Читать книгу Contos e Phantasias - Maria Amalia Vaz de Carvalho - Страница 6
II
ОглавлениеUm dia, porém, fez-se na vida atormentada e tempestuosa do pequeno Thadeu uma claridade de luar, uma claridade opalisada e doce.
Houve treguas nos seus varios martyrios, e sua mãe, n'uma bella manhã de primavera em que os passaros cantavam ao desafio nas grandes arvores do jardim, levou-o pela mão, pé ante pé, a um quarto forrado de setim côr de rosa, um quarto digno de servir de habitação á fada mais linda que uma phantasia de poeta oriental houvesse imaginado.
N'aquelle quarto havia um ninho todo branco feito de rendas, de fitas de setim, de pennugem de passaros, e n'esse ninho dormia uma creancinha que parecia uma rosa.
—É tua prima; murmurou baixinho a mãe de Thadeu, emquanto este, mudo, surpreso, extasiado, fitava os seus olhos vitreos, onde o jubilo acendia uma luz desusada, nos grandes olhos luminosos e pasmados do bébé que acordára.
Oh! como Thadeu adorava aquella creança! Como na sua vida houve de repente um ficto, uma esperança, uma luz!
Sua tia, uma vez em que a bebé chorava muito nos braços da ama, dissera a Thadeu com uma voz menos glacial do que o costume:
—Thadeu, brinca com a prima a vêr se ella se cala.
E elle fizera calar a rabujenta pequerrucha.
Desde esse dia soube-se que a menina tinha o insolito capricho de adorar Thadeu, de rir quando elle estava de joelhos dobrado sobre o seu berço, de chorar quando alguem o levava d'alli para fóra.
A ama tomou o costume de o chamar e de o fazer estar horas e horas a entreter a menina.
Ao principio elle fazia-lhe carêtas e momices, como as que usava fazer para divertir seu tio; depois, sem bem perceber porque, adoptou outro systema inteiramente opposto.
Percebeu que a pequenina não queria um bôbo, como esse espirito embotado e pervertido que o victimára com os seus caprichos. O que a bebé queria, na ingenuidade adoravel do seu despotismo infantil, era um companheiro de seus brinquedos, um socio, um escravo que a adorasse.
Thadeu era tudo para ella: queria-o perto da grande tina em que tomava o seu banho de manhã; queria-o junto da pequena mesa de nacar onde a ama lhe dava as sopinhas; queria-o no berço ao adormecer; queria-o no jardim, á sombra das arvores, sobre a arêa finissima, onde se rolava, vestida de rendas brancas, a rir como uma perdida.
Chamaram-lhe Margarida.
Margarida quer dizer perola, e Thadeu, que vira muitas vezes sua tia vestida de baile, achava um nome muito bem posto áquella creança branca, transparente, loura, idealmente graciosa.
Oh! Thadeu ainda andava muita vez vestido de marujo, de granadeiro, de tyrolez e de alferes, ainda o introduziam no cofre da lenha, ainda o faziam fumar um charuto depois de jantar, cheio de ancias, de nauseas, de gritos abafados de angustia!... Mas que importava!
Logo que podia escapava-se para o quarto da fada, para o estojo côr de rosa da sua perola, da sua Margarida, e então eram risadas sem fim, eram corridas delirantes por sobre o tapete, era um papaguear de duas aves felizes.
Margarida com a idade ia-se fazendo despotica.
Pudera!
Ou ella não fosse mulher, e estremecida pelo seu humilde escravo!
Mas era assim mesmo que elle a queria.
Quando as mãosinhas polpudas e brancas de Margarida lhe batiam, Thadeu sentia-se feliz como um rei.
Quando ella o obrigava a agachar-se no chão para lhe servir de jumento, o rapazinho tinha tentações de rinchar de prazer, fazendo o passo bem ao vivo.
Porque no fim de contas, apezar de todas as suas adoraveis crueldades, Margarida gostava d'elle.
A presença de Thadeu illuminava de risos o seu rosto oval coroado de cabellos louros annellados, o seu rosto a um tempo angelico e gaiato!
Margarida não o achava feio, nem tolo, nem ridiculo, nem doente.
Não desprezava a fraqueza dos seus braços, nem a pobreza absoluta da sua imaginação.
Pelo contrario! Admirava o!
Sim; ella dera-lhe essa sensação poderosa e extraordinaria, a sensação dos que se vêem admirados com ingenua confiança.
Margarida pedia-lhe cousas enormes, com uma serenidade ineffavel de crente!
Pedira-lhe um ninho de melros, e o que é mais! conseguira que elle tão medroso, tão debil, tão assustado, trepasse pelos braços nodosos de uma grande arvore e lh'o fosse buscar lá cima.
Que triumpho este d'ella, ao ver satisfeito o seu capricho! mas que triumpho maior ainda o d'elle ao comprehender, que alcançara essa cousa prodigiosa, que nem nos sonhos mais arrojados das suas noites de febre elle ousara até ali conceber!
Um dia Margarida, em frente d'aquelle rasgo assombroso de valentia que collocara Thadeu ao lado dos maiores heroes, puzera se grave, meditativa, e apontando com serena magestade para a lua que se reflectia n'um tanque do jardim, pedira a lua ao seu amigo Thadeu!
Está claro que elle lh'a não pôde dar, mas gostou d'aquillo!
Percebeu que o julgavam capaz de cousas grandes, de levar a cabo emprezas impossiveis, e esta idéa que alguem tinha da sua força, fê-lo crescer aos seus proprios olhos.
O marquez conhecendo que o pequeno deixára de ser seu joguete, simplesmente para ser joguete de sua filha e herdeira, applaudiu-se de lhe haver dado aquella educação especial, e prohibiu que o distrahissem, fosse sob que pretexto fosse, das suas novas funcções.
Margarida era ainda muito pequenina para entreter os paes.
Elle precisava das excitações da politica, das luctas do parlamento, dos sorrisos falsos ou verdadeiros, caros ou baratos das formosas mulheres, do jogo, da ambição, do amor, da violencia corrosiva de todas as pequenas e grandes paixões!
Ella precisava do luxo, das joias que scintillam, das sedas que se quebram em ondulações brilhantes, do côro das adulações mentidas, de todas as ephemeras alegrias que só o mundo lhe podia dar.
Para ambos Margarida seria um remorso, se a não vissem tão nedia, tão roliça, tão alegre, com chispas de travessura maliciosa no olhar, sempre acompanhada do seu pequeno amigo, submisso e fiel como um cão.
Deixaram-os, pois, crescer e viver juntos sob o olhar das aias, sempre um pouco hostil para Thadeu e por isso tanto mais insuspeito.
Foi o verdadeiro paraiso que este conheceu na terra, foi a sua idade de ouro.
Ha entes que nunca nem por um instante só conheceram a completa ventura.
São de todos os mais desgraçados.
Thadeu mais tarde podia ao menos recordar-se!
E elle sabia apreciar tão bem aquellas alegrias que em manhã abençoada tinham cahido sobre a sua pobre cabeça!...
Um dia Margarida travessa e caprichosa como era, desattendendo todas as advertencias de Thadeu, deixara-se cahir dentro do tanque do jardim.
O pequeno não sabia nadar.
Que importa!
Sem premeditação, sem raciocinio, obedecendo a um instincto de dedicação inteiramente canina, deitou-se n'agua atrás d'ella.
As criadas, acudindo, tiraram do tanque as duas creanças abraçadas.
Imagine-se o que iria em casa!
Thadeu, castigado severamente, não quiz condemnar a sua amiguinha, para se salvar a si.
Foi ella que, soberba, graciosa, com a sua magestade de pequena rainha, disse aos paes:
—Não batam n'elle. Elle pediu-me que não fosse. Eu é que quiz ir.
Acharam-na adoravel; encheram-na de caricias e de gulodices, mas ninguem pensou na acção tão simples e tão heroica do pequeno Thadeu, a quem tinham posto a alcunha de medroso.