Читать книгу A casa das noivas - Jane Cockram - Страница 13
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ОглавлениеFOI A vergonha que acabou por me fazer decidir. As pessoas dizem que não se pode fugir dos problemas, mas pode. Só é preciso encontrar um sítio qualquer como Barnsley, com uma ligação duvidosa à Internet e pessoas tão ocupadas que não se importassem minimamente com o que todas as outras pessoas no mundo andavam a fazer. Foi um choque encontrar pessoas que não sabiam ou se importavam com o que estava a acontecer no Instagram ou nas redes sociais. Era mesmo do que eu precisava.
Mas não foi a carta que acabou por me fazer decidir. Apesar do que o meu pai disse naquela noite no escritório. Eu não tinha um plano nessa altura, mas talvez a semente estivesse plantada e só tivesse sido preciso alguém para a nutrir. No final, foi uma mulher que eu nem sequer conhecia que me fez bater no fundo. Uma estranha. Foi uma das poucas pessoas que me disse alguma coisa na cara. A maioria escondia-se por detrás dos seus perfis no Twitter ou tentavam suavizar o golpe daquilo que estavam a escrever com hashtags intermináveis. #autêntica #bem-estar #falsa
Um dia normal de trabalho, alguns dias depois de eu ter encontrado a carta. Era a minha última semana na loja de roupa desportiva. Era suposto começar na Grant and Farmer na segunda-feira seguinte. Apesar do crescente calor de verão, eu tinha sempre frio. Ou era a culpa, ou o ar condicionado que punham no máximo na loja para fazer com que os clientes se sentissem com mais vontade de experimentar calças de compressão e fibras sintéticas.
A mulher que me levou ao limite parecia inocente, ao início. Quarenta e poucos anos, razoavelmente em forma: boas pernas, mas consciente do seu abdómen. O cliente semanal típico. Estávamos a dar-nos bem. Depois de tudo o que se tinha passado, as minhas ligações mais significativas eram com estranhos. Jogava cardio-ténis duas vezes por semana, fazia Pilates. Bebia mais do que devia, mas não é isso que toda a gente faz? Experimentou a dieta 5:2 e a do tipo de sangue, sem muito sucesso.
Eu estava nas cabines de prova nesse dia. Fazíamo-lo em turnos rotativos na loja. Uma hora nas cabines de prova, uma hora no piso de merchandising e a falar com os clientes, uma hora na caixa registadora. Talvez se eu estivesse na caixa registadora, ela pudesse não ter dito nada. Há uma troca emocional menos significativa nessa altura. Os clientes começam a preocupar-se. A parte lógica do cérebro entra em ação.
Tomei a decisão certa?
Devo pagar isto com o Visa ou usar o dinheiro da alimentação?
Preciso mesmo deste top curto/tapete de ioga/casaco impermeável de duas cores? Aquele é o inspetor de estacionamento?
O mundo real fica mais próximo.
Mas estávamos no casulo das cabines de prova: tudo cheio de iluminação suave e espelhos colocados no ângulo certo. Ali o mundo é um sítio bom.
Eu tinha-a na mão: três calções no tecido novo que mal se via, dois tops bastante compridos com costas para corrida que, por sua vez, exigiam a compra de um sutiã específico. Seria um bom começo para atingir o meu total de vendas do dia. Ela tinha acabado de dar a voltinha obrigatória ao espelho quando o disse. Num minuto, estava a assegurar-lhe que não, que eu decididamente não lhe conseguia ver a roupa interior através das leggings, e que sim, que ela ia sentir-se cem por cento confiante durante os agachamentos das suas sessões de Pilates; no seguinte fui deixada atordoada, dobrada e a retirar-me da cabine de prova. O meu lugar seguro? Já não era assim tão seguro.
— Você é aquela rapariga, não é? — perguntou ela, com a cabeça a balançar entre os joelhos enquanto tentava apanhar um vislumbre da sua traseira ao espelho.
Nessa fase eu era uma concha: passava pelos movimentos do dia-a-dia, mas sem qualquer satisfação. Para além da minha família e dos meus colegas de trabalho, não via ninguém. Tinha demasiado medo de contactar os meus velhos amigos, e os meus seguidores, bem, a essa altura já andavam a seguir outras pessoas. O gerente da loja sabia da minha história, mas mais ninguém sabia quem eu era. Os dez quilos a mais que ganhei devido à comida reconfortante e à prisão domiciliária tinham algo a ver com isso, mas tinha parado de fazer madeixas e evitava o contacto visual. Para além disso, a maioria das minhas publicações eram sobre comida e aquilo que eu costumava chamar de #fitspo. Na maioria das vezes, mantinha a minha cara fora disso.
O cabide que eu estava a segurar caiu a tilintar no chão. Empurrei rapidamente a porta da cabine para a fechar para que ela não me pudesse ver.
Para que não pudesse ter a certeza.
— Quem? — perguntei a tentar evitar que se notasse o embargo na minha voz.
— Aquela rapariga? Aquela da app? A que fez declarações sobre fertilidade, cancro e não sei que mais. — Riu-se, como se achasse a coisa toda ridícula. Como se não pudesse bem acreditar que estava sequer a falar de mim, quanto mais comigo.
— Essa? — A minha voz soou esganiçada. Transtornada. — O que é que ela estaria a fazer a trabalhar aqui? Tenho a certeza de que está escondida num sítio qualquer com montes de dinheiro à espera que a coisa toda desapareça. — Porque era o que andavam a dizer de mim online e eu não tinha outra opção credível.
— É parecida com ela, não é? Imagino que esteja sempre a ouvir isso! Dificilmente é a pessoa ideal com quem ser comparada! Toda a gente a odeia! Depois do que ela disse àquela mulher! E sem qualquer sustentação médica. É criminoso.
Não era. Os meus advogados, após muitas deliberações e ainda mais horas faturadas, tinham decidido que as queixosas não tinham caso para levar a julgamento. Se eu restituísse o dinheiro das vendas da app e suspendesse as minhas contas nas redes sociais, então acabar-se-ia tudo. Só que não foi assim. Estaria a enganar-me se achasse que foi.
— Não me parece que ela alguma vez tenha feito declarações sobre cancro. Isso foi aquela outra rapariga — respondi em desespero. Não tinha mesmo feito. Nos meus piores momentos, tinha sido esse o meu consolo. Que havia outros que tinham feito pior. Que outros tivessem feito mais danos.
Tinha começado no Instagram. A partilhar fotografias de comida saudável. Saladas arco-íris, taças de açaí, bolas energéticas. Começou por ser só um hobby, enquanto andava na faculdade, mas foi na altura certa. Os meus seguidores não paravam de aumentar. Fiz um curso de fotografia e um curso de media digital.
As pessoas começaram a convidar-me para seminários de saúde e bem-estar. Eram salas enormes de mulheres que queriam ouvir o que eu tinha a dizer, que me tiravam fotografias. Aplaudiam quando eu falava, republicavam as minhas fotografias e comentavam as minhas publicações. As empresas pagavam-me pelo marketing indireto. Comecei a acreditar que era especial. Que aquilo era a vida extraordinária para a qual estava destinada.
Algumas pessoas que o meu pai conhecia na comunicação social contactaram-me para desenvolver uma app. Foi um sucesso instantâneo. Os sete dias de detox e o mês de alimentação saudável eram os que vendiam mais. Pagaram-me o carro e fiquei com condições para sair de casa.
Talvez se me tivesse ficado só por aí, tudo tivesse corrido bem. Mas houve um dia em que uma mulher me contactou e me contou que andava a tentar ter um bebé, mas estava com dificuldade em engravidar. E que depois seguiu a minha dieta e engravidou. Colocou-me uma ideia na cabeça. Uma nova app, uma dieta para ativar e encorajar a fertilidade. A Mãe Miranda.
— Mãe Miranda! É isso. É mesmo você. — O brilho revelador do ecrã do seu smartphone resplandeceu por debaixo da porta. A sua voz soou convicta e acusatória, tal como a de todos online. — É preciso ter muita lata. A minha irmã comprou a sua app…
— A maioria das pessoas diz que me pareço com a Julianne Moore em jovem. — Tentei dizê-lo sem raiva na voz, mas pela primeira vez em dias, a minha temperatura corporal subiu. A mulher não parava de falar. Até a Rosie na caixa registadora ouvia.
Bloqueando a porta com o meu corpo, virei a fechadura, deixando a mulher presa lá dentro, ainda a falar sobre a pessoa horrível que eu era. Sou. Saí pela porta para o armazém, vasculhei no meu cacifo à procura da minha mala, chaves e telefone. Tirei a minha identificação e pendurei-a num cabide.
Estava quase a sair pela porta das traseiras quando algo dourado me chamou a atenção. De algum modo, o meu colar de berloque tinha ficado enrolado no cordão da placa de identificação e estava pendurado, ainda a balançar ligeiramente do movimento da sua apressada remoção. Agarrando-o de volta, segurei-o com força na mão. Ainda estava quente da minha pele e parecia transmitir uma sensação de calma. Como se de alguma forma me ligasse à família da minha mãe através dos anos e oceanos. Como se talvez me oferecesse a possibilidade de ser uma pessoa diferente.
Não havia ali nada para mim. As batidas vindas da cabine de prova fizeram-me ter quase a certeza. Abri a pesada porta das traseiras, ignorando o alarme acionado pela minha saída, e senti o calor do sol do meio-dia a aquecer-me. Respirei fundo. Atualmente, o ecrã vazio do meu telefone já não era um choque tão grande. Antigamente tinha um dilúvio de mensagens e notificações. Agora mostrava simplesmente a data e hora. Um cenário de fundo inócuo com um protetor de ecrã padrão.
Abri a primeira página da Qantas, convencida de que se o fizesse depressa, não me ia sentir tão mal. De que não teria hipótese de mudar de ideias. Demorou mais a calcular as horas e preços dos voos do que eu esperava. A qualquer altura podia ter fechado o navegador, considerado ser má ideia e regressado para dentro da loja com o rabinho entre as pernas. Mas não o fiz. O preço, quando surgiu, fez-me ficar sem fôlego. O Natal estava próximo e só havia tarifas disponíveis em executiva. Custavam muito mais do que eu tinha na minha conta bancária, muito mais do que eu teria gastado no auge do meu sucesso.
Só havia uma opção. Ele atendeu ao primeiro toque, mas fazia sempre isto com as filhas. Quaisquer que fossem as nossas diferenças, estava sempre disponível para mim. Não falou de imediato, acabando a sua conversa antes de se dirigir a mim. Eu esperava que se tivesse esquecido da nossa conversa na outra noite.
— O que se passa?
Cada telefonema era uma lembrança daquele que eu lhe tinha feito meses antes, em lágrimas e desespero. O pânico na sua voz ainda não tinha desaparecido por completo, mas estava agora mais suave.
— Pai?
— Sim, pequerrucha. — A frustração misturada com o alívio de não ser urgente. De eu não estar a soluçar como da outra vez.
— Acabei de ver um livro incrível para a Fleur. Para o Natal. Gostava imenso de comprá-lo para ela, mas… — Deixei a frase por acabar.
— Mas o quê? — Agora decididamente com mais frustração do que alívio. Murmurou algo a alguém, afastado do telefone.
— É caro.
Um suspiro.
— É sobre os jardins em redor do Lago Como. — Foi um golpe baixo. O pai tinha levado a Fleur a Itália na lua-de-mel e falavam muitas vezes sobre a possibilidade de lá voltarem assim que as miúdas acabassem a escola. Tentei não pensar em como esta minha pequena excursão os podia voltar a atrasar um par de anos.
— Isto não pode esperar?
— É o último. São de um fornecedor estrangeiro e não conseguem mandar vir mais antes do Natal. Queria só comprar-lhe alguma coisa bonita como agradecimento. Por tudo.
A vergonha fez-me a bílis subir à garganta e engoli-a de volta. Estava a ficar mais fácil lidar com isso com o tempo, como se tivesse tido terapia de exposição ao mau comportamento. Ainda assim, isto era a pior situação possível para mim. Apesar de tudo o que as pessoas diziam de mim, tudo o que fiz foi com boa intenção. Pensava genuinamente que estava a ajudar as pessoas. Desta vez, não tinha tal ilusão. Forcei-me a recordar-me da cara do meu pai no escritório na outra noite. A forma como se fechou em copas e não me disse mais nada sobre a minha mãe. A forma como mantinha segredos. A forma como me estava a mentir.
— Eu passo-te à Susie. — A sua secretária. Ela geria-lhe a vida. E as finanças. Dar-me-ia as informações do seu cartão de crédito. Ia pedir o American Express, pois sabia que não tinha limite e, bom, pelo menos receberia pontos disto.
— Obrigada, pai.
— E, Miranda?
— Sim? — Já o tinha em alta voz a essa altura, a atualizar rapidamente o ecrã para que o bilhete não se perdesse.
— Sei que não preciso de dizer isto. — Sinto-o a hesitar. — Mas só o livro, está bem? — Vergonha de novo. Quente e ácida. Mas a essa altura já mal conseguia notar.
— Está bem. — Passou-me à Susie e ela deu-me as informações. A transação passou sem qualquer problema. Ia no próximo voo para Heathrow, graças ao meu pai.
Como referi: bater no fundo.