tão forte, tão orgulhoso e digno que podia morrer, mas que morreria calado, sem que uma palavra revelasse o seu martyrio!

—Thadeu, meu querido Thadeu, meu amiguinho, tenho sido muito má, não tenho querido contar-te nada com medo de que lhe dissesses a elle alguma cousa. Eu queria ser a primeira a dizer-lh'o, queria gozar do seu sorriso, do seu olhar de anjo, de martyr beatificado, do seu olhar que me enlouqueceu para sempre... Agora digo-te, já não tenho motivo nenhum para t'o esconder.

Vou casar-me, vou ser d'elle, só d'elle... levar-te-hei comnosco... Olha que foi elle que m'o pediu... Vê como elle é bom. Eu a fallar a verdade estava tão douda que nem me lembrei de similhante cousa; mas elle fallou logo em ti, foi a sua primeira vontade! Adoro-te visto que elle é teu amigo. Has de aborrecer-me ás vezes, meu pobre Thadeu, porque nunca entendes a tempo quando deves ir-te embora, mas eu hei de educar-te. Verás! Viveremos todos tres. Nunca mais te hei de tratar mal! nunca mais me hei de rir da tua casaca. E, a proposito, tu ainda a tens, aquella malfadada casaca? Não me faças rir no dia do meu casamento, pelo amor de Deus manda fazer uma nova para esse dia. Não tenhas medo de gastar. Eu tenho muito. Sou rica, muito rica, somos todos tres muito ricos.

E douda, anhelante, no delirio da creança que venceu a sua primeira teima, na dilatação ampla de uma alma que conquistou o seu desejo supremo, Margarida expandia n'estas palavras diffusas, incoherentes, sem nexo, toda a felicidade que era hoje d'ella e que julgava eterna.

Thadeu escutava com o olhar morto e vidrado de um somnambulo.

Depois emmudecido por uma dôr aguda que lhe rasgava as carnes de todo o seu corpo como um punhal de muitas laminas, sahiu do quarto cambaleando como um ebrio.

No dia do casamento de Henrique houve dous entes que na humilde tristeza de uma pobre casa, choravam unidos todas as lagrimas da sua alma.

A um d'esses entes pungia-o uma angustia dilacerante demais para que a palavra humana a pudesse traduzir.

A outro sobresaltava-o um presentimento horrivel, como que um dobrar de finados que lhe écoava lá dentro, e ao qual não podia fechar os ouvidos.

Esses dous entes esquecidos, voluntariamente afastados das pompas principescas d'aquelle dia, das festas d'aquella solemnidade esplendida eram Thadeu e a irmã de Henrique.

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