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O MEU PAI NÃO entrou de imediato. Em vez disso, ele e a Fleur tiveram uma discussão calma sobre a qual não consegui discernir, mesmo apesar de estar parada em silêncio do outro lado da porta, de respiração sustida, a tentar perceber se teria tempo de recuperar o meu telefone. Eles tinham anos de prática naquilo, tendo criado três filhas juntos. Eu também tinha anos de prática de escuta, sem sucesso, apesar de ter apurado a função dos meus ouvidos, ao contrário da vista, mesmo após anos a consumir bananas em excesso. #potássio #boato #bem-estar

Aquilo era mau. Se o meu pai estivesse moderadamente chateado, ia chamar o nome da filha transgressora assim que abrisse a porta de entrada. Invocada dessa forma, a filha iria aparecer, ligeiramente cautelosa, mas imperturbável, sabendo que para as maiores infrações seria primeiro levada a cabo uma conferência com a Fleur. Seriam discutidas as motivações e feitas as avaliações de carácter e, eventualmente, chegariam a acordo sobre o castigo, tudo de forma inaudível. Uma invocação imediata é em si mesma uma espécie de reprimenda.

Sou uma mulher adulta, e mesmo agora, sei que é assim que isto funciona. Devia ter guardado o carro. Devia ter afastado os contentores. Não devia ter sido preguiçosa ou ter dado ouvidos às adolescentes. Dar ouvidos a adolescentes já me trouxe problemas anteriormente.

Decidi arriscar. A experiência dizia-me que aquelas conversas podiam arrastar-se durante imenso tempo. Fui a correr até ao escritório e agarrei no meu telefone.

— Miranda!

Dei um pulo. Tinha estado tão atentamente à escuta dos pequenos sons que não estava de todo preparada para os grandes. O passaporte deslizou ligeiramente da minha cintura. Surpreendentemente, pois a minha cintura estava bastante apertada ultimamente.

— Pai?

A porta abriu-se mais. Fiquei parada no meio do escritório. Era demasiado tarde para fingir estar a fazer qualquer coisa. A minha mão foi instintivamente até ao colar com o berloque de ouro em formato de rosa — uma herança de família deixada pela minha mãe — que trazia ao pescoço. Nunca o tirava, mesmo apesar de se mexer e de me incomodar quando corro. Ou costumava incomodar quando ainda corria.

— O que é que estás aqui a fazer? — ralhou o meu pai.

Esta pergunta foi como um impulso vindo dele, as palavras proferidas antes que se desse conta. Uma das suas muitas regras: nada de andar a mexer no seu escritório.

— Estava só… só a ver uma coisa no teu computador.

Esperava que o domínio do meu pai em computadores se mantivesse tão rudimentar como sempre. No ano anterior, tinha-me surpreendido a contratar um especialista para enterrar os resultados negativos nos motores de busca com uma série de histórias mais positivas e recentes — o que não resultou, já agora. Há um velho ditado: «A nata vem sempre ao de cima», o que pode ter feito sentido nos dias em que as pessoas costumavam manter uma vaca no quintal, mas no ciberespaço simplesmente não é verdade. A parte branca aquosa, a parte sem qualquer sabor ou substância, é a que permanece atualmente.

Adiante, não queria que ele soubesse que andei a pesquisar a Casa Barnsley no seu computador.

— Quero falar contigo sobre outra coisa. — Olhei pela janela. O carro já estava coberto com a seiva pegajosa que ele tanto odiava. A Fleur tinha desaparecido nos confins da casa. Nem mesmo ela queria estar por perto para assistir à minha última desilusão.

— O carro. Desculpa.

O meu pai olhou pela janela, com a expressão alterada. Os ombros descaíram ligeiramente, como se a batalha para a qual se estava a preparar tivesse sido subitamente cancelada. O fôlego tinha visivelmente abandonado o seu corpo.

Quando falou, foi num tom quase desgastado. Não sabia se era da sobrecarga de hidratos de carbono, ou do Barolo, mas estava cansado.

— Pedi-te antes para colocares o carro na garagem, Miranda. A seiva faz danos irreparáveis à pintura se permanecer lá mais do que algumas horas.

Eu queria dizer que a culpa tinha sido da Ophelia, que estava aflita para ir à casa de banho, que queria regressar e tirá-lo de lá, mas até na minha cabeça isso soava como mais uma desculpa esfarrapada. Pelo tom de voz do meu pai, ele já estava farto das minhas desculpas.

— Desculpa. Eu levo o carro à lavagem de manhã.

Cinquenta dólares. É quanto custa a lavagem do carro, no único sítio onde o meu pai deixa que se aproximem do seu carro. Cinquenta dólares faziam uma grande mossa no meu salário nesta altura.

— O que é que fizeste à carta?

Estava tão ocupada a pensar na lavagem do carro que nem antecipei a pergunta. — Que carta? Não vi carta nenhuma… — Isto não era muito convincente. Pelos parâmetros de ninguém. Certamente que não pelos meus.

— Não me mintas, Miranda! Estou farto de mentiras. — O meu pai dá uns passos na minha direção e, por um momento, pensei que eu tivesse finalmente ido longe demais. Apesar de tudo o que passámos juntos, ele nunca tinha reagido assim.

Recuei um passo, batendo na secretária. Ele tinha-me encurralado. O impacto da secretária no meu corpo trouxe-o de volta a si e respirou fundo. Um longo e frustrado suspiro.

— Miranda. — Esticou a mão na minha direção, à espera que eu cedesse.

Por isso cedi. Pesquei a carta de dentro da cintura das minhas leggings. Assim que ficou liberta do meu corpo, arrancou-ma da mão e enfiou-a bem fundo no próprio bolso, sem verificar o conteúdo. — Sei o que estás a pensar, Miranda.

Aquilo era impressionante, pois nem eu própria fazia ideia do que estava a pensar. Tudo o que sabia é que tinha encontrado uma carta com um pedido de ajuda de uma parente que nunca tinha conhecido. Que eu esperava saber notícias de alguém de Barnsley, fosse quem fosse, desde que tinha memória. Que a esta altura seria bom sentir-me útil. Começar de novo. Mas não lhe chamaria pensar. Pensar era uma palavra demasiado precisa para o turbilhão gigante de emoção que estava a sentir.

— O que é que estou a pensar?

— Estás a pensar que isto pode ser uma forma de escapares a todos os teus problemas.

Imaginei-me no aeroporto. Só com bagagem de mão. A acenar ao meu pai e à Fleur a partir da porta de embarque. Lágrimas nos seus olhos. Melhor ainda, imaginei a minha chegada a Heathrow. Com uma grande família a cumprimentar-me. Um tio idoso, um bando de adolescentes simpáticas. Um cão wolfhound gigante e desgrenhado. Num aeroporto? Era uma fantasia, afinal de contas.

— Vou começar um emprego novo na próxima semana. — Esperava que soasse mais convincente do que a mim me parecia.

— Sim.

— Não tenho dinheiro nenhum.

— Não.

— Nunca conheci esta rapariga.

— Não.

— Não tenho qualquer obrigação para com ela. Ela enviou esta carta para a minha mãe. Nem sequer sabe que eu existo.

O meu pai ficou com um ar evasivo. — Sabe que eu existo?

A casa em meu redor estava sossegada, como se estivesse a suster a respiração juntamente comigo. Lá fora, o rapaz da porta ao lado batia com a bola a um ritmo constante apenas pontuado pelos baques irregulares contra a tabela. Normalmente, o meu pai suspirava exasperadamente em relação a esta banda sonora constante no nosso final de tarde, mas esta noite não parecia notar. No entanto, recuou um passo e fechou suavemente a porta do escritório, como se não se tivesse apercebido quão profundamente egocêntricas a Ophelia e a Juliet eram e o pouco interesse que teriam nesta conversa.

— Eu e a tua mãe tentámos manter o contacto com eles. Enviámos-lhes fotografias quando nasceste. Quando a tua mãe morreu, contactei o irmão. Sabes o que recebi de volta? Uma carta do advogado.

Oh. Estava familiarizada com aquela sensação. O meu pai esfregou os olhos. O torpor do vinho ao jantar tinha-se desvanecido, deixando-o cansado e machucado.

— O que é que dizia? — Tentei ignorar a desilusão esmagadora que estava a crescer dentro de mim. Tentei esquecer-me dos anos a pensar que talvez houvesse uma carta da família da minha mãe. Que deveria ter havido alguma razão para não contactarem. Pela expressão do meu pai, não me parecia que aquela carta fosse a que eu tinha estado à espera todos aqueles anos até agora.

— Não dizia muita coisa, na verdade. Só a conversa habitual de advogado. Que nem a tua mãe, nem qualquer um dos seus descendentes tinha quaisquer direitos à propriedade de Barnsley.

— Mais nada?

— Presumi que fosse por causa do que aconteceu com a tua mãe quando se veio embora, mas agora nem sei se ele sequer o sabia.

— O que é que aconteceu?

Abanou a cabeça. Fechando-se novamente em copas, como em todas as outras vezes na minha infância em que lhe fazia perguntas sobre a minha mãe e a sua família. Caminhou até ao aparador e serviu-se de um uísque num dos copos de cristal que a Fleur tinha ali disposto.

— É seguro beber isso? — Em todos os anos que o uísque tinha ali estado, tinha partido do princípio que era só para decoração. Mais um toque da Fleur. Na verdade, até àquele momento, não tinha cem por cento de certeza de que não era detergente. Pelo ar da careta do meu pai, ele também não.

— Então, o que te estava a tentar dizer é: não há lá nada para ti, seja qual for o plano idiota que estiveres a engendrar. E conheço-te melhor do que te conheces a ti mesma, mesmo que ainda não te tenha ocorrido, a certa altura nos próximos dias, a tua mente vai regressar a esta carta no meu bolso e vais pensar que talvez, só talvez, te devas envolver.

— Eu não estava…

O meu pai levantou vigorosamente a mão no ar, a que estava a segurar o uísque. Houve uma pequena quantidade de uísque que lhe salpicou a mão. Observei a gota a assentar, qualquer coisa era melhor do que estabelecer contacto visual. Não tinha a certeza se conseguiria disfarçar a emoção nos meus olhos.

— É melhor deixar algumas coisas — algumas pessoas — no passado. Podes achar que é boa ideia dirigires-te para lá para ver o que podes fazer para ajudar. Que podes compensar… — Hesitou. — Que podes resolver as coisas de toda a gente. Que podes fazer algo de extraordinário. Mas, Miranda — e desta vez olhou para mim diretamente nos olhos, e eu não podia fazer mais nada senão retribuir-lhe o olhar —, está na hora de cresceres. Está na hora de aceitares que a vida é vulgar.

Soube então que ele estava errado. Sabia que estava destinada a fazer alguma coisa especial. Claro que tinha começado em falso uma ou outra vez. Claro que tinha cometido erros, mas se a minha mãe me tinha mostrado alguma coisa, era que a vida não precisava de ser vulgar. Eu não precisava de ser vulgar.

Era muito nova no dia da nossa conversa, mas a minha mãe tinha sido insistente. O colar com o berloque — retirado do seu pescoço enquanto estava deitada na banheira, com a água quente a escorrer-lhe pelo pescoço abaixo e para debaixo da minha farda da escola quando me dobrei para recebê-lo — era uma joia da minha mãe, a essência da minha mãe. Não sabia que era um presente de despedida, que as palavras que me dirigiu nesse dia foram um legado calculado. Que ela então já devia saber como estava doente.

— Isto pertencia à minha mãe. E agora vou dar-to a ti. É uma lembrança do sítio de onde venho. De onde tu vens. — Parou para ganhar fôlego, fosse devido à sua doença, ou porque sempre teve tendência para as pausas dramáticas. — Da Casa Barnsley.

Voltei a esperar, tirando um momento para examinar o colar com atenção. Mesmo que tivesse sempre estado pendurado ao pescoço da minha mãe, agora era meu, e cada curvatura em ouro e ligações preciosas pertenciam-me. Os meus dedos traçaram as iniciais gravadas no escudo:

P.G.

Não fazia sentido. O nome da minha avó era Beatrice, o nome que a mãe tinha escolhido como o meu segundo nome. Miranda Beatrice Courtenay.

— O sítio mais belo do mundo — disse a minha mãe, de olhos a vaguear pela sua situação corrente com desdém. A casa de banho ainda não tinha sido renovada. A minha mãe tinha dado o seu melhor com uma banheira em segunda mão de pés de garra, mas ainda não havia soalho e o papel de parede estava caído em vários sítios. Muitos sítios. — Talvez um dia lá vás.

Fechou os olhos. — Barnsley é tão belo. Tão belo. É magnético. As pessoas são atraídas para o local. Pessoas especiais. — Os seus olhos abriram-se de repente, fixos nos meus. — Pessoas como eu e tu.

— Quem é o P.G.? — perguntei, contente por ter a sua atenção. Mostrei-lhe o escudo, mas ela não olhou para ele.

— A casa das noivas.

Eu era então demasiado nova para entender a mitologia do lugar. Só sabia que A casa das noivas era o livro da minha mãe. O livro. Ela era A casa das noivas.

— Sarah… Gertrude… Elspeth… Houve algumas mulheres incríveis nesta família. — A minha mãe sentou-se, com a água da banheira a chapinhar e a fazer ondas. Desviei o olhar protegendo a privacidade da minha mãe, mas ela agarrou-me na mão, forçando-me a olhar para ela. Tentei não reparar como os seus dedos estavam ossudos, como o seu outrora corpo forte parecia tão frágil. — Promete-me, Miranda. Promete-me que não vais ser vulgar. — O seu lábio enrolou-se ligeiramente a dizer a palavra. — Promete-me que também vais ser uma mulher incrível.

A minha pele arrepiou-se com a memória. Ouviu-se um grito na porta ao lado. Uma bola de basquetebol saltou pesadamente pela rua abaixo. Um baque surdo ao aterrar no capô do carro do meu pai e depois a ligeira pausa até o alarme do carro trespassar o ar silencioso da noite. Ficámos a olhar um para o outro por mais um momento, como se mais alguns segundos pudessem aliviar o ambiente entre nós e, de alguma forma, fazer desaparecer por magia a desilusão e arrependimentos do último ano. Por fim, o meu pai suspirou e virou-se para se ir embora. Ouvi-o agarrar nas chaves do carro da bandeja no corredor e depois a sua cabeça reapareceu de repente à entrada.

— Grant and Farmer, Miranda. Na próxima segunda. Sem desculpas. — E depois ouviu-se a porta de entrada a bater.

A casa das noivas

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