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ОглавлениеA CARTA TINHA sido aberta. A aba, outrora diligentemente colada com camadas de fita-cola grossa, agora à deriva do corpo principal da coisa, com a fita-cola seca e sem utilidade. O endereço do remetente era-me familiar: mais simbólico do que qualquer outra coisa, um sinal do passado mais do que um verdadeiro local. Casa Barnsley. Era como receber uma carta do Polo Norte ou do céu.
Claro que eu tinha procurado aquele endereço do remetente na minha juventude. Nas costas dos cartões de aniversário e em envelopes. De cada vez que chegava uma carta com um carimbo régio no canto, de cada vez que via a cabeça da rainha com o seu azul, roxo e azul petróleo de fundo, tinha esperado que dessa vez a carta fosse de Barnsley.
No final, o meu pai comprou-me um álbum filatélico. Tinha interpretado mal o meu interesse pelo correio como um grande interesse em filatelia. Durante anos, rasgava diligentemente os selos e humedecia-os para os tirar do papel numa frigideira cheia de água, embora não tivesse qualquer interesse neles, de todo. O meu único interesse era encontrar uma carta com a morada escrita no envelope que estava agora à minha frente.
Foi suficiente olhar apenas por um instante para a formação mística daquelas letras.
Inspirei profundamente, tentando entorpecer ligeiramente a minha expetativa. Passados vinte anos, tinha antecipado cenários mais do que suficientes para aquele momento. Um pequeno, mas significativo contacto. Uma mensagem de Natal. Uma oferta para adoção completa.
Mas aquilo era diferente. A carta estava endereçada à minha mãe. Não sabiam que estava morta?
A ouvir cuidadosamente os movimentos das minhas meias-irmãs, movi-me para dentro do escritório do meu pai, fechando a porta quase sem fazer um som sobre o tapete de pelúcia. O crepúsculo avançou rapidamente pela divisão, dificultando a leitura das palavras, por isso levei a carta para o banco da janela, forçando-me a sentar-me e a respirar, apesar do fluxo de sangue nos meus ouvidos.
Desdobrei devagar a carta, prestando especial atenção ao espesso papel creme, levando-o depois até perto do meu nariz. Bafiento, sim, mas com um ligeiro cheiro a humidade. De fumo, até. Tinha esperado um momento proustiano — uma baforada do perfume a água de rosas da minha mãe ou uma saudável colónia masculina —, mas fiquei desapontada. Não me fez lembrar de nada para além da lareira na cabana húmida de praia que costumávamos alugar no Wilsons Prom durante a Páscoa.
Li a carta, a primeira vez depressa, e a segunda devagar, a tentar encontrar detalhes que não estavam lá.
Querida Tessa,
Encontrei a tua fotografia por acaso. Não devia ter procurado. O pai diz sempre que eu sou demasiado curiosa para o meu próprio bem, mas é o que acontece quando nunca ninguém nos conta nada.
O problema neste lugar é que, quando se começa a procurar respostas a uma questão, acaba-se por encontrar um conjunto inteiramente separado de segredos.
Adiante. Encontrei uma fotografia tua e tinhas um ar amável, normal. Não como as pessoas nas fotografias antigas normalmente aparentam, com penteados esquisitos e camisolas engraçadas.
Quando virei a fotografia ao contrário, tinha escrito «Tessa, 19», em letra antiga com arabescos, como se quem quer que a tivesse escrito tivesse medo de carregar na esferográfica com força a mais.
Por alguma razão nunca pensei em ti como uma pessoa real. Quer dizer, sabia que escreveste O Livro. Sabia que te foste embora há muito tempo, mas nunca pensei que pudesses ser capaz de nos ajudar. Na verdade, nunca precisámos antes de ajuda.
Aconteceu uma coisa má. Passa-se alguma coisa com a minha mãe. O pai diz que alguém precisa de cuidar de nós, mas diz que precisamos de mantê-lo em família. Vai enviar-nos para um colégio interno depois do Natal. Até à Agatha. Apesar do que aconteceu.
Podes vir cá ajudar-nos? Por favor.
Com amor,
Sophia Summer (a tua sobrinha)
Foi um choque ouvir uma voz jovem e contemporânea vinda de Barnsley. Uma voz que podia ter pertencido a qualquer das jovens que eu conhecia — uma voz que soava como a da Ophelia, ou a da Juliet. Eu tinha lido A casa das noivas centenas de vezes. O livro da minha mãe foi um sucesso quando foi publicado e conseguiu vender centenas de milhares de exemplares antes de ter saído de catálogo no final dos anos 1990. Mas nunca tinha pensado no que o livro poderia representar para as pessoas que viviam atualmente em Barnsley. Que se lhe pudessem referir como O Livro da mesma forma singular e reverente do que eu.
A casa das noivas era a minha única ligação à minha mãe e ao seu passado, e mesmo assim, não era a mais pessoal. O que eu sabia da Casa Barnsley era o que todos os leitores sabiam sobre ela. E do que eu me lembrava sobre a minha mãe era basicamente o mesmo do que eles. Era mais do que isso: a minha mãe era o livro, e o livro era a razão de eu ter estudado escrita criativa na universidade.
A casa das noivas abordava profundamente a história da Casa Barnsley; as mulheres que tinham casado com um membro da família e que tinham trazido mais fama e prestígio com elas. Eram escritoras, arquitetas e socialites, mulheres que, invulgarmente naquele tempo, tinham ultrapassado os limites e encontrado o sucesso, a notoriedade. Sarah Summer. Beatrice Summer. Os seus nomes eram-me mais familiares do que os de alguns dos parentes do meu pai ainda com vida. Entre os exemplos dessas mulheres e o da minha mãe, eu sentia uma pressão imensa para fazer algo de especial com a minha vida.
A maioria do tempo andava a percorrer inutilmente o livro à procura de dicas sobre a minha mãe. Ao contrário da tendência moderna dos escritores se dedicarem à narrativa não ficcional, ela estava curiosamente ausente. Conseguia sentir a sua atenção pelo detalhe, a sua rápida mudança de expressão, mas não havia mais nada dela nele, nada para além da familiar fotografia de cabeça: o seu cabelo direito e macio, o largo sorriso inofensivo.
O seu livro era a história objetiva da Casa Barnsley e das mulheres que lá tinham vivido ao longo de várias gerações. Havia escândalos, sim: suicídios, ligações secretas e as obrigatórias alegorias góticas — quartos secretos, fantasmas e incêndios inexplicáveis —, mas era um livro de História. Um passado típico de uma casa de campo daquela era, mas sempre tinha imaginado Barnsley como um local agora benigno. Talvez estivesse enganada.
Todo este tempo tinha estado à espera de que alguém de Barnsley viesse à minha procura. Mas agora que alguém o tinha feito, já não tinha tanta certeza de ser aquilo que eu, afinal de contas, queria.