Читать книгу Contos e Phantasias - Maria Amalia Vaz de Carvalho - Страница 17
XIII
ОглавлениеElle estava sentado ao pé da mesa. Primeiro estivera fazendo contas, róes de casa, agora pendia-lhe a cabeça embevecido n'uma vaga scisma.
Sem saber explicar por que, n'aquelle dia lembravam-lhe tantas cousas do seu passado!...
Sentia dentro de si uns vagos assomos de revolta, lembrando-se das humilhações que padecêra, dos tratos com que lhe haviam enfraquecido o corpo e atrophiado a intelligencia. Depois... na sua vida, até ali obscura e dolorosa, surgia de repente envolta nas rendas brancas do seu berço uma visão deliciosa, uma pequena fada, a sua amiguinha, a sua Margarida!...
Como fôra feliz com ella e por amor d'ella...
Comtudo... pensando bem... para essa felicidade chymerica fôra elle quem fornecêra todos os elementos. Ella nunca vira no pobre Thadeu senão um instrumento dos seus caprichos, um escravo das suas vontades...
Em todas as delicias com que dourara a sua vida não havia uma só que fosse nascida da vontade de ser-lhe boa, util, consoladora!...
—É verdade, murmurava o pobre doudo, é verdade! Ella nunca teve coração!
E suspendeu-se como que aterrado d'aquella blasphemia.
N'este momento Margarida entrava pelo quarto de Thadeu, pallida como um cadaver, com os grandes olhos dilatados n'uma expressão de indescriptivel pavor.
Agarrou-se-lhe ao braço e disse lhe baixo, n'uma voz estrangulada e rouca:
—Henrique chegou da quinta. Eu não o esperava. Contava que elle viesse ámanhã. No meu gabinete ha uma pessoa que deve sahir sem que meu marido a veja. Ouves? Estou perdida... Estava perdida mas lembrei-me de ti... Salva-me...
Não me digas nem uma palavra, proseguio vendo que elle ia fallar. Uma demora de segundos perde-me sem remissão.
E sahiu com o seu passo miudinho, o seu passo chic, aprendido de passagem nos boulevards de Pariz.
Thadeu sahiu do quarto, e quando tornou a entrar ali, acompanhava-o um moço muito pallido, de bigode louro, cabello cuidadosamente frisado e toilette irreprehensivel.
Não trocaram uma palavra. Thadeu apontou-lhe para uma cadeira, fechou a porta do quarto á chave e sentou-se junto da janella, que dava sobre o jardim.
Era em plena primavera. Pela janella aberta entrava um perfume vago e subtil, um perfume de rosas, de madresilva e de baunilha em flôr.
Ouvia-se o rir e o chilrear das duas creanças, e entre as ramarias entrelaçadas dos grandes arbustos exoticos, Thadeu viu passar com os seus meneios serpentinos, o seu vestido branco, a sua cabelladura d'ouro, a figura esbelta de Margarida pendida ao braço do esposo com quem fallava baixinho.
Foi a ultima visão que teve d'ella.
Uma visão de perfidia felina e de felina formosura.