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IV

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O marquez tinha ido sósinho para França. Fôra, ao que se dizia, buscar a filha ao Sacré-Cœur.

A educação de Margarida devia estar completa. Fôra-se embora com nove annos de idade, e haviam já passado sete depois que ella partira.

Sete annos! que longo periodo!

A casa dos marquezes era pouco mais ou menos a mesma cousa.

Thadeu perdêra sua mãe, mas aquella figura apagada, melancolica, de uma debilidade de valetudinaria, pouca falta havia feito no palacio illuminado e radioso.

O marquez aconselhado por alguma pessoa de juizo e de caridade tinha consentido a que logo depois da partida de Margarida seu sobrinho entrasse para um collegio.

Tambem já lhe não servia para nada.

Com o seu corpo magro e desengonçado, um corpo de funambulo, um corpo de grotesco, tinha melancolias quixotescas que incommodavam quem o via.

Os criados deram por mais de uma vez com o rapazola a chorar de bruços n'um recanto do jardim, chamado o canteiro de Margarida.

Era um pequeno espaço semeado de flôres, onde principalmente abundavam os malmequeres brancos que tinham o poetico nome da filha do marquez.

Havia ali uma grande arvore, um castanheiro copado cuja rama folhuda abrigava as longas scismas dolorosas de Thadeu.

Não se podia consolar!

Era ali n'aquelle sitio fresco, esmaltado de flores, exhalando um cheiro agreste e sadio, que elle se deixava ficar horas e horas esquecido de todos, n'uma especie de lethargo bestial, o lethargo de um animal ferido.

E desfiava na memoria todo o seu passado, toda a vida que vivêra, abandonado, desprezado, perseguido de chufas ou de maus tratos, de caprichos humilhantes, ou de observações glacialmente desdenhosas.

ella nunca o ferira! só ella fôra no seu viver de cão apedrejado um consolo dulcissimo! uma nesga do céo que se entreabrira!

ella nunca se tinha rido á custa d'elle, e fôra elle—o misero, o abandonado, o enfermo—que tivera o primeiro sorriso d'aquella boquinha de rosas, o primeiro beijo d'aquelles labios frescos e humidos de leite!

Era feio, era rachitico, era estupido e desastrado.

Todos o conheciam, todos o repetiam em alto e bom som para que elle o não ignorasse, mas ella amava-o; ella não o dizia, não o pensava, não o tinha notado sequer!

Para ella era forte, e grande, e poderoso!

A elle é que Margarida confiára sempre os seus desejos, os seus sonhos, os seus affectos de creança mimosa.

Ralhava-lhe ás vezes, batia-lhe, quando aspirava ao impossivel que Thadeu lhe não podia dar, mas as creanças ricas têm horas de tedio só comparaveis ás horas sinistras de um imperador romano, e Thadeu comprehendia isso tanto, que antes queria as coleras, do que os desalentos rapidos e violentissimos da sua perola.

Tudo que houvera bom na sua vida lhe tinha vindo d'ella.

Dos outros—nada!

E elle odiava todos os outros, só para poder adoral-a com um culto exclusivo de negro pelo seu fetiche.

Não perguntava noticias; para que?

Tinha a certeza intima de que lh'as não dariam completas nem verdadeiras.

Antes não queria saber nada, do que banalisar a sua idolatria, revelando-a a seus inimigos.

Ella tambem lhe não escrevêra, o que o não surprehendera nada.

Estava tão costumado a ser uma cousa inutil e desprezada, que nunca lhe viera á idéa a possibilidade sequer de possuir uma carta d'ella.

No entanto ia adoecendo, definhando, parecia uma sombra.

Um medico que o viu torceu o nariz, e deu claramente a entender que aquillo nunca chegaria a ser um homem.

Foi então que se lembraram de o mandar para um collegio, em primeiro lugar para não terem o desgosto de o vêr a cada passo, em segundo lugar para o distrahirem da idéa fixa que o estava consumindo.

No primeiro dia em que Thadeu fez a sua entrada no collegio houve uma tal galhofa, um gaudio tão extraordinario entre a rapaziada, que os professores para manterem a ordem tiveram de empregar severos castigos.

Não havia meio de o vêr sem rir.

Tinha um tic nervoso a um canto da bocca, tinha os olhos de vidro embaciado, tinha as pernas muito magras e muito cambadas, e um modo de fallar timido, acanhado, medroso que era de fazer morrer de riso os rapazes.

Os proprios mestres tinham de fazer esforço para se não rirem quando o viam.

Na hora de recreio tornou-se a victima, o bode expiatorio do collegio.

Um dia, porém, a brincadeira attingiu taes proporções que degenerou em perversa brutalidade.

Thadeu cahiu no chão extenuado a lançar jorros de sangue pelo nariz.

Do grupo estupefacto e arrependido dos collegiaes destacou-se então um, o mais velho, o mais valente o que nunca entrava n'aquellas farçadas brutaes, e disse com voz decidida:

—Tomo esse pobre diabo debaixo da minha protecção. O primeiro que lhe tocar tem os ossos n'um feixe.

Ninguem se atreveu a responder uma palavra.

Henrique de Souza era temido e respeitado.

Nas aulas era o primeiro; nas brincadeiras era o mais forte; na lucta era o mais destemido.

Orphão de pae, era sustentado no collegio pelo trabalho insano da mãe e da irmã mais velha que se haviam feito costureiras para o poderem educar.

Henrique fizera-se homem antes de tempo.

O seu pensamento fixo era poder pagar a divida sagrada que contrahira com as duas heroicas e dedicadas mulheres.

Quando Thadeu despertou do desmaio em que a fraqueza o mergulhára, fixou os seus tristes olhos esgazeados e humildes na physionomia meiga e viril de Henrique.

Comprehendeu que tinha achado um amigo e cahiu-lhe nos braços a soluçar.

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