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SE HÁ uma pessoa no mundo que percebe bem a diferença entre uma persona apresentada na Internet e a realidade dessa pessoa, devo ser eu. Sei tudo sobre filtros, ecrãs fumados, omissões deliberadas e inclusões estratégicas. Percebo de marketing, branding, criação de imagem e relações públicas. Pensei que estava pronta para o Max porque tinha descoberto a sua conta no Instagram.

Estava pronta para a pálida imitação do homem das imagens. São sempre. Os homens nunca são tão bronzeados ou altos como parecem online, e as mulheres são sempre mais bronzeadas e mais magras. Toda a gente parece mais velha na vida real. Ou IRL[1], como eu lhe costumava chamar. O Max era uma exceção a essas regras.

Não postava imagens há mais de um mês, mas a conta ainda estava ativa. No começo, tinha sido um tesouro de informações, até eu ter chegado ao familiar ponto doentio de saturação e de me ter forçado a parar de passar as fotografias. A última imagem que tinha publicado era da Daphne ao pé de uma fogueira ao ar livre com um copo de vinho quente na mão.

As fotos mais antigas apresentavam uma vida encantadora: veleiros ao pôr-do-sol, férias nos Alpes e crianças a correr em pedaços intermináveis de relvados. Na vida real, agora sabia que a relva verdejante tinha sido invadida por ervas daninhas e estava à espera do equivalente humano. Um homem no seu auge, abatido pelo insidioso rastejar da vida.

Estava errada.

Apesar do cabelo grisalho do Max, tinha uma aura jovem e uma natureza divertida no olhar quando sorria, tal como estava agora a sorrir. Parecia mais novo do que o meu pai. Imagino que a sua idade andasse pelos quarentas e muitos. Se a minha mãe estivesse viva, teria quarenta e oito anos. Suspeitava que ele fosse só um ano mais velho ou pouco mais. A sua familiaridade desconcertou-me por um instante, até me ter lembrado de que era suposto eu ser a ama. Não devia deixar que o meu reconhecimento se mostrasse. Calma, Miranda. Vai com calma. Os meus olhos deslizaram aleatoriamente pela divisão, ansiosa por encontrar outra coisa qualquer para onde olhar.

Concentrei-me na sua roupa. Vestia uma camisola preta de gola alta que lhe deveria ficar ridícula, mas que, contra todas as probabilidades, não ficava. Mostrava-lhe a constituição magra e não o fazia parecer ter carne a mais à volta da papada, da mesma forma que parecia nalguns homens.

— Olá, sou o Max Summer — apresentou-se. Levantou-se e esticou-me a mão para a apertar, mas permaneceu atrás da secretária, forçando-me a aproximar-me e sair da sombra onde eu estava a tentar ficar o máximo de tempo possível.

— Miranda — respondi, deixando propositadamente o apelido de fora, Courtenay, mesmo apesar de ter a certeza de que não me iria distinguir. Não tinha a certeza de que se lembraria ou sequer conheceria o nome do marido da minha mãe, mas não me pareceu valer a pena o risco.

— Miranda — repetiu ele de imediato, e olhou para mim de alto a baixo. Senti os seus olhos em todas as partes do meu corpo e senti-me aliviada por estarem, na maioria, cobertas de roupa. — Veio reclamar o seu reino?

Recriminei-me.

O Max deve ter visto o medo nos meus olhos, pois primeiro riu-se e depois disse: — Então não é fã de Shakespeare, hã?

— A minha mãe era… — respondi antes de me calar.

Estava habituada a que as pessoas comentassem o meu nome na Austrália. Ou, de forma mais precisa, estava habituada a que gritassem o meu nome em som agudo, numa imitação dos últimos minutos do filme Piquenique na Montanha Misteriosa. Não estava habituada a que as pessoas fizessem a ligação a Shakespeare, a ligação que a minha mãe tinha pretendido.

Se o Max não se tinha já apercebido de quem eu era, precisava de parar de lhe dar dicas. As minhas motivações eram tão retorcidas e dissimuladas que deixei que a realidade retrocedesse. Tinha-me esquecido do que vinha ali fazer e de quem eu era, aos olhos do Max. Por agora, não queria que soubesse que era sua sobrinha. Se quisesse dar um bom espetáculo a ser ama, tinha de pensar como uma. — Onde é que estão as crianças?

O Max suspirou como alguém que tinha sido indevidamente interrompido e desiludido de seguida pela intervenção. — As crianças — repetiu, com o brilho no olhar a ficar ligeiramente menos brilhante.

— Posso voltar noutra altura — disse eu, de repente ciente de que já era tarde e da minha aparição sem aviso prévio. Até a mim não me parecia muito bem a minha chegada surpresa numa noite fria de inverno mesmo antes do Natal.

O Max ignorou a oferta. — A Sophia é a mais velha. Tem doze anos e já não sente que precisa de uma ama. E tem razão. Não está cá tanto por ela, mas mais pelos outros. Principalmente pela Agatha, mas já falaremos dela. A Sophia é como a sua mãe, obstinada e apaixonada e capaz de fazer o que quer que tente. É atlética, mas também esperta e tem um julgamento astuto de carácter. Vai avaliá-la com bastante rapidez, por isso esteja preparada. Depois do Natal está matriculada num colégio interno aqui perto — mas virá a casa aos fins de semana — e mal pode esperar. Fartei-me de a ouvir dizer-me como odeia Barnsley e tenho a certeza de que vai mudar de tom assim que passar um período na escola. Não sabe a vida boa que tem.

Esta descrição não me disse nada, de facto, e não parecia a rapariga que tinha escrito à minha mãe. Ele podia estar a falar de qualquer miúda adolescente que conheço, como a Ophelia ou a Juliet, ou até eu naquela idade. A maioria dos miúdos com doze anos que eu conhecia estavam a descobrir-se a eles próprios e a acharem que o resto da população não interessava. Perguntei-me o que teria mesmo motivado a Sophia. Já sabia que ela tinha desplante suficiente para enviar uma carta a alguém do outro lado do mundo que nunca tinha conhecido e esse comportamento parecia casar com a descrição feita pelo Max.

— O Robbie é o meu rapaz e é do género sossegado. A maioria dos seus amigos são rápidos a lutar, a fazer piadas mal-educadas e a arranjar problemas, mas o Robbie afasta-se e fica a observar. Não se junta até ter a certeza sobre a situação e então, só mesmo se quiser. — O Max faz uma pausa e eu aproveito a oportunidade para perguntar a idade do Robbie. Acabou de fazer dez anos. — Não os celebrámos devidamente, não desta vez…

Senti a senhora Mins a agitar-se atrás de mim. Tinha-me esquecido de que estava ali e parecia que o Max também. — Obrigado, senhora Mins, eu tomo conta disto.

— Não preferes que eu…

O Max simplesmente abanou a cabeça e voltou a sentar-se na cadeira. Sem ser convidada, sentei-me na cadeira em frente. Uma mola dura tinha irrompido pela pele rachada e fazia-me pressão nas costas. Esperava que houvesse mais cuidado com a manutenção noutras áreas da casa.

— O Robbie gosta muito de edifícios antigos: fortes, castelos, qualquer coisa que tenha uma história ligeiramente violenta. Acho que gosta um pouco de se ver como um caça-fantasmas. — O Max deu um risinho. Eu não. Caçar fantasmas não me parecia uma noção assim tão absurda naquela casa.

— E depois temos a Agatha. A minha querida pequena Agatha. É a criança com o ar mais angélico que já se viu. — Ele entrou em êxtase a descrever a Agatha e os seus caracóis louros quase brancos, os seus olhos azuis e a sua boca em formato de botão de rosa. Achei que devia estar a dourar a pílula até conhecer a Agatha e ver com os próprios olhos que ele não tinha exagerado. Na verdade, acho que não lhe fez jus: a Agatha Summer era a criança mais divinal que alguma vez vi na vida. Mas o que ele deixou de fora da sua descrição acabou por ser bem mais importante do que os detalhes que incluiu.

— Podemos agora entrar e conhecê-la? — ouviu-se uma vozinha atrás de mim.

Esperando um sorriso indulgente da parte do Max, olho em direção à porta na expetativa. Estava mais do que preparada para conhecer os donos de todos aqueles sapatos na porta das traseiras, para colocar caras nos nomes e descrições, para conhecer os meus primos. A senhora Mins estava parada à porta, a fazer de conta que examinava as estantes.

Até de onde eu estava sentada, conseguia ver a lombada distinta d’ A casa das noivas. Era umas das edições especiais de capa dura, com a sobrecapa marmoreada. Aquilo não me surpreendeu. Imaginei a minha mãe a enviar cuidadosamente um exemplar, possivelmente a escrever uma nota lá dentro. Esperava que a dada altura conseguisse ficar sozinha na divisão para verificar. O que me surpreendeu foi o Max ter conservado o livro, apesar daquilo que o meu pai me tinha contado. Não pela primeira vez, senti que não tinha apanhado a história completa.

Ignorando o pedido, o Max disse, tardiamente e de alguma forma redundante: — E esta é a senhora Mins.

Agora forçada a olhar devidamente para mim, a senhora Mins esticou a mão como uma pata. Sem a certeza se a deveria beijar ou apertar, decidi-me pela última. — Imagino que o Max lhe tenha contado tudo sobre a casa.

— Um pouco, sim. — Na verdade, não me tinha contado nada, quer sobre a casa, quer, de forma mais alarmante, sobre a Daphne. Havia sinais da sua presença por todo o lado e, ainda assim, ninguém a tinha mencionado. — Ah, só sobre as crianças, na realidade.

A senhora Mins interpretou isso como um sinal para se lançar num discurso que parecia ter sido ensaiado. — A família Summer vive na Casa Barnsley há várias gerações, mas só recentemente é que a necessidade de diversificar e gerar mais rendimento se tornou urgente. Entre a gestão do local e da ilha, o dinheiro de família tinha desaparecido todo e os impostos sucessórios estavam a piorar a situação. O senhor Summer não teve opção.

— Sou eu — clarificou o Max.

— Chamam-se todos Summer, sabe? Pode tornar-se confuso.

— E muitas vezes também nos chamamos Maximilian. A mim chamam-me Max. Ao meu pai chamavam Maximilian.

— O senhor Summer — este, e a sua esposa — começaram o hotel. — Reparei que a senhora Mins não se referiu à Daphne pelo nome. — Foi, e é, um grande sucesso. — Ela tinha assumido o tom arrogante de um guia particularmente consciencioso do Fundo Nacional. A dada altura quase fiquei à espera de que falasse de lado para um walkie-talkie.

— E voltará a ser. Acabámos de receber uma reserva para setembro, não foi, Meryl? — O Max olhou para a senhora Mins, com uma vulnerabilidade evidente no rosto.

Ela sorriu-lhe de forma tranquilizadora. O rubor voltou-lhe ao peito. Esperei que o Max interviesse, para fazer regressar a senhora Mins aos assuntos domésticos, mas ele só acenou de forma encorajadora, fechando os olhos alegremente durante alguns momentos particularmente bajuladores, enquanto ela continuava a contar-me sobre a casa durante os tempos de guerra e a contribuição que a família tinha dado à pequena comunidade piscatória, ambas no passado como grandes proprietários, e agora como uma enorme atração turística. Era óbvio que a senhora Mins levava o seu trabalho muito a sério e que tinha um investimento emocional no hotel, mas era menos óbvio porque é que ela tinha de mo contar com tanto detalhe.

Mexi-me no lugar. Queria perguntar sobre a Daphne, mas não sabia como, sem revelar o quanto sabia. — A sua… — Engasguei-me com as palavras. — A sua es… Posso conhecer as crianças? — perguntei perdendo a coragem no último instante.

Um raspar na porta foi seguido por outra batida, de metal a bater na madeira, um silvo. Perguntei-me durante quanto tempo é que ele planeava ignorá-las.

— As crianças? — O Max olhou para mim com ar confuso.

— Sim, achei que seria bom conhecê-las…

— Vai aceitar o trabalho? — perguntou apressadamente a senhora Mins, movendo o seu corpo de novo para a frente da porta. Quase esperei que se atirasse contra ela.

Se ao menos o meu pai estivesse ali para ver aquilo: uma oferta de emprego no espaço de minutos. Sem desculpas desconfortáveis por causa das recomendações em falta. Sem perguntas incómodas sobre o processo judicial. Sem referências nojentas à inoportuna sessão fotográfica em fato de banho que tinha feito para uma revista de domingo. Devia ter-me mudado para o estrangeiro há mais tempo. Tê-lo-ia feito, se soubesse que podia fazer um corte tão limpo com a minha vida antiga.

Não hesitei. Estava ali para ajudar a Sophia. Estava ali para descobrir o que a tinha feito sentir-se tão desesperada ao ponto de achar que tinha de contactar uma parente há muito perdida no outro lado do mundo.

E, a um nível muito mais egoísta, estava ali para saber mais sobre a minha mãe. Se tivesse de contar algumas mentiras durante o processo, bom, paciência. Era a mulher certa para isso. — Sim, adorava. Se me quiserem.

O Max e a senhora Mins olharam um para o outro com alívio. Descrédito. Talvez até surpresa.

— Eu trago as crianças para dentro — disse rapidamente a senhora Mins, como se eu fosse capaz de mudar de ideia e sair por uma das portas do terraço a qualquer altura. Imaginei-a a encaminhá-las, em fila indiana, numa marcha de precisão militar.

A sua escolha de palavras tornou-se clara um momento mais tarde, quando a Sophia e o Robbie se apresentaram, seguidos pela senhora Mins a empurrar a Agatha que estava numa cadeira de rodas.

[1] IRL é a abreviatura de In real life, uma sigla normalmente utilizada nas redes sociais que em português significa na vida real. (N.T.)

A casa das noivas

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