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— UM BRINDE À Miranda — disse o meu pai enquanto erguia o copo no ar, fazendo-o chocar de seguida com força contra o copo igualmente erguido da minha madrasta. — Que a tua carreira na Grant and Farmer seja longa e próspera!

Não era a primeira vez que ele brindava a uma nova direção na minha carreira — só deus sabe que houve algumas voltas e reviravoltas antes de me ter dado mal desta última vez —, mas foi a primeira em que ele se envolveu na missão de tentar arranjar-me um emprego. Depois de tudo o que aconteceu, eu não tinha outra hipótese senão aceitá-lo.

O meu pai teve de cobrar alguns favores. E quando isso não funcionou, acho que teve de começar a fazer promessas. Cedências. Acho que não chegou ao ponto de haver mesmo troca de dinheiro, mas não tenho a certeza. Não me pareceu estar a imaginar coisas quando lhe detetei uma ligeira ameaça na voz. Mais do que um ligeiro ênfase na palavra longa.

— Sim, querida Miranda. Boa sorte na Grace and Favour! — disse a minha madrasta Fleur, juntando-se ao brinde, mesmo já tendo terminado de beber o seu segundo copo de champanhe.

Ri-me, apesar de tudo. A Fleur só era verdadeiramente engraçada durante uma pequena parte do dia, algures entre a sua segunda e quarta bebida. E aquela janela era muito mais curta do que se poderia esperar, dada a sua habilidade em consumir champanhe e vinho branco seco.

Para além disso, eu queria apreciar esta celebração enquanto durasse; era a primeira vez que tínhamos alguma coisa para celebrar em muito tempo. A julgar pelo ar das minhas duas meias-irmãs mais novas, sentadas em silêncio e a abanar os cubos de gelo da limonada enquanto a alegria continuava em seu redor, também elas sabiam bem que as coisas rapidamente se podiam alterar. É só aguardar, diziam os seus rostos, ela também vai estragar isto.

— O que é que alguém com uma licenciatura em escrita criativa vai fazer numa empresa de relações públicas? — perguntou a minha madrinha Denise, virando-se para mim depois de o brinde ter acalmado. Como era hábito, a minha família tinha escolhido esquecer a minha pós-graduação em nutrição e dietética. À nossa volta, os empregados pousavam os tabuleiros das entradas: reluzentes pimentões vermelhos grelhados, rolos grossos de presunto, e carnudas azeitonas sicilianas. O meu restaurante italiano preferido era sempre o local para todas as celebrações familiares, e no que concerne a celebrações de família, eu ter finalmente conseguido arranjar outro emprego era bastante significativo. Pelo menos era o que parecia que o meu pai estava a tentar dizer-me ao convidar a família inteira, incluindo os meus padrinhos, para se juntarem ao jantar de celebração.

— O que é que alguém com uma licenciatura em escrita criativa vai fazer seja onde for? — disse bem alto o meu pai na ponta da mesa, rindo-se ruidosamente da própria piada, olhando em redor para se assegurar de que os clientes à volta também se estavam a rir. Lá se foi a minha tentativa de passar desapercebida.

— Não é tudo escrita criativa nas relações públicas? — interveio a Fleur. — Ou sou eu que estou a ficar confusa com as notícias falsas?

Eu estava preocupada que toda a conversa sobre escrita criativa pudesse descambar numa discussão sobre a escrita criativa que me lançou em sarilhos, por isso concentrei-me na Denise ao responder. — Acho que no começo vou ser só mais uma espécie de assistente executiva. Não terei nada a ver com clientes. Talvez acabe por poder trabalhar nalgum copy, coisas assim, imagino.

Não soei mais entusiástica do que me sentia. Trabalhar como copy estava tão longe daquilo que tinha andado a fazer. A gerir o meu próprio negócio. Um blogue famoso. Um contrato literário. A comunicação social dizia que eu era influenciadora.

— O que é uma assistente executiva? — perguntou uma das minhas meias-irmãs. Daquela vez, a Ophelia, mas podia facilmente ter sido a Juliet, dado que o conhecimento geral de ambas era igualmente não-existente. E sim, todas temos nomes saídos de Shakespeare. A minha mãe começou a tradição e a minha madrasta continuou-a. O meu nome tinha algum significado para a minha mãe, ao passo que suspeitava que a minha madrasta teve de usar o Google. Cérebro matemático, diz ela. Cérebro de ervilha, acho eu.

— Reservam voos, preparam as salas de reuniões, esse tipo de coisas — arrulhou a minha madrasta, acariciando suavemente o cabelo da Ophelia devido à natureza potencialmente perturbadora desta informação. — E é por isso que não quero que tirem uma licenciatura em artes. — A Ophelia e a Juliet acenaram solenemente, mesmo que estivessem a vários anos de distância de tomar quaisquer decisões sobre as suas formações universitárias.

Concentrei-me em encher o prato com uma seleção de entradas, prestando mais atenção do que era realmente necessária à colocação da comida, de forma a conseguir engolir as lágrimas que ameaçavam verter para cima dos pratos de barro.

— A mim parece-me ótimo — disse a Denise a apertar-me a mão, mas a compaixão na sua voz piorou as coisas. Ela estaria a pensar na minha mãe, a sua melhor amiga, e a perguntar-se como é que eu podia ter saído tão medíocre quando a minha mãe tinha sido tão extraordinária. Desejei que regressasse a Londres com a sua pequena família perfeita e me deixasse ali com as pessoas que não esperavam muito de mim. Era mais fácil assim.

A conversa mudou para uma viagem de esqui que a Denise e o Terence tinham planeado. Senti-me a desligar, a pensar em vez disso no casarecce com beringela e salsicha italiana que em breve estaria a vir na minha direção, e no tiramisu que se seguiria, se estivesse disposta a arriscar os comentários de desaprovação da Fleur.

— E é por isto que ela não consegue manter um emprego a sério — ouvi o meu pai a dizer quando me apercebi de que o empregado de mesa estava a tentar pousar-me o jantar à frente. — Sempre a sonhar acordada. — Era verdade, eu era uma sonhadora. O meu pai costumava achar isso engraçado, até encantador, mas ultimamente andava a fazer todo o tipo de observações irónicas. Não podes ser assim tão vaga a vida inteira, Miranda. Já tens vinte e seis anos. Não está na altura de encarares a realidade?

Eu conseguia perceber porque é que estava preocupado. Não me conseguia imaginar sentada a uma secretária o dia todo, a prestar atenção em reuniões intermináveis, a lembrar-me de números, nomes e datas, mas era isso que ia fazer assim que começasse na Grant and Farmer.

Havia risadas por todo o lado em redor: estridentes da parte da Fleur, educadas da Denise. Conseguia vê-la outra vez a observar-me e sorri-lhe debilmente para mostrar que estava bem.

O barulho do restaurante subia de tom à medida que a noite progredia. As cadeiras eram arrastadas para trás quando os clientes se levantavam para se cumprimentarem, o sommelier puxava as rolhas para fora de garrafas de prosecco e os empregados transportavam taças intermináveis de pasta a fumegar saídas da cozinha. O ambiente era leve, os aromas divinais e nas mesas à nossa volta as pessoas sorriam, riam e bebericavam Chianti e pinot grigio, inclinando-se para a frente para se ouvirem bem uns aos outros por cima do burburinho.

Todas as mesas à exceção da nossa. Se não fosse a comida e a conversa que surgia em função dela, estaríamos quase completamente em silêncio. O que é que pediste? Spaghetti alle vongole. Tem um aspeto delicioso, não é que tens gostos maduros? Este Barolo está delicioso, Bruce. Sim, é um dos teus favoritos. Este sítio nunca muda, pois não? É por isso que gostamos dele, Terence.

Tinha sido má ideia convidar os O’Halloran: de algum modo, a presença de estranhos realçou a inquietação a que me acostumei de alguma forma ao longo dos anos, e agora conseguia ver o que a nossa família composta devia parecer aos olhos deles. Se a minha mãe ali estivesse, a nossa mesa ia parecer exatamente igual às outras e tenho a certeza de que não era a única a pensar isso. O tiramisu ia ter de esperar por outra ocasião. Eu precisava de sair dali.

— Meninas? Querem que vos leve a casa? Não têm trabalhos de casa ou de ensaiar oboé?

O alívio nos rostos da Juliet e da Ophelia foi imediato. A noite desabrochou à frente delas: a loucura das redes sociais, a Netflix, e as chamadas telefónicas sem os pais em casa. Não era fácil crescer com o meu pai e todas as suas regras.

Não há chamadas após as 21h00.

Não há telefones no quarto.

Não há televisão durante a semana.

Não há dormidas em casas do sexo oposto.

Não há telefones à mesa.

Não há piercings.

Não há tatuagens.

Não há álcool.

Não há drogas.

Não. Não. Não.

Eu sei, vivi com ele durante muito tempo. Demasiado, na minha opinião. E na dele. E na da Fleur.

E agora estou de volta a casa.

No entanto, a Juliet e a Ophelia, ainda parecem pensar que eu sou fixe, nem que seja porque posso levá-las de carro a qualquer lado e mexer no meu telefone sempre que quiser. Até acham fixe que eu agora trabalhe numa loja de roupa desportiva e que lhes consiga arranjar desconto nas calças de compressão que elas e as amigas usam o tempo inteiro. Infelizmente, o meu pai não é assim tão fácil de impressionar.

— Leva o meu carro, pequerrucha. — O meu pai fez um grande alarido ao tirar a chave e fechar a sua mão à volta da minha. — Nós apanhamos um Uber. — Como se me estivesse a fazer um favor.

A Juliet e a Ophelia tagarelaram o caminho inteiro dentro do carro sobre a escola, os rapazes, os amigos, o The Voice.

— Porque é que vocês não estavam animadas no jantar? — perguntei após terem passado dez minutos até conseguir dizer uma palavra. — Agora parecem ter coisas a dizer.

— A Denise é estranha. Olha sempre para nós de uma forma esquisita quando falamos. Odeia-nos — explicou a Juliet.

— E odeia a mãe. — Portanto, a Ophelia sentia o mesmo.

— Isso não é verdade. — Não tinha pensado nisso dessa forma. Pensava apenas na Denise e no Terence como parte da família.

— É, sim. E está sempre a olhar fixamente para ti com uma expressão esquisita na cara. Reparaste?

Virei a esquina para a minha antiga rua, a prestar pouca atenção à estrada. Embora tivesse vivido fora de casa durante uns anos, ainda conseguia conduzir até ali em piloto automático.

Ainda pensava nela como a minha casa: a casa recuperada dos tempos da Federação que os meus pais tinham comprado quando se casaram e pensavam que tinham todo o tempo do mundo para estarem juntos. Afinal não tiveram assim tanto tempo e a casa só foi renovada anos mais tarde, quando a Fleur e a sua comitiva de arquitetos e empreiteiros caros apareceu em cena.

— Não — menti.

A Denise tinha passado imenso tempo nesta visita a olhar fixamente para mim. As pessoas sempre me tinham dito que eu não me parecia nada com a minha mãe, que eu era completamente parecida com o meu pai. A tua mãe era linda, diziam de um fôlego só, como se eu não pudesse entender a insinuação.

Mas talvez a Denise conseguisse ver algo em mim? Talvez eu me estivesse a parecer mais com a minha mãe à medida que envelhecia? Tentei ver o meu reflexo no espelho retrovisor enquanto estacionava ao pé da casa, mas não conseguia ver nada à luz do crepúsculo. Ouviu-se um raspar sonoro quando os pneus bateram na sarjeta. Praguejei entredentes quando percebi que os cantoneiros tinham deixado os nossos caixotes do lixo vazios no meio do caminho de entrada.

— Oh, o pai vai matar-te — sussurrou a Juliet. Alegria. Havia decididamente alegria no seu tom de voz. — Quantos champanhes é que bebeste, afinal? Borracholas! — Ambas se riram juntas, inebriadas pela liberdade, pela limonada e satisfação pelo meu infortúnio.

— Mal bebi um copo. — Era verdade, eu não bebia muito. Teria provavelmente pedido uma Coca-cola Light se a Denise e o Terence não estivessem ali. — Podem, por favor, ir tirar os caixotes do caminho?

O pedido foi recebido com o som das portas a bater. O par correu pelos degraus de pedra acima.

— Vá lá, Miranda, estou aflita. — A Ophelia deu um espetáculo a saltar de um pé para o outro, um movimento que se devia mais aos anos de aulas de teatro e oratória do que a quaisquer necessidades urgentes de bexiga. — Deixa aí o carro. O pai não se vai importar.

Olhei para cima, para a árvore acima do carro, cuja seiva tinha sido assunto de inúmeras discussões de família ao longo dos anos. O pneu estava mesmo encostado contra o passeio. Quaisquer danos seriam apenas visíveis quando se movesse.

— Está bem. — Suspirei. — Da próxima vez não bebam tanta limonada. — Era só por um instante, disse para mim. Regressaria e afastaria os caixotes e o carro assim que tratasse das miúdas. Subi as escadas para me juntar a elas a admirar o jardim pelo caminho.

Apesar de todas as falhas da Fleur, tinha de facto talento para a jardinagem. Ou para a arquitetura paisagista, como sempre me corrigiu. Nesta altura do ano, o jardim estava incrível e um foco de luz bem colocado realçava o jacarandá em flor em toda a sua glória. A minha mãe iria adorar. Uma das poucas coisas que tinha sido capaz de deduzir da sua escrita era o seu amor pelo mundo da natureza, a sua afinidade com o ar livre.

O cheiro da casa atingiu-me assim que abri a porta. Fechada o dia inteiro, pareceu ter manifestado a sua fragância: os restos das sempre presentes velas de figo da Fleur, as flores de gardénia a flutuarem numa taça na mesa do hall de entrada e o inconfundível cheiro de um pinheiro de Natal. Subjacente a tudo, o cheiro a lar. Algumas coisas não tinham mudado, apesar de tudo.

— Já há árvore de Natal? — perguntei à Ophelia enquanto me empurrava para passar, com a sua necessidade desesperada de ir à casa de banho aparentemente esquecida, enquanto eu via devagar algumas cartas pousadas na mesa do hall.

Durante muito tempo não tinha havido nenhuma para mim. Revistas da escola de tempos a tempos. Catálogos. Nada de interessante.

E depois, os envelopes grossos dos escritórios de advogados começaram a chegar. Nalguns dias havia maços deles. Noutros, só um ou dois. Mas durante alguns meses foi incessante.

Suspirei de alívio que não houvesse nada para mim naquele dia.

— Já sabes como é a mãe — disse a Ophelia ao longe. Ouvi-a a atirar-se para o sofá, com o som da televisão a acordar para a vida. Estava em casa e podia ligá-la. Do sítio onde estava parada, conseguia ver a Juliet através do conjunto de janelas envidraçadas nas traseiras da casa.

Quase passei pelo envelope sem o ver. De papel pardo com um canto completamente coberto de selos coloridos, todos impressos com a pequena cabeça da rainha de perfil. Exatamente o mesmo tipo de envelope que eu tinha passado a infância inteira à procura.

A morada tinha sido riscada e reescrita, novamente riscada e reescrita. Era como se tivesse andado no sistema postal durante algum tempo e tinha obviamente atravessado meio mundo. Mas essa não era a parte estranha. A parte estranha era a quem estava endereçada.

À minha mãe.

A casa das noivas

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