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I

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Era uma physionomia incaracteristica, apagada, tristissima.

Não se podia dizer a idade que tinha, nem mesmo se tinha idade.

Tanto podia ter trinta ou quarenta como setenta annos.

Curvado pela idade ou pelos desgostos? Encanecido porque os annos tinham corrido por sobre a cabeça d'elle, ou porque lhe tinham pesado duplamente sobre os hombros debeis?

Quem o podia dizer?

Era uma organisação acanhada e rachitica, podia mesmo chamar-se incompleta.

Para elle com certeza que a adolescencia não tivera as suas madrugadas azues tão gorgeadas e tão festivas, nem a virilidade tivera a fanfarra estridente dos seus clarins, a florescencia escarlate dos seus rosaes voluptuosos.

Tinha sempre vivido debaixo de uma estranha pressão dolorosa.

Dependêra de todos primeiro porque era fraco e inerme, depois porque fôra pobre, dependente, sem aquella aspera dignidade que os atrictos da vida tornam mais rude e que é a armadura moral que salvaguarda o homem nos duros combates sociaes.

Nasceu n'uma casa opulenta que lhe não pertencia, cresceu no meio de um luxo de que seus paes erão parasitas voluntarios e de que elle era... parasita inconsciente.

Começára por ter medo de tudo e de todos; um medo que não raciocinava, que não sabia, que não indagava mesmo a sua propria origem.

Nasceu assustadiço, como certos animaes silvestres, e toda a vida conservou a mesma expressão inquieta e medrosa da lebre perseguida.

Em primeiro lugar tinha medo de seu pae; um homem alto, espadaúdo, plethorico, de voz grossa e modos brutaes, que comia como um abbade, que bebia como um lansquenete, que praguejava como um carreiro, e que se vingava nos poucos entes que tinha debaixo do seu dominio, das complacencias servis que era obrigado a mostrar aos que o mantinham n'aquella farta ociosidade de commensal que só goza e não paga.

Depois tinha medo de sua tia; a dona da casa, a senhora, a suzerana ante a qual todos se curvavam submissos.

E no emtanto ella era bonita, delgada, flexivel, muito branca.

Uma figura ideal de pintor inglez.

Mas que culpa tinha elle, o pequenino parea, se os olhos d'essa graciosa e delicada senhora lhe pareciam frios e metalicos, com umas scintillações azuladas como as do aço fino? se as suas mãos esguias e brancas se lhe affiguravam duas tenazes que podiam apertal-o, apertal-o até o torcerem todo, até o esphacelarem e fazerem d'elle, do seu pequeno corpo tão fraquinho, uma grotesca massa informe, que o mundo inteiro pisasse, onde o mundo inteiro cuspisse!

Seria allucinação d'aquelle cerebro enfermo e condemnado ás scismas doentias?

Quem sabe?

O caso é que o sentia, e que nunca pudera esquivar-se a essa preoccupação intensa e dilacerante!

Um d'estes dous entes que dominaram de estranho terror a sua infancia, maltratava-o nas explosões brutaes de seu temperamento de touro bravo.

O outro—a senhora—muito altiva, muito fria, muito desdenhosa, nem sequer lhe fallava.

Olhava-o ás vezes como se olha para um animal repugnante, para um sapo, ou para uma carocha, e passava adiante, imperturbavel e olympica.

Havia, porém, um outro sêr, dos que mais em contacto estavam com elle, que nem o maltratava, nem o desprezava com a glacial frieza do seu desdem.

E comtudo era d'esse que elle tinha ainda mais medo.

Era seu tio; uma figura original, uma physionomia de titan que por um engano qualquer da natureza não pôde conseguir passar de anão.

Seu tio!... Como esta individualidade extraordinariamente accentuada, como este rosto ironico, irregular, convulsionado, dominou para sempre o destino obscuro da infeliz creança que eu conheci já velho!

Seu tio não o perseguia nem lhe manifestava uma repugnancia muda, pelo contrario.

Chamava-o continuamente para o pé de si, ensinava-lhe, quando estava só, palavras, esgares, visagens grotescas que lhe fazia repetir diante de gente, n'um côro de gargalhadas asperas e hostis como gumes de espadas!

Vestia-o de um modo desusado e extravagante, vestia-o de marujo, de escossez, com as suas pequenas pernas magras, trigueiras, ossudas, n'uma nudez friorenta que lhe doia, e o fazia tiritar; vestia-o de tyrolez, o que lhe dava um aspecto comico, que arrebentava com riso a criadagem.

Ás vezes nos seus dias de melhor humor sahia com elle, que tinha apenas sete annos de idade, de casaca, chapéo-alto, e berloques na cadeia do relogio.

Tinha tempos em que não podia passar sem a sua companhia; a creança era a unica distracção do anão.

As caricias d'esse homem singular, de olhar faiscante, de cabelladura revolta e electrica, de voz sonora e rica de inflexões estranhas, doíam, porém, ao pequeno muito mais do que os desprezos ou os máos tratos dos outros.

Ao pé d'estes sentia-se perseguido, ao pé d'aquelle sentia-se humilhado.

Um dia o marquez—o tio do pequeno Thadeu era marquez,—achou comico mandar introduzir a creança no cofre acharoado que havia junto ao fogão do gabinete de trabalho, destinado a guardar a lenha ou o carvão que se consumia.

De minuto em minuto abria-se a tampa e sahia a cara vermelha e congestionada do pequeno, uma cara de animal assustado, o que divertia extraordinariamente as visitas.

Outra vez, n'uma ceia alegre em que havia rios de champagne e risadas crystallinas de mulheres, Thadeu com um fato de meia preta a cobril-o todo e dous castiçaes nas pequenas mãos, servia de centro agachado n'uma posição grotesca no meio da meza.

Sahiu d'alli com uma febre que o teve um mez entre a morte e a vida, delirante, sem conhecer ninguem, com a mãe debulhada em lagrimas á cabeceira.

Mas Thadeu não gostava de sua mãe.

Era uma creatura tão debil como elle, pallida como uma defunta, inerme, estupida, sem vontade.

As lobas defendem os seus filhos, a mãe de Thadeu não o sabia defender!

Entregava-o ás coleras descompostas do pae; aos desprezos gelidos da tia; aos caprichos monstruosamente comicos do marquez; ás apupadas brutaes das aias e dos lacaios; aos risos das visitas; ao pasmo desprezador das outras creanças, que iam áquella casa opulenta e ruidosa acompanhadas por seus paes, vestidas de velludo, com plumas nos seus lindos chapéus, o ar grave de meninos bem creados, e que não tinham licença de brincar com aquelle pequeno histrião, feio, ridiculo, doente, com gesto de epileptico, com fatos de palhaço e com soluços de martyr.

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